O governo Trump e a desordem do comércio internacional: ameaça ao planeta

Medidas adotadas representam retrocessos no avanço civilizatório e um prejuízo generalizado para a humanidade e todas as formas e vida

Por José Eustáquio Diniz Alves | ArtigoODS 16 • Publicada em 10 de março de 2025 - 08:41 • Atualizada em 10 de março de 2025 - 09:18

Medidas adotadas por Trump vêm criando um pandemônio na dinâmica do comércio internacional. Foto Agência Brasil

Ao longo da história, nunca a população e a economia globais cresceram tanto quanto nas últimas sete ou oito décadas. Em 1950, a população mundial era de 2,5 bilhões de pessoas; em 2024, esse número saltou para 8,1 bilhões. Enquanto a humanidade levou milhares de anos para alcançar a marca de 2,5 bilhões de habitantes, em apenas 74 anos adicionou mais 5,6 bilhões a esse contingente já expressivo.

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Mas o crescimento exponencial da população não impediu o desenvolvimento econômico e a melhoria dos indicadores médios da situação sociodemográfica. Com a transição demográfica, a mortalidade infantil da população mundial que era de 138 por mil nascimentos em 1950 caiu para 27 por mil (ou 2,7%). A expectativa de vida ao nascer estava em 46,4 anos em 1950 e passou para 73,3 anos em 2024. A taxa de fecundidade total (TFT) era de 5 filhos por mulher em 1950 e caiu para 2,25 filhos por mulher em 2024. A idade mediana da estrutura etária era de 22,2 anos em 1950 e passou para 30,6 anos em 2024.

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A transição demográfica impulsionou o desenvolvimento econômico e um fenômeno reforçou o outro. Desta forma, enquanto a população mundial cresceu 3,2 vezes entre 1950 e 2024, o Produto Interno Bruto (PIB) cresceu 17 vezes. Por conseguinte, a renda per capita global cresceu 5,2 vezes no mesmo período, como mostra o gráfico abaixo. Em termos de taxas anualizadas, entre 1950 e 2024, a população cresceu a 1,6% ao ano, o PIB cresceu 3,9% ao ano e a renda per capita cresceu 2,3% ao ano. Estas taxas não encontram equivalência em outros períodos históricos.

A parcela da população mundial abaixo da linha da pobreza (de $ 2,15 ao dia) era de 38% em 1990 e caiu para 8,6% em 2024. A percentagem da população mundial subnutrida era de 13,1% em 2002 e caiu para 9,2% em 2022. Houve ganhos sociais inegáveis, embora não suficientes para garantir o bem-estar da maioria da população.

Este período de grande crescimento demoeconômico global foi impulsionado pelo surgimento de instituições internacionais projetadas para promover a cooperação econômica, política e comercial. A Organização das Nações Unidas (ONU) foi criada em 1945, com o objetivo de promover a paz, a segurança internacional e a cooperação entre os países. As últimas 8 décadas foram marcadas por uma série de transformações econômicas, políticas e institucionais que moldaram a ordem internacional e impulsionaram a integração econômica entre os países.

Após a Segunda Guerra Mundial, a Europa e o Japão estavam devastados. O Plano Marshall, implementado pelos Estados Unidos entre 1948 e 1951, foi um programa de ajuda econômica que injetou bilhões de dólares na reconstrução da Europa Ocidental. Também houve ajuda para a reconstrução do Japão durante a ocupação liderada pelo general Douglas MacArthur (1945-1952). A reconstrução da Europa e do Japão estimulou o comércio internacional ao reestabelecer cadeias de suprimentos e reativar os mercados.

Sem dúvida, o comércio internacional desempenhou um papel crucial no crescimento econômico global no período pós-Segunda Guerra Mundial. O GATT (Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio), criado em 1947, foi um marco na redução de barreiras tarifárias e na promoção do livre comércio. Sendo antecessor da Organização Mundial do Comércio (OMC), estabeleceu as bases para as negociações comerciais multilaterais.

O FMI (Fundo Monetário Internacional) e Banco Mundial foram criados para garantir a estabilidade financeira internacional e fornecerem recursos para a reconstrução e o desenvolvimento, facilitando a estabilidade econômica e o investimento produtivo.

Na área de meio ambiente, a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (Rio-92), criou a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC), base para as negociações climáticas, incluindo o Acordo de Paris.

A despeito de todas as dificuldades, o comércio internacional foi um motor do crescimento econômico nas últimas 8 décadas. Mesmo que de forma desigual, a globalização permitiu que empresas expandissem seus mercados, aproveitassem economias de escala e acessassem recursos e tecnologias de outros países. Nas primeiras décadas de reconstrução, países como Alemanha, Japão, Taiwan e Coreia do Sul se beneficiaram enormemente da integração comercial para se tornarem potências econômicas. A partir dos anos 1980 e, em especial, depois do fim da Guerra Fria, a Europa Oriental e, principalmente, China e Índia (os dois países mais populosos do mundo) passaram a liderar as taxas globais de crescimento econômico.

