ODS 1
Fábula real de tolerância no ritmo do samba

Lavagem da Sapucaí reúne fieis de várias religiões e faz sonhar com uma cidade mais feliz


A cidade lá fora pode seguir seu destino de dar errado, mergulhada no caos de violência, poluição, estresse – mas aqueles 800 metros mágicos desenharam o sonho real de uma terra pacata, tolerante, feliz. A esperança desfilou impecável, de branco, com cheiro de arruda, no ritmo preciso de sambas lendários, para lavar a Sapucaí. A festa que os leigos entendem pagã – sabem de nada, inocentes – ensinou, de novo, como pode ser a vida em paz entre os diferentes formatos da fé. Falta só a cidade aprender.
[g1_quote author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”solid” template=”01″]Pena que tanta emoção não tenha sensibilizado o prefeito Marcelo Crivella. O bispo licenciado da Igreja Universal faltou à celebração, demonstrando não entender a importância de momentos como o da mágica noite de domingo para a cidade que governa.
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Veja o que já enviamosO ritual inspirado nos protocolos das religiões de matriz africana aconteceu pelo sexto ano seguido, no domingo anterior ao Carnaval. Antes do último ensaio técnico (da Mangueira, desta vez), a Passarela, arrumada com roupa de festa, recebeu milhares de baianas, com arruda, flores usadas nos rituais, água de cheiro, vassouras e defumadores. Mães de santo, mães do samba, elas limparam os caminhos para a folia passar.
Em pouco mais de uma hora, as 50 mil pessoas que lotaram boa parte das frisas e arquibancadas – a maioria vestida de branco, como convém – louvaram as baianas e receberam suas bênçãos. Mas não foi uma festa somente do candomblé e da umbanda. No altar dos bambas, tem lugar para todo mundo, todos os credos, basta se chegar.

Como prova, à frente do cortejo, estava a imagem de São Sebastião, padroeiro do Rio (e Oxóssi, no sincretismo), conduzida respeitosamente, guardada por padres católicos. No início da cerimônia, um deles rezou o Pai Nosso no microfone, e a avenida ouviu com a devida reverência. (O cardeal-arcebispo do Rio, Dom Orani Tempesta, mantém convivência fraterna com os sambistas, e costuma abençoar os carros alegóricos ainda nos barracões da Cidade do Samba.)
Em seguida, o samba saiu, para conduzir o cortejo das baianas. Dudu Nobre comandou o carro de som, começando com “Cidade Maravilhosa”, seguida por hinos das escolas do Grupo Especial, cantados em carnavais do passado, e acompanhados em coro pela plateia, para dobrar a emoção. Ao longo do desfile, as baianas se aproximavam das frisas, para estender o axé ao povo que se apertava ali. Pegavam fios de conta, molhavam na água de cheiro e devolviam às pessoas em lágrimas. Distribuíam galhos de arruda, espalhando o cheiro pela avenida.
Mais uma vez, a lavagem “abriu os caminhos” (como ensinam os iniciados no axé) para o epílogo da odisseia carnavalesca – sim, o desfile é o capítulo derradeiro do trabalho iniciado meses antes, no meio do ano anterior. A festa nasceu da mente inventiva de Elmo José dos Santos, diretor de Carnaval da Liga Independente das Escolas de Samba, ex-ritmista e ex-presidente da Mangueira. “Sei da importância e do fundamento religioso das escolas. Quis trazê-los para a avenida”, relembra ele.
Elmo, então, procurou pais e mães de santo das integrantes do Grupo Especial para montar o roteiro da cerimônia. Hoje, participam baianas do Carnaval de São Paulo e de outras cidades do Brasil. “A Passarela é um lugar de muitas energias. Estendemos os cuidados das escolas a todos os sambistas e contamos com a participação de fieis de todas as religiões. É um momento bonito, bom de se viver”, constata o dirigente.
Pena que tanta emoção não tenha sensibilizado o prefeito Marcelo Crivella. O bispo licenciado da Igreja Universal faltou à celebração, demonstrando não entender a importância de momentos como o da mágica noite de domingo para a cidade que governa.
Uma terra necessitada da tolerância exibida pela tribo do samba.
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Niteroiense, Aydano é jornalista desde 1986. Especializou-se na cobertura de Cidade, em veículos como “Jornal do Brasil”, “O Dia”, “O Globo”, “Veja” e “Istoé”. Comentarista do canal SporTV. Conquistou o Prêmio Esso de Melhor Contribuição à Imprensa em 2012. Pesquisador de carnaval, é autor de “Maravilhosa e soberana – Histórias da Beija-Flor” e “Onze mulheres incríveis do carnaval carioca”, da coleção Cadernos de Samba (Verso Brasil). Escreveu o roteiro do documentário “Mulatas! Um tufão nos quadris”. E-mail: aydanoandre@gmail.com. Escrevam!
Bonito demais isso.