Bauman, vida e obra sólidas

Onda de refugiados é o tema do novo livro do sociólogo da 'modernidade líquida', criticado por seu excesso de nostalgia

Por Carla Rodrigues | ArtigoODS 9 • Publicada em 10 de janeiro de 2017 - 11:40 • Atualizada em 10 de janeiro de 2017 - 12:07

Zygmunt Bauman, sociólogo polonês morto nesta segunda-feira (Foto Michal Cizek/AFP/22.10.2012)
Zygmunt Bauman, sociólogo polonês morto nesta segunda-feira (Foto Michal Cizek/AFP/22.10.2012)

Nascido na Polônia em 1925, o sociólogo e filósofo Zigmunt Bauman começou sua carreira acadêmica no início na década de 1950. Mas foi só depois da publicação de  “Modernidade líquida” (2000), que veio a se notabilizar como um crítico da modernidade, por ele definida como “líquida”, numa série de títulos que inclui amor, vida, tempo, medo, vigilância, cultura, sociedade, todos com a mesma tônica: a volatilidade imposta pelas formas tardias do capitalismo nos empurram para uma vida sem bases sólidas sobre as quais nos apoiar. O diagnóstico fez eco na experiência cotidiana e impulsionou a venda de seus livros “líquidos”, a despeito dos críticos que identificaram um certo tom nostálgico nas suas proposições. Editado no Brasil pela Zahar, Bauman tem 38 títulos traduzidos no país.

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O indivíduo liberal pós-moderno de Bauman era aquele cuja liberdade se exercia consumindo tudo que o mercado pudesse oferecer e vinha responder ao projeto de fim da história, aqui entendido como o ocaso das utopias socialistas e vitória da democracia liberal cuja principal referência é a sociedade norte-americana. Se todas as frases estão no passado é porque nada parece mais evidente hoje do que o fracasso desse modelo supostamente triunfante e alvo da arguta análise de Bauman.

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Quando, em 1997, Bauman publicou “O mal-estar da pós-modernidade”, parodiou o título de Freud (“O mal-estar na civilização”) e identificou esse mal-estar na exigência de liberdade individual, fazendo assim uma crítica às promessas liberais de realização de uma vida sem limites. O indivíduo liberal pós-moderno de Bauman era aquele cuja liberdade se exercia consumindo tudo que o mercado pudesse oferecer e vinha responder ao projeto de fim da história, aqui entendido como o ocaso das utopias socialistas e vitória da democracia liberal cuja principal referência é a sociedade norte-americana. Se todas as frases estão no passado é porque nada parece mais evidente hoje do que o fracasso desse modelo supostamente triunfante e alvo da arguta análise de Bauman.

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Seu mais novo livro a ser lançado no Brasil trata de um tema que lhe foi caro: “Estranhos à nossa porta” discute o atual problema dos refugiados, especificamente na Europa onde Bauman também foi imigrante. Dos horrores do holocausto na Polônia, ele fugiu para a URSS, em 1939, e se filiou ao Partido Comunista. Depois da guerra, voltou à Polônia, onde se casou com Janine. O casal trocou o país natal pela Inglaterra desde os anos 1970. “Estranhos à nossa porta” reconhece que “a migração em massa não é de forma alguma um fenômeno recente. Ele tem acompanhado a era moderna desde seus primórdios”, outro modo de dizer que não há necessariamente novidade naquilo que parece novo.

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A vida líquida escorre pelos dedos e pelos cliques, pelas mensagens instantâneas, pela sucessão de projetos profissionais a serem sempre substituídos por alguma “novidade”. Velocidade, volatilidade, obsolescência programada, entrega voluntária a dispositivos de controle são alguns dos sintomas de liquidez que Bauman encontrou nos modos de vida contemporânea. Não sem algum tom de nostalgia.

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A movimentação de pessoas já o preocupava em 1999, quando escreveu que “hoje em dia estamos todos em movimento”, outro modo de dizer que não há necessariamente novidade no que parece novo. Era um livro crítico à globalização e suas consequências e antecipava uma das contradições do capitalismo contemporâneo: fazer circular pessoas e mercadorias e ao mesmo tempo impedir que certas pessoas ou determinadas mercadorias circulem, em políticas de proteção de fronteiras e de interesses econômicos, o que na maioria dos casos é a mesma coisa.

Embora Bauman estivesse se referindo ao deslocamento de seres humanos pelo mundo, estava também antevendo o fenômeno da hiperconectividade como um imperativo de velocidade impossível de ser atendido, tal qual a exigência da liberdade. A vida líquida escorre pelos dedos e pelos cliques, pelas mensagens instantâneas, pela sucessão de projetos profissionais a serem sempre substituídos por alguma “novidade”. Velocidade, volatilidade, obsolescência programada, entrega voluntária a dispositivos de controle são alguns dos sintomas de liquidez que Bauman encontrou nos modos de vida contemporânea. Não sem algum tom de nostalgia.

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Bauman rejeitava as mesmas transformações, em um livro fácil de agradar aos que gostariam de eliminar o aspecto errante da existência, mas que só se sustenta se esquecermos todas as violências das tradicionais sociedades patriarcais

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Em “Amor líquido”, por exemplo, é fácil de perceber o saudosismo que sua obra foi ganhando. Enquanto outro sociólogo, o inglês Anthony Giddens, tentava dar conta das profundas mudanças nas relações afetivas ao escrever “A transformação da intimidade” (1993), Bauman rejeitava as mesmas transformações, em um livro fácil de agradar aos que gostariam de eliminar o aspecto errante da existência, mas que só se sustenta se esquecermos todas as violências das tradicionais sociedades patriarcais. Se a vida contemporânea se liquefaz, isso não quer necessariamente dizer que o passado era melhor.  É verdade que os discursos de pânico moral consideram as modificações nas relações, amorosas e familiares formas de desestruturação da vida social. Para pessoas cujas trajetórias de vida se abriram a outras perspectivas, a arranjos afetivos distantes de padrões impostos por estruturas capitalistas e patriarcais, é difícil olhar para o presente apenas de modo negativo, por pior e mais pessimistas que estejamos hoje.

Carla Rodrigues

Professora de Ética do Departamento de Filosofia da UFRJ, mestre e doutora em Filosofia (PUC-Rio), e pesquisadora da teoria feminista. Coordena o laboratório "Escritas - filosofia, gênero e psicanálise" (UFRJ/CNPq). É autora, entre outros, de "Duas palavras para o feminino" (NAU Editora, 2013).

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