Acenos e gestos simbólicos em Cuba

Obama alimenta sonhos de mudanças. Desconfiança histórica permanece

Por Leonardo Valente | Artigo • Publicada em 23 de março de 2016 - 08:00 • Atualizada em 23 de março de 2016 - 19:32

O presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, e o presidente cubano Raúl Castro em jogo de baseball
O presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, e o presidente cubano Raúl Castro em jogo de baseball
O presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, e o presidente cubano Raúl Castro em jogo de beisebol, em Cuba

A visita histórica do presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, a Cuba, não apenas emociona por seu simbolismo e pela força das imagens e dos discursos, como desperta em muitos a sensação de que os tão esperados novos tempos nas relações entre os dois países chegaram. A verdade, no entanto, é que apesar dos avanços, esses novos tempos ainda não se tornaram uma realidade de fato. Os desafios e prováveis obstáculos para a efetiva superação dos problemas e das rivalidades de ambos os lados são enormes, e as chances de frustração também.

Do lado norte-americano, a iniciativa de aproximação precisa ser analisada de forma mais ampla. Governos democratas, como o de Barack Obama, sempre olharam com mais preocupação do que os republicanos para a manutenção da hegemonia do país sobre sua área de influência direta: o continente americano, em especial o Caribe e a América Central. Os Estados Unidos enfrentam atualmente enormes desafios internacionais, a ascensão da China, as interferências da Rússia em crises do Oriente Médio, o terrorismo, entre outros temas que, na visão de seus policy makers, são consideradas ameaças à liderança mundial do país. Neste contexto, enquanto os republicanos não consideram relevante a vizinhança, e são mais focados nas políticas e intervenções em áreas realmente cruciais, os democratas partem do princípio de que para terem sucesso em todas essas disputas, a área de influência direta precisa antes estar arrumada. Desde a Guerra Fria, Cuba sempre fora a parte rebelde do quintal, o grande perigo geopolítico e símbolo da afronta e da ousadia dos rivais. A atração de Cuba de forma definitiva para sua esfera de influência e a superação desse antigo problema em um governo democrata, portanto, é tanto uma questão política relevante quanto um feito simbólico impressionante.

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Desde a Guerra Fria, Cuba sempre fora a parte rebelde do quintal, o grande perigo geopolítico e símbolo da afronta e da ousadia dos rivais. A atração de Cuba de forma definitiva para sua esfera de influência e a superação desse antigo problema em um governo democrata, portanto, é tanto uma questão política relevante quanto um feito simbólico impressionante

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O problema é que os republicanos sabem disso. E além de serem contra a uma aproximação com Cuba sem que o regime dos Castro tenha acabado, não desejam de forma alguma dar o crédito de feito tão importante aos democratas. Não há qualquer perspectiva de aprovação do fim do embargo econômico à ilha pelo Congresso norte-americano, e esta é a principal pauta cubana para qualquer avanço nas relações daqui por diante. No caso de uma vitória do republicano isolacionista Donald Trump nas eleições presidenciais, além do embargo continuar, é quase certo um recrudescimento dos últimos avanços e distensões recentes, com risco, inclusive, de fechamento das embaixadas, reabertas após décadas.

No lado cubano, os desafios também são enormes. O sentimento em relação aos Estados Unidos como uma grande ameaça não é coisa apenas de governo, é muito anterior à Revolução Cubana, teve origem no processo de independência da ilha, no final do século XIX, e desde então está entranhado no imaginário histórico e coletivo do país. Após a Guerra Hispano-Americana, travada entre a Espanha e os Estados Unidos, de este último pretensamente lutando pela independência de Cuba, os cubanos esperavam que finalmente se veriam livre do domínio colonial. No entanto, o que aconteceu foi uma ocupação norte-americana nos mesmos moldes da antiga potência colonizadora, e que durou de 1898 a 1902, quando Cuba se tornou independente. Mesmo após a independência, por imposição de Washington, a região onde hoje fica a base militar de Guantánamo foi arrendada e uma emenda na primeira Constituição cubana, que ficou conhecida como Emenda Platt, garantiu aos EUA o direito de invadir o país a qualquer momento em que os interesses norte-americanos fossem ameaçados. Tal prerrogativa deu a Cuba até 1933, apesar da declarada soberania, a condição prática de mais um protetorado caribenho dos EUA. Não foi raro encontrar nas ruas de Havana, por todas as vezes que lá passei, gente que afirmava, com certo alívio e orgulho, que por muito pouco o país não virou algo parecido com Porto Rico. E esse tipo de ameaça nunca foi considerada coisa do passado, mas um risco sempre presente.

A Revolução Cubana de 1959, portanto, não concedeu aos Estados Unidos o papel de inimigo, mas é fato que o fortaleceu como em nenhum outro momento. A invasão da Baía dos Porcos, em 1961, a Crise dos Mísseis, em 1962, as inúmeras investidas frustradas da CIA contra Fidel Castro durante toda a Guerra Fria, e especialmente o embargo econômico, que ganhou ares dramáticos após a queda do Muro de Berlim, contribuíram de forma ainda mais acentuada para o sentimento de que todos os males do país tinham o dedo da grande potência. Uma parte do alto escalão do governo de Raúl Castro ainda vê com grande desconfiança a aproximação, e teme que esta provoque uma desestabilização e o aumento da pressão pelo fim do regime.

Cuba sensibilizou-se e sentiu-se importante e reverenciada com a primeira visita de um presidente dos EUA desde 1928. A esperança de que os investimentos e parcerias proporcionem uma virada na economia também alimentaram sonhos. Mas a desconfiança histórica sobre as reais intenções do outro lado, e o medo de que o país se torne apenas mais uma periferia dependente fazem com que, para além dos acenos e gestos simbólicos, os cubanos aguardem os fatos. E o problema é que quando o assunto é fato, os EUA ainda têm muito pouco a oferecer.

Leonardo Valente

Escritor, jornalista e professor de Relações Internacionais e Geopolítica. Diretor do Instituto de Relações Internacionais e Defesa da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IRID/UFRJ).

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