Se a globalização trouxe benefícios, como o aumento das trocas comerciais, o avanço tecnológico e a disseminação do conhecimento, também enfrentou críticas de diferentes tipos. Diversos países desenvolvidos adotaram medidas protecionistas para defender indústrias domésticas e evitar a livre concorrência. A globalização e o comércio internacional não beneficiariam os diversos grupos sociais de forma equitativa, deixando centenas de milhões de pessoas fora dos benefícios do crescimento econômico.

Apesar das inúmeras promessas, o comércio internacional e a globalização não conseguiram erradicar a pobreza e a fome, beneficiando de forma desproporcional a elite da pirâmide de renda e as grandes corporações. A expansão da terceirização e da exploração da mão de obra em países em desenvolvimento resultou em condições de trabalho precárias e salários reduzidos. Além disso, a influência excessiva das multinacionais tende a enfraquecer governos locais e a ameaçar culturas tradicionais. A forte dependência das cadeias de suprimentos internacionais também expõe vulnerabilidades, tornando-se um risco significativo em tempos de crise global, como ficou evidente durante a pandemia de Covid-19.

No entanto, o maior desafio decorrente do acelerado crescimento demoeconômico das últimas oito décadas foi a degradação ambiental, a perda de biodiversidade e o agravamento da crise climática. O aquecimento global tornou-se uma ameaça existencial para a civilização humana e a vida na Terra. Para evitar um colapso ambiental, é essencial reduzir as emissões de gases de efeito estufa, abandonar progressivamente os combustíveis fósseis, avançar na transição energética, conter o desmatamento e fomentar uma economia de baixo carbono.

Face aos desafios da governança internacional, diversas medidas deveriam ser tomadas para colocar ordem no desenvolvimento econômico global e para equilibrar o desempenho econômico, com justiça social e sustentabilidade ambiental.

Programas e ações deveriam ser implementadas por meio de acordos internacionais, regulações nacionais e iniciativas do setor privado, tais como: 1) Reformas nas Instituições Financeiras e Comerciais globais – FMI, Banco Mundial, OMC – além da regulação do sistema financeiro para controlar fluxos especulativos de capital e para evitar crises financeiras globais; 2) Redução das desigualdade globais com investimentos na educação, saúde e no pleno emprego e trabalho decente; 3) Governança digital e regulação tecnológica, criando normas internacionais para proteger a privacidade, evitar monopólios e combater a disseminação de desinformação; 4) Fortalecimento da cooperação multilateral com reforma da ONU e do G20, apoio a Organizações Regionais e acordos sobre a migração internacional; 5) Impulsionar o desenvolvimento sustentável com acordos climáticos vinculantes, implementando penalidades para países que descumprem metas de emissão de CO₂, promovendo a economia circular e o financiamento em energias renováveis e na restauração ecológica.

Todavia, o governo elitista, nacionalista, imperialista e negacionista de Donald Trump e JD Vance está agindo de forma oposta ao necessário para a construção de um mundo mais justo em termos social, econômico e ambiental. Os retrocessos são incontáveis. O governo Donald Trump tem ameaçado tomar o Canal do Panamá, comprar a Groenlândia e tornar o Canadá o 51º estado americano. Está promovendo a exploração de combustíveis fósseis e a produção de carros de combustão interna (dificultando a transição energética). Assinou uma ordem executiva retirando os EUA do Conselho de Direitos Humanos da ONU e tem atuado implacavelmente contra os imigrantes. Retirou o país do Acordo de Paris, tem enfraquecido a governança internacional na área ambiental e está demitindo funcionários da Administração Nacional Oceânica e Atmosférica (NOAA) – que inclui o Serviço Nacional de Meteorologia e o Centro Nacional de Furacões. Trump tem atuado para enfraquecer as regras da Organização Mundial do Comércio (OMC) e tem elevado as tarifas alfandegárias, criando um pandemônio na dinâmica do comércio internacional.

Guerra comercial e ataque ao multilateralismo

O lema do atual governo Trump é “Make America Great Again” (MAGA). Este lema faz algum sentido se consideramos que os EUA perderam a posição da maior economia do mundo, quando se mede o poder de compra. Segundo dados do FMI, o Produto Interno Bruto (PIB), a preços correntes, em poder de paridade de compra, em 2024, da China foi de US$ 35,4 trilhões e dos EUA de US$ 28,8 trilhões. Porém, em dólares correntes os valores do PIB são: US$ 28,8 trilhões nos EUA e US$ 18,5 trilhões na China.

Mas, se há controvérsia nos números do PIB, no comércio internacional a predominância da China é inquestionável. O gráfico abaixo mostra que as exportações dos EUA representavam cerca de 14% das exportações globais em 1970 e caiu para cerca de 8% em 2024, enquanto as exportações da China representavam menos de 1% do total mundial nos anos 1970 e deu um salto para mais de 14% em 2024.

