ODS 1
Do alto do Olimpo
O discurso, a prática e o inconveniente mundo real
Maria Clara está terminando a maquiagem do jornalista-estrela. Ele pede pressa, a gravação do programa de debates vai começar.
Maria Clara é casada, a mulher trabalha num banco. Tem dois filhos, de doze e dezesseis anos. O casal não vai assistir ao programa, largou a TV a cabo. Agora, só séries e filmes do Netflix. As informações que elas recebem aparecem no Facebook ou em grupos de Whatsapp. Os filhos vivem no Youtube.
O jornalista-estrela pede mais pressa.
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[g1_quote author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”solid” template=”01″]Dona Irene mora em Bonsucesso, perto do Complexo do Alemão. Tem três filhos e cinco netos. Perdeu o irmão por bala perdida. Um neto se envolveu com o tráfico, foi jurado de morte e teve que sair do Rio. Os outros estudam em colégios públicos, sem aulas devido à violência
[/g1_quote]É um debate entre um senador do Partido da Juventude Proletária e um deputado do Partido Renovador Liberal. Mediado pelo jornalista-estrela. Vão discutir a atual situação do Rio de Janeiro.
O senador, o deputado e o jornalista-estrela são brancos de meia idade, nascidos na zona sul da cidade. Estudaram no mesmo colégio, católico, e fizeram faculdade na PUC, ambos na Gávea. Sociologia, Administração e Jornalismo.
O deputado culpa o inchaço do Estado e a corrupção pela situação carioca. Diz que seu partido, que está envolvido em vários escândalos, quer dar um choque de gestão no Rio, no Brasil. As pessoas têm que aprender a viver sem o Estado, adverte com gravidade. Logo depois diz, emocionado, que só os empresários, com o devido incentivo do governo, podem gerar os empregos que vão salvar a cidade e o país.
No intervalo, o deputado pede água para a copeira, dona Irene.
Dona Irene mora em Bonsucesso, perto do Complexo do Alemão. Tem três filhos e cinco netos. Perdeu o irmão por bala perdida. Um neto se envolveu com o tráfico, foi jurado de morte e teve que sair do Rio. Os outros estudam em colégios públicos, sem aulas devido à violência. Com a ajuda dos filhos, dona Irene está montando uma fábrica de doces, para poder largar o emprego na emissora e se mudar para um lugar mais pacífico.
O deputado pega o copo com um protocolar obrigado. Não olha para a dona Irene.
Dona Irene não se interessa pelo que está sendo dito no programa. Como o resto da família, não confia em políticos. Nem em jornalistas.
O senador faz uma longa explanação sobre a história do operariado carioca, fala do surgimento das favelas, explica detalhe por detalhe a cooptação que as igrejas evangélicas fizeram da população menos favorecida. Fala, quase com lágrimas nos olhos, da importância da união entre os estudantes e os operários para derrotar o poder do capital.
O debate dura menos de vinte minutos.
Eduardo é o motorista que leva o senador para casa.
Eduardo é morador da Tijuca, frequenta a Assembléia de Deus e sempre votou na esquerda, mas nos últimos tempos se desencantou com a política. Trabalha com o seu carro pelo Uber desde que perdeu o emprego na Petrobras. Quer criar o seu próprio aplicativo de transporte para poder ter uma remuneração mais justa.
O senador apenas o cumprimenta, pede para ele mudar a estação de rádio.
E segue viagem, discutindo seu desempenho no debate.
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Leo Aversa fotografa profissionalmente desde 1988, tendo ganho alguns prêmios e perdido vários outros. É formado em jornalismo pela ECO/UFRJ mas não faz ideia de onde guardou o diploma. Sua especialidade em fotografia é o retrato, onde pode exercer seu particular talento como domador de leões e encantador de serpentes, mas também gosta de fotografar viagens, especialmente lugares exóticos e perigosos como Somália, Coreia do Norte e Beto Carrero World. É tricolor, hipocondríaco e pai do Martín.