A Aritmética dos Corpos

No estado atual do mundo, o ato de ler sobre invisibilidade é, ele próprio, uma forma de invisibilidade

Por Helena Ferreira | ArtigoODS 10
Publicada em 12 de dezembro de 2025 - 10:04  -  Atualizada em 12 de dezembro de 2025 - 10:13
Tempo de leitura: 20 min

A Aritmética dos Corpos e o Teorema da Invisibilidade (Ilustração: Pixabay)

I. O Inventário

Há corpos que não fazem barulho quando caem. Isto é uma lei da física que ainda não foi descoberta pelos físicos, mas que qualquer estatístico conhece bem.

O homem de bata branca – chamemos-lhe Dr. Contagem – acordava todas as manhãs às 6h17 (nunca às 6h00, que seria demasiado redondo, demasiado humano) e dirigia-se ao seu escritório no 47.º andar de um edifício sem nome. Lá, numa mesa sem gavetas (as gavetas guardam segredos, e os segredos não cabem nas estatísticas), abria um computador que não tinha marca nem modelo, apenas um número de série: 00000001.

O seu trabalho era simples: contar os que não contam.

Havia listas. Sempre há listas.

Lista A: os que morrem de fome em países cujos nomes não aparecem nos noticiários.

Lista B: os que desaparecem no mar em embarcações que não têm bandeira.

Lista C: os que trabalham em fábricas que não existem oficialmente.

Lista D: os que vivem em casas que não constam nos mapas.

O Dr. Contagem não sabia os nomes destas pessoas. Os nomes eram irrelevantes para o sistema. O sistema funcionava com códigos alfanuméricos: XRT-4401, ZZL-9982, QWE-0047. Cada código representava um corpo, mas um corpo abstrato, um corpo-conceito, um corpo-número.

Às vezes, quando o café estava demasiado forte (ou demasiado fraco, tanto fazia), o Dr. Contagem perguntava-se se ele próprio não seria também um código. Mas rapidamente afastava este pensamento. Os pensamentos irracionais prejudicavam a eficiência do trabalho.

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II. A Máquina de Invisibilidade

Numa fábrica sem endereço, que fabricava produtos sem nome para consumidores sem rosto, trabalhava uma mulher. Não tinha nome – ou melhor, o seu nome tinha sido substituído pelo número 7834. Trabalhava catorze horas por dia, sete dias por semana, doze meses por ano, fabricando peças para máquinas que fabricavam outras peças para outras máquinas.

A 7834 não sabia para que serviam as peças que fabricava. Ninguém sabia. O conhecimento fragmentado era uma das bases do sistema: quando ninguém vê o todo, ninguém pode questionar esse mesmo todo.

As suas mãos tinham desenvolvido calosidades que formavam um mapa: os rios eram os cortes mais profundos, as montanhas eram os inchaços e as cidades eram as cicatrizes. Era uma geografia da exploração, um atlas da invisibilidade.

Certo dia, a 7834 olhou para as suas mãos e viu que já não eram suas. Pertenciam à máquina, eram extensões da máquina. Ela própria se tinha tornado uma peça da máquina, uma peça substituível, numerada e catalogada.

Nessa noite, a 7834 sonhou que era um número a flutuar num ecrã. O número crescia e diminuía consoante a produtividade. Quando acordou, não conseguiu distinguir o sonho da realidade. Talvez não houvesse diferença.

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III. O Algoritmo da Compaixão

No centro de uma cidade que poderia ser qualquer cidade, num edifício que poderia ser qualquer edifício, funcionários que poderiam ser quaisquer funcionários trabalhavam numa empresa de tecnologia humanitária. A empresa chamava-se “CompassionTech” e o seu lema era “Humanizing Data” (humanizar dados).

O produto principal da empresa era um algoritmo capaz de calcular o sofrimento humano. O algoritmo – batizado CARE-2.0 – analisava milhões de variáveis: rendimento per capita, acesso a água potável, taxa de mortalidade infantil, índice de criminalidade, qualidade do ar, estabilidade política, etc, etc e etc.

