ODS 1
A difícil arte de seguir o Zé Rubem
Uma tentativa frustrada de flagrar um conto nas ruas do Leblon
No dia em que vi Rubem Fonseca, o grande escritor de “A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro”, estava caminhando pelo Leblon, mais exatamente na Avenida Ataulfo de Paiva, uma dessas poucas ruas cariocas onde deixaram algum espaço para tropeçar o mínimo possível em fradinhos, bancas de jornal, entregadores de folheto, bicicletas e demais obstáculos, essa cornucópia de dissabores que tornam hoje a arte de flanar no Rio um livro impossível de se escrever.
Não resisti e passei a acompanhar o grande autor andarilho em pleno ato do que poderia estar sendo sua próxima criação e fi-lo não como se fosse um paparazzi em busca de um fotograma para vender ao editor da “Cult”, fi-lo não como um fã perigoso que em meio à jornada, no momento em que o escritor passasse em frente ao Bibi Sucos, na esquina com o José Linhares, pudesse assediá-lo com um convite para um açaí, sabedor que lhe era refeição de gosto.
Fi-lo com um misto de admiração e culpa, impulsionado pelo pretexto profissional de que em seguida eu poderia escrever um making off de valor literário, no mínimo uma crônica barata como esta, sobre a arte do predador, outro de seus contos, e contar a história do criminoso genial flagrado no justo momento em que farejava assunto, esta carne elementar do escritor. Como ele armava o bote? Como em seguida apagava as pegadas? Como ninguém conseguia desmascarar as artimanhas do mais longevo contista brasileiro se ele, ao contrário do seu rival em perenidade obscena, o vampiro de Curitiba Dalton Trevisan, andava de um lado para o outro, dando bandeira, nas ruas do Leblon?
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Veja o que já enviamosEm “A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro”, o personagem principal é um servidor público que ganha na loteria, larga o trabalho e dedica-se a escrever e caminhar pelo Centro do Rio, trotando diuturnamente da Rua do Jogo da Bola, no Morro da Conceição, até a Alcindo Guanabara, na Cinelândia, observando com muita atenção tudo que vê, sejam fachadas, telhados, portas, janelas, cartazes pregados nas paredes, letreiros comerciais luminosos ou não, buracos nas calçadas, latas de lixo, bueiros, o chão que pisa, passarinhos bebendo água nas poças, veículos e principalmente pessoas, tudo na esperança de que em algum momento se dê o clique e surja então o grande prêmio de um conto, de um romance, de um punhado de palavras que manchem as páginas em branco.
No dia em que eu vi Rubem Fonseca caminhando nas ruas do Leblon, ele estava inicialmente em frente ao bar Bigorrilho, do lado oposto à praça Antero de Quental, indo em direção ao canal da Visconde de Albuquerque, mas Rubem anda muito rápido, apesar dos seus 90 e tal, e logo em seguida ele já estava no trecho da Drogasmil, uma das 34 drogarias espalhadas por aquele rua. Acompanhei o escritor a uma moderada distância, anotei que ele parou num camelô na esquina de General Urquiza com Ataulfo Paiva para comprar meia dúzia de maçãs, se dedicou ao esporte masculino internacional de olhar as mulheres que passavam e, em alguns casos, dobrou o pescoço para acompanhá-las por mais tempo no doce balanço a caminho de alguma coisa, já que era um dia frio e nenhuma parecia a caminho do mar da canção. Foi atravessando o quarteirão entre a General Urquiza e a Venâncio Flôres, passando pelo restaurante Pap’Açorda, depois a papelaria Jou Jou, a Fashion Dome, o Bazar Donai, a Casa Simão, a Fran Decoração e a lanchonete Só Pra mim.
Delegado de polícia nos anos 1960, Rubem Fonseca não teve dificuldades em desconfiar, cinco minutos depois de iniciada a perseguição benigna, num desses momentos em que se virou para ver uma mulher, mais exatamente quando ele passou da lanchonete Só pra mim e chegou na esquina da Ataulfo com Venâncio Flores, que havia um sujeito tão estranho quanto ele, também de calça jeans, camiseta preta e boné idem, acompanhando-o com caderno na mão e na cabeça os olhos nervosos de quem não podia se fixar com muita insistência sobre o lombo da presa, para não assustá-la, mas ao mesmo tempo não podia desfocar dela e perder um detalhe importante do seu comportamento.
Educadamente, sem dar bandeira, Rubem Fonseca aproveitou que o sinal estava fechado para o trânsito de carros, acelerou ainda mais os passos e cruzou a Ataulfo de Paiva, passando para a calçada impar e fez o caminho inverso do que estava tomando, seguindo agora na direção Ipanema. Logo na esquina do quarteirão, no entanto, na calçada dos colchões Ortobom, ele tombou à direita, em direção à praia, e eu logo percebi que ele estava indo se esconder da indiscrição alheia no bunker do seu edifício, na Rua General Urquiza, um endereço providencial, típico dos seus livros, pois tem uma saída estratégica por um outro prédio aos fundos, que dá para a Avenida Bartolomeu Mitre. Eu ainda gritei “Zé Rubem, Zé Rubem”, pois sei que é assim o tratamento dos íntimos, mas ele fez uso da idade, tornou-se de ouvidos poucos e moucos, e eu só ouvi como resposta o portão que batia.
Tempos depois, levei um susto quando abri seu novo livro de contos, “Amálgama”, e lá estava a história de “O espreitador”. Revela o conto, que eu suspeito ter visto nascer, os mandamentos de como seguir mulheres pela rua sem ser notado. Só que no final o espreitador mata as suas musas antes espreitadas – e como sobre isso nada vi, nada posso revelar.
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Jornalista e autor de vários livros, entre eles "Feliz 1958 - O ano que não devia acabar" e as biografias de Leila Diniz, Antonio Maria e Zózimo Barrozo do Amaral. Organizou a coletânea "As cem melhores crônicas brasileiras" e também publicou livros como cronista. Define-se principalmente como um repórter de Cidade. No #Colabora, Joaquim escreve sobre o que vai pelas calçadas e espaços públicos do Rio.
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