Além de perder participação nas exportações globais, os EUA, que tinham superávit comercial até 1975, passaram a ter mega déficits que chegaram a US$ 500 bilhões em 2002 e alcançaram US$ 1,2 trilhão em 2024. De forma reversa, a China que tinha um pequeno superávit nas 3 últimas décadas do século XX, iniciou uma trajetória de criar mega superávits comerciais que alcançaram US$ 1 trilhão em 2024.

As exportações chinesas para os Estados Unidos da América (EUA), evidentemente, tiveram um papel importante na expansão das exportações e para o aumento do superávit comercial do gigante asiático. Em 1994, a China tinha um superávit comercial com os EUA de apenas US$ 30 bilhões. Em 2001 passou para US$ 83 bilhões. O déficit comercial dos EUA com a China aumentou muito nos anos seguintes e bateu o recorde de US$ 418 bilhões em 2017, durante o primeiro mandato do presidente Donald Trump. Nos quatro anos do governo Joe Biden, o déficit comercial se manteve alto, mas com tendência de diminuição, ficando em US$ -295 bilhões em 2024.

O saldo comercial total da China tem aumentado nos últimos anos e aumentou nos meses de janeiro e fevereiro de 2025. Mas o saldo bilateral com os EUA tem diminuído desde 2018. As exportações da China para os Estados Unidos representavam quase 40% das exportações totais chinesas em 2001 e, em 2024, representaram menos de 15%. Isto quer dizer que os chineses estão menos dependentes do comércio bilateral com os Estados Unidos.

A China fortaleceu sua cadeia internacional de produção e, por isso, pode ser menos impactada pelas medidas protecionistas de Donald Trump do que seria no passado. As importações chinesas de produtos industriais desaceleraram significativamente, enquanto o país busca maior autossuficiência, especialmente por meio da política “Made in China 2025”. Assim, a China está se tornando mais independente, ao mesmo tempo que diversifica as bases de seu comércio internacional.

Os EUA, ao contrário, possuem déficit comercial não somente com a China. Em 2024, o déficit comercial americano foi enorme com os seguintes países: China (US$ -295 bilhões), México (US$ -172 bilhões), Vietnã (US$ -124 bilhões), Irlanda (US$ -87 bilhões), Alemanha (US$ -84 bilhões), Taiwan (US$ -74 bilhões), Japão (US$ -69 bilhões), Coreia do Sul (US$ -66 bilhões), Canada (US$ -63 bilhões) e Índia (US$ -46 bilhões). Isto mostra que o déficit comercial dos EUA é amplo, estrutural e está espalhado por todos os continentes.

Isso também evidencia a grande dificuldade de eliminar ou reduzir significativamente esses déficits bilaterais. É compreensível que os Estados Unidos busquem diminuir seu expressivo déficit comercial, assim como é esperado que muitos países protestem contra o enorme superávit da China. O ideal seria a construção de acordos comerciais que promovessem um ambiente internacional mais equilibrado e sem guerras tarifárias. No entanto, um governo disruptivo nos EUA, ao adotar medidas impulsivas, pode intensificar ainda mais as tensões entre os diversos interesses nacionais, comprometendo a estabilidade da economia global.

Após a Segunda Guerra Mundial, o comércio internacional tornou-se um dos principais motores do crescimento econômico global, impulsionando a reconstrução, a integração entre nações e o desenvolvimento. Seu avanço foi viabilizado por instituições multilaterais, inovações tecnológicas e políticas de liberalização comercial.

Todavia, apesar de diversos benefícios, os efeitos colaterais foram expressivos, com aumento da concentração de riqueza nas mãos de pequenas elites econômicas. O mundo que gerou tanta riqueza nas últimas décadas precisava dar um passo à frente no sentido da justiça social e ambiental, garantindo a inclusão dos “perdedores da globalização” na construção de uma economia mais equânime e solidária e de um mundo mais seguro, pacífico e sustentável.

No entanto, o novo governo dos EUA tem adotado políticas que representam retrocessos em áreas fundamentais para o avanço civilizatório. O país, antes considerado um pilar da estabilidade global, tornou-se um fator de incerteza e risco, gerando desorientação tanto no cenário doméstico quanto no internacional. Quando uma potência econômica discrimina minorias internas e prioriza interesses nacionais em detrimento da cooperação global, o resultado inevitável é um prejuízo generalizado – não apenas para a humanidade, mas para todas as formas de vida no planeta.

José Eustáquio Diniz Alves

José Eustáquio Diniz Alves é sociólogo, mestre em economia, doutor em Demografia pelo Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional (Cedeplar/UFMG), pesquisador aposentado do IBGE, colaborador do Projeto #Colabora e autor do livro "ALVES, JED. Demografia e Economia nos 200 anos da Independência do Brasil e cenários para o século" (com a colaboração de F. Galiza), editado pela Escola de Negócios e Seguro, Rio de Janeiro, 2022.

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