O resultado era um número entre 0 e 100. 0 significava sofrimento máximo, 100 significava felicidade máxima.

Os funcionários da CompassionTech – todos licenciados em Engenharia Humanitária (um novo curso que combinava algoritmos com ética e eficiência com empatia) – orgulhavam-se do seu trabalho. Estavam a tornar o sofrimento humano mensurável, quantificável e gerível.

A Mariana (funcionária número 3421) especializara-se em “Otimização de Compaixão”. O seu trabalho consistia em ajustar os parâmetros do algoritmo para maximizar a precisão dos cálculos de sofrimento.

Certo dia, a Mariana descobriu uma anomalia nos dados: havia pessoas que, segundo o algoritmo, não sofriam nem eram felizes. Tinham um valor de -1. Eram casos impossíveis, erros de sistema.

Quando reportou a anomalia ao seu supervisor, este respondeu: “Não são erros, Mariana. São os invisíveis. O algoritmo funciona perfeitamente.”

Os invisíveis eram aqueles que o sistema não conseguia processar: refugiados e imigrantes sem documentos, trabalhadores ilegais, pessoas em situação de sem abrigo, pessoas que vivem em bairros da periferia, pessoas racializadas, pessoas LGBTQIA+, enfim, pessoas fora da norma. Existiam, mas não existiam nos dados. Sofriam, mas o seu sofrimento não podia ser calculado.

A Mariana começou a sonhar com o número -1. Via-o em todo o lado: nas nuvens, no café e, principalmente, nos olhos das pessoas na rua. Gradualmente, percebeu que ela própria estava a tornar-se um -1.

IV. O Mercado dos Corpos

Numa bolsa de valores que negociava futuros humanos, o Senhor K. (não tinha outro nome, os nomes próprios eram um luxo que o mercado não podia suportar) trabalhava como corretor de corpos.

Comprava e vendia força de trabalho humana como se fossem ações. Havia cotações diárias: um operário chinês valia 2.3 unidades, um agricultor africano 1.7 unidades, uma doméstica filipina 2.8 unidades, um programador indiano 5.2 unidades.

Os valores flutuavam conforme a oferta e a procura. Quando havia uma catástrofe natural, o preço dos corpos na região afetada baixava drasticamente. Era a lei do mercado: quanto maior o desespero, menor o valor.

O Senhor K. era eficiente. Em vinte anos de carreira, nunca tinha visto um rosto. Trabalhava apenas com gráficos, tendências e projeções. Os corpos eram linhas num ecrã, curvas ascendentes ou descendentes, números que se multiplicavam ou dividiam.

Tinha uma teoria: “O mercado é o mais democrático dos sistemas. Trata todos os corpos da mesma forma: como mercadoria.”

Às vezes recebia fotografias dos “produtos” que negociava, mas nunca as olhava. As fotografias introduziam variáveis emocionais que prejudicavam a racionalidade das decisões de investimento.

Num dia particularmente produtivo (tinha vendido três mil horas de trabalho infantil e comprado cinco mil horas de trabalho precário e mal remunerado), o Senhor K. olhou-se ao espelho e viu apenas um gráfico. A sua face tinha-se transformado numa série de linhas e números. Era a evolução natural: tinha-se fundido com o sistema que servia.

V. A Fábrica de Esquecimento

Na periferia de uma cidade sem nome funcionava uma fábrica especial. Não produzia objetos tangíveis, mas esquecimento. Era dirigida por uma mulher conhecida apenas como A Diretora.

A fábrica tinha três departamentos:

Departamento A: Esquecimento Ativo. Aqui trabalhavam jornalistas, editores e produtores de televisão. A sua função era decidir quais as notícias que não deviam ser notícias, quais os acontecimentos que não deviam acontecer e quais as mortes que não deviam ser lamentadas.

