As rosas púrpuras de Brasília e Bauru

Escultura da Justiça pichada da no STF em ato golpista: pichadora e jovens universitárias de Bauru parecem acreditar viver numa espécie de realidade paralela, um mundo à imagem e semelhança das redes sociais (Foto: Joedson Alves / Agência Brasil – 08/01/2023)

Acostumadas à impunidade das redes sociais, acusada de pichar escultura no STF e jovens preconceituosas descobrem que a vida não é filme

Por Fernando Molica | ArtigoODS 16 • Publicada em 21 de março de 2023 - 13:17 • Atualizada em 25 de novembro de 2023 - 14:02

Escultura da Justiça pichada da no STF em ato golpista: pichadora e jovens universitárias de Bauru parecem acreditar viver numa espécie de realidade paralela, um mundo à imagem e semelhança das redes sociais (Foto: Joedson Alves / Agência Brasil – 08/01/2023)

A prisão da mulher suspeita de ter, em 8 de janeiro, vandalizado a escultura no STF que representa a Justiça e a decisão de três jovens de abandonar a faculdade em Bauru depois da repercussão negativa de uma postagem preconceituosa são exemplos mais recentes das consequências geradas pela insensatez de pessoas que acreditam viver numa espécie de realidade paralela, um mundo à imagem e semelhança das redes sociais.

Muita gente leva para a vida real o sentimento de impunidade cultivado na internet, a absurda ideia de que todos são livres para dizer qualquer besteira, até para xingar e agredir. A certeza é tamanha que eles passam a crer na possibilidade de que não serão punidos ao praticarem excessos e crimes nas ruas e diante do computador ou celular.

Leu essa: A nova safra do racismo, artigo de Fernando Molica

Egocêntricos, têm necessidade de reiterar o que pensam, não conseguem discernir o certo do errado, agem como se não tivesse chegado ao que o biólogo e psicólogo suíço Jean Piaget (1896-1980) classificava de terceira fase do desenvolvimento infantil, dos 7 aos 11 anos, quando a criança passa a se mostra capaz de entender o ponto de vista do outro.

Fazem lembrar Tom Baxter, personagem de um filme que se passa dentro de A rosa púrpura do Cairo, longa-metragem de Woody Allen lançado em 1985. Na trama de Allen, ocorre uma impossibilidade: Baxter sai da tela para viver um caso de amor com uma pobre garçonete (interpretada por Mia Farrow) que suspirava todas as vezes que o via no cinema.

Ao sair do filme e entrar na vida em busca da realização de um amor impossível, Baxter (Jeff Daniels) se depara com muitas dificuldades. O dinheiro que leva no bolso e o champanhe que bebe na ficção não servem do lado de cá, são cenográficos; suas cenas de amor, assim como as vividas na ficção, são, como convinha a uma fita de 1935, incompletas, apenas insinuadas, terminam com a tela escura.

Ao fugir da tela gera sucessivas confusões também do lado de lá – os outros personagens do tal filme dentro do filme ficam sem saber como levar o roteiro adiante sem a presença do protagonista. A garçonete também percebe que não dá para namorar alguém que só existe no mundo da ficção.

No filme A Rosa Púrpura do Cairo, personagem sai da tela para viver romance: mistura entre ficção e realidade nas redes sociais do século 21 (Foto: Reprodução)
No filme A Rosa Púrpura do Cairo, personagem sai da tela para viver romance: mistura entre ficção e realidade nas redes sociais do século 21 (Foto: Reprodução)

Ao exercerem nas redes sociais papéis que lhes levam ao estrelato e purgam o anonimato em que vivem, muitos – e muitos, e muitos – passam a acreditar na ficção que criaram. Pela própria experiência no mundo virtual, sabem – assim como os atores profissionais – da dificuldade de alcançar o estrelato. Para buscar um espacinho na calçada da fama da internet tratam de exagerar, ofender, ameaçar, tentam superar os que também buscam algum protagonismo. Veem na agressão e na ofensa o caminho mais fácil para o que imaginam ser o sucesso.

Em determinados momentos, porém, a vida nas redes se torna insuficiente, é preciso praticar na rua o que se faz por lá, tentar impor à realidade a vida do mundo virtual. Mais, não basta invadir e depredar palácios, agredir policiais, pichar monumentos – é necessário mostrar a cara, gravar ou deixar que outros gravem as imagens que atestam o suposto gesto de afirmação. Um exibicionismo irresponsável, infantil – como se olhassem para a câmera e dissessem: “Olha só o que faço, mamãe, olha como eu sou malvado!”

É a mesma lógica das jovens de Bauru que decidiram trocar uma eventual fofoca maldosa de corredor por uma exposição ampla de seus preconceitos. Não se tratava de um ataque a uma ideologia ou a uma pessoa ou instituição pública – político, artista, partido –, um desses tantos judas de Sábado de Aleluia disponíveis na rede. O alvo foi uma pessoa próxima, substantiva, colega de turma de 44 anos que decidira fazer o mesmo curso universitário que elas. Elas não se importaram com o tamanho da agressão, não pensaram na mágoa que causariam – afinal de contas, não há limites para a ofensa nas redes sociais.

O parâmetro que utilizaram para desancar a colega também reflete a limitação das agressoras e sua servidão ao mundo virtual. O problema não era uma suposta incapacidade da vítima de acompanhar o curso; para elas, grave era a possibilidade de a quarentona não saber o que era o Google.

A provável pichadora e as jovens preconceituosas devem, agora, estar muito assustadas com a repercussão e com as consequências do que talvez classificassem de brincadeira – queriam apenas ficar célebres, posar de corajosas ou atrevidas, conquistar milhares de likes. Agiram como os meninos que não viam tortura no gesto de amarrar uma bombinha de São João no rabo de um gato. Agora, pagam o preço da irresponsabilidade e do desatino.

Assustadas, descobrem que podem ser colocadas de castigo, que papai e mamãe não podem impedir punições, que, embora pouco usadas nas redes sociais, leis e regras de convivência social existem e precisam ser respeitadas. A exemplo de Tom Baxter depois de atravessar a tela, percebem que os truques do cinema são válidos apenas na ficção; como na velha canção dos Paralamas do Sucesso, a vida não é filme, elas demoraram para entender.

Fernando Molica

É carioca, jornalista e escritor. Trabalhou na 'Folha de S.Paulo', 'O Estado de S.Paulo', 'O Globo', TV Globo, 'O Dia', CBN, 'Veja' e CNN. Coordenou o MBA em Jornalismo Investigativo e Realidade Brasileira da Fundação Getúlio Vargas. É ganhador de dois prêmios Vladimir Herzog e integrou a equipe vencedora do Prêmio Embratel de 2015. É autor de seis romances, entre eles, 'Elefantes no céu de Piedade' (Editora Patuá. 2021).

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