Os Cabelos Sob os Capellos

Cabelos crespos sob o capello: a Convenção Interamericana contra o Racismo classifica como discriminação racial indireta qualquer dispositivo, prática ou critério aparentemente neutro que tem a capacidade de acarretar desvantagem. Foto Ron Lach/Pexels/CC

Já passou da hora de adaptar os rituais para uma celebração mais inclusiva do ensino superior

Por Gabrielle Alves | Artigo • Publicada em 11 de março de 2024 - 09:44 • Atualizada em 18 de março de 2024 - 08:57

Cabelos crespos sob o capello: a Convenção Interamericana contra o Racismo classifica como discriminação racial indireta qualquer dispositivo, prática ou critério aparentemente neutro que tem a capacidade de acarretar desvantagem. Foto Ron Lach/Pexels/CC

Em 2022, o IBGE divulgou que o número da população preta e parda atingiu 56,1%. Ou seja, representam mais da metade da população e ainda assim ocupam apenas 48,3% das vagas universitárias, considerando instituições públicas e privadas em conjunto.

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São pessoas negras que vestirão a beca e colocarão o chapéu de formatura sob os seus cabelos crespos, cacheados, ondulados e trançados. Costuma-se chamar o chapéu em questão de capello, uma palavra de origem italiana – cuja tradução é literalmente chapéu, um símbolo de intelectualidade, um símbolo de “sim, você chegou lá apesar de tudo”. E claro, toda tradição tem um começo, e estima-se que essa tenha se originado da birreta, um chapéu de aparência semelhante usado pelo clero católico romano na Itália. A forma então evoluiu para ter uma costura em quatro lados, criando uma forma quadrada com cantos – alguns dizem que faz referência ao formato de um livro. Em 1583, o escritor britânico Philip Stubbes escreveu que essa forma simbolizava “a monarquia inteira do mundo, leste, oeste, norte e sul, cujo governo repousa sobre eles como o chapéu repousa sobre suas cabeças”. Com o tempo, a birreta tornou-se mais amplamente utilizada e tornou-se parte de uma tradição, iniciada entre estudantes – inicialmente homens e brancos –, além do clero, pois era vista como um símbolo de aprendizado e erudição.

É possível concordar com o seguinte: o capello foi desenhado para um certo tipo de pessoa, e consequentemente, um certo tipo de cabelo.

Em 2019, a YouTuber Chizi Duru viralizou ao adaptar um desses chapéus com uma tiara, encaixando-o perfeitamente na sua coroa afro que ela escolheu usar para o dia de conquista. Ela poderia ter escolhido qualquer outro estilo, mas escolheu usar o cabelo natural, e é sobre esse poder de escolha que todos deveríamos ter acesso. Por que empresas de formatura e aluguel de roupas não criam chapéus adaptados para que possamos escolher? Por que colocam nas recomendações para os ensaios fotográficos mensagens como: “não exagere no penteado, se quiser aquele volume um babyliss é bem-vindo.” – Sim, eu li isso. Eu poderia levar a minha própria tiara e tentar fazer uma adaptação improvisada na hora? Poderia. Mas por qual motivo preciso passar por essa ansiedade e perrengue quando outras colegas só chegam e se divertem no dia? Por que tudo que envolve a minha identidade precisa ser estressante?

A Convenção Interamericana contra o Racismo, Discriminação Racial e a Intolerância, que tem status de Emenda à Constituição no Brasil, classifica como discriminação racial indireta qualquer dispositivo, prática ou critério aparentemente neutro que tem a capacidade de acarretar desvantagem. A intenção de discriminar é irrelevante, mas ela acontece. Resta em nossas mãos o impacto psicológico, o desconforto, os gastos com a tentativa de improvisar alternativas.

A moda é política, e historicamente nunca foi neutra. Nossos cabelos também. Pequenas decisões transmitem mensagens: “com essa aparência você pode até tentar ser um de nós, mas só nós que ficamos bem sendo nossas próprias versões, você não”. Parece que mais uma vez querem te empurrar para as margens ou te engolir para algum padrão. Já passou da hora de podermos celebrar sem a sensação de desconforto com a nossa identidade. Desconfortos não precisam ser sentidos em silêncio.

Gabrielle Alves

Gabrielle Alves é cientista política, graduanda em direito, ativista socioambiental e climática, e escritora brasiliense. Escreve sobre o que inspira mudanças, travessias e criações.

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