Departamento B: Esquecimento Passivo. Funcionários especializados em distração produziam conteúdos para manter as pessoas ocupadas. Séries televisivas, redes sociais, jogos, conteúdos produzidos por celebridades e influencers. Quanto mais distraídas as pessoas estivessem, menos reparariam nos invisíveis.

Departamento C: Esquecimento Estrutural. Arquitetos, urbanistas e engenheiros sociais concebiam cidades onde os invisíveis não tinham lugar. Estradas que não passavam pelos bairros pobres periféricos, transportes que não chegavam às periferias e espaços públicos que expulsavam os indesejados.

A Diretora orgulhava-se da eficiência da sua fábrica. “Não matamos ninguém”, explicava aos novos funcionários. “Simplesmente fazemos com que algumas pessoas deixem de existir socialmente. É um genocídio limpo, sem sangue e sem culpa.”

O produto final da fábrica era a indiferença. Uma indiferença refinada, científica e altamente especializada. Os clientes (governos, empresas, organizações internacionais e até alguns particulares) compravam esta indiferença às toneladas.

VI. O Laboratório da Humanidade

O Professor Z. (os nomes próprios tinham sido abolidos por decreto científico) dirigia um laboratório onde se investigava a essência da humanidade. O objetivo era descobrir o ponto exato onde um ser humano deixava de ser humano.

Os seus assistentes – todos doutorados em Desumanização Aplicada – conduziam experiências rigorosas:

Experiência 1: Retirar gradualmente direitos a um grupo de pessoas até descobrir em que momento deixavam de ser consideradas pessoas.

Experiência 2: Aumentar progressivamente as horas de trabalho até que os trabalhadores se transformassem em máquinas.

Experiência 3: Reduzir sistematicamente o salário até que as pessoas aceitassem trabalhar de graça.

Experiência 4: Multiplicar os controlos burocráticos até que os cidadãos perdessem toda a dignidade.

Experiência 5: Reduzir progressivamente as rações alimentares de uma população até que os sujeitos aceitassem qualquer condição em troca de sustento.

Experiência 6: Bombardear infraestruturas civis com intervalos cronometrados para medir o tempo exato que uma comunidade demora a deixar de ser considerada “civil” e passa a ser classificada como “escudo humano”.

Experiência 7: Condicionar o acesso a cuidados médicos até descobrir o valor exato da vida humana em diferentes geografias.

Experiência 8: Incrementar a distância física entre diferentes grupos populacionais até que uns deixassem de reconhecer a humanidade dos outros.

Os resultados eram surpreendentes: não havia um ponto fixo de desumanização. A humanidade era elástica, adaptável e resistente. As pessoas conseguiam manter-se humanas em condições que deviam ser impossíveis.

Esta descoberta preocupou o Professor Z. Se não havia um limite para a desumanização, como controlar o processo? Como transformar pessoas em números de forma eficiente?

A solução veio de uma estagiária, a Doutora Y.: “Professor, o problema é que ainda vemos estas pessoas como pessoas. O truque é começar por não as ver como pessoas. Se começarmos por vê-las como números, nunca temos o problema da desumanização.”

O Professor Z. ficou extasiado. Era de génio! Não era preciso desumanizar as pessoas; era suficiente nunca as ter visto como humanas.

VII. O Arquivo dos Desaparecidos

Numa cave sem janelas, o Bibliotecário X mantinha um arquivo especial: a coleção completa de todas as pessoas que nunca tinham existido oficialmente.

Havia prateleiras infinitas com dossiers de invisíveis: crianças não registadas, trabalhadores sem contrato, famílias sem documentos, comunidades não reconhecidas. Cada dossier continha uma vida inteira reduzida a algumas páginas: nascimento não registado, trabalho não reconhecido, morte não lamentada.

O Bibliotecário X era o único que conhecia estes arquivos. Era o guardião da inexistência, o curador da invisibilidade.

Às vezes recebia visitas de investigadores que queriam estudar “as margens da sociedade”. O Bibliotecário X mostrava-lhes os dossiers, mas os investigadores não conseguiam vê-los. Literalmente. Os seus olhos passavam pelos arquivos sem os registar.

“É um fenómeno interessante”, explicava o Bibliotecário X. “Quando o sistema decide que algo não existe, as pessoas perdem a capacidade de o ver, mesmo quando está à frente dos seus olhos.”

Havia uma secção especial no arquivo: os dossiers dos próprios invisibilizadores. O Dr. Contagem, a 7834, a Mariana, o Senhor K., A Diretora, o Professor Z. e todos os outros que trabalhavam no sistema de invisibilização.

Porque a verdade que o Bibliotecário X conhecia, mas nunca revelava, era que o sistema acabava sempre por invisibilizar os seus próprios operadores. Quem passava a vida a tornar os outros invisíveis acabava, inevitavelmente, por se tornar invisível também.

VIII. A Geografia da Invisibilidade Contemporânea

Há mapas que se redesenham em tempo real. Não por movimentos tectónicos, mas por decisões editoriais.

No Departamento de Cartografia Seletiva (uma subsecção da Fábrica de Esquecimento), a Cartógrafa W. especializou-se na arte de fazer territórios desaparecerem sem os apagar fisicamente.

Técnica A: O Zoom Estratégico. Quando se filma destruição na Região 001 (uma faixa de terra de 360 quilómetros quadrados, habitada por 2,3 milhões de corpos-código), a câmara aproxima-se tanto que só mostra escombros abstratos. Pedras. Poeira. Nunca rostos, nunca nomes, nunca contexto. Os espectadores veem destruição, mas não veem destruição humana.

Técnica B: A Simetria Falsa. Quando corpos caem na Região 002 (um território de 603.550 quilómetros quadrados), apresenta-se sempre “ambos os lados”. Como se a matemática da morte fosse uma equação equilibrada: X mortos de um lado = X mortos do outro lado = neutralidade jornalística.

A Cartógrafa W. tinha descoberto uma lei fundamental: “A distância geográfica é proporcional à abstração moral.” Quanto mais longe, mais os corpos se tornam números. Quanto mais diferentes culturalmente, mais os números se tornam estatísticas. Quanto mais estatísticas, menos humanos.

Na Região 001, as crianças deixaram de ter idade. Eram apenas “menores”. Os hospitais tinham deixado de ser hospitais, eram “infraestruturas”. As escolas eram “edifícios”. As famílias eram “civis”.

Na Região 002, os soldados tinham deixado de ter nacionalidade específica. Eram “forças”. As cidades bombardeadas eram “alvos estratégicos”. Os refugiados eram “fluxos migratórios”.

O génio do sistema era este: não negava a morte, apenas a organizava linguisticamente. Morrer em abstrato não é morrer realmente.

A Cartógrafa W. recebeu uma condecoração por ter inventado a expressão “danos colaterais humanitários”. Era um oxímoro perfeito: quanto mais humanitário soava, menos humanos se tornavam os danos.

Às vezes, por falha técnica, imagens não autorizadas chegavam aos ecrãs: crianças com nomes próprios, famílias com rostos, avós com histórias. A Cartógrafa W. ativava imediatamente o “Protocolo de Descontaminação Visual”: análises de especialistas que explicavam o contexto, a complexidade e a necessidade de não simplificar.

A complexificação era a forma mais eficaz de invisibilização. Quando algo se torna demasiado complexo para entender, as pessoas deixam de tentar entender.

No final do dia, a Cartógrafa W. olhava para o mapa-mundo no seu escritório. Era um mapa limpo, sem manchas de sangue e sem marcas de destruição. Apenas fronteiras geométricas, cores harmoniosas e nomes em fonte padronizada.

Era assim que o mundo devia parecer: organizado, administrável, sem corpos inconvenientes a complicar a geometria.

IX. A Avaria

No dia 47.823 (os dias tinham deixado de ter nomes), o sistema desenvolveu uma falha técnica.

Não foi uma revolução. As revoluções são eventos históricos, e a História tinha sido abolida por ser ineficiente. Foi simplesmente uma avaria, uma disfunção, um erro de processamento.

O Dr. Contagem chegou ao escritório e descobriu que o computador tinha começado a gerar dados corrompidos. Os códigos alfanuméricos multiplicavam-se exponencialmente: XRT-4401 tornara-se XRT-4401-XRT-4401-XRT-4401 e assim sucessivamente até ao infinito.

Na fábrica, as máquinas da 7834 começaram a produzir peças defeituosas: cada uma ligeiramente diferente da anterior. A uniformidade – princípio fundamental da produção – tinha sido comprometida.

O algoritmo CARE-2.0 da Mariana entrou em loop. Em vez de calcular o sofrimento, começou a calcular o cálculo do sofrimento, depois o cálculo do cálculo do cálculo, numa regressão infinita de metacálculos.

A bolsa do Senhor K. ficou congelada. Os preços pararam de flutuar. O mercado entrou em estado vegetativo.

A Fábrica de Esquecimento começou a produzir memórias por erro, mas eram memórias erradas, memórias de coisas que nunca tinham acontecido, memórias de pessoas que nunca tinham existido.

No Laboratório, as experiências começaram a produzir resultados contraditórios. Os sujeitos tornavam-se mais humanos quanto mais desumanizados, e menos humanos quanto mais humanizados.

O Bibliotecário X descobriu que os arquivos se multiplicavam sozinhos. Cada dossier gerava cópias de si mesmo, mas com pequenas variações. Era uma pandemia burocrática.

A avaria não tinha causa identificável. Simplesmente aconteceu, como acontecem as avarias. O sistema, concebido para ser perfeito, revelou-se imperfeito. Mas não de forma romântica ou heroica. De forma banal, técnica e administrativa.

X. O Estado de Exceção Permanente

A avaria tornou-se a nova normalidade.

O Dr. Contagem continuava a trabalhar, mas agora os seus relatórios eram impossíveis de ler. Continham milhões de códigos repetidos e listas infinitas de números que se reproduziam sem controlo. Ninguém os lia, mas continuavam a ser produzidos.

A 7834 continuava na fábrica, mas as máquinas produziam objetos sem função. Peças que não encaixavam em nenhuma outra peça, formas que não correspondiam a nenhum desenho técnico e materiais que não serviam para nada.

A Mariana continuava na CompassionTech, mas o algoritmo CARE-2.0 tinha-se dividido em milhares de subalgoritmos que calculavam o sofrimento do sofrimento do sofrimento, numa cascata infinita de metacálculos que não chegavam a resultado nenhum.

O Senhor K. continuava na bolsa, mas os preços tinham perdido qualquer relação com a realidade. Um copo de água custava mil euros, um apartamento custava três cêntimos, um ser humano custava zero vírgula zero zero um.

A ex-Fábrica de Esquecimento continuava a produzir, mas agora fabricava memórias falsas em quantidades industriais. Memórias de guerras que nunca aconteceram, de pessoas que nunca existiram e de lugares que nunca foram construídos.

O ex-Laboratório da Humanidade continuava as experiências, mas os resultados eram absurdos. Descobriram que a humanidade era um número complexo, que a dignidade tinha massa negativa e que o sofrimento se propagava à velocidade da luz.

O Bibliotecário X continuava nos arquivos, mas agora havia tantos dossiers que ocupavam várias galáxias. Havia dossiers de pessoas que ainda não tinham nascido, de pessoas que tinham morrido várias vezes, de pessoas que existiam apenas às terças-feiras.

O mundo funcionava exatamente da mesma forma que antes, mas com uma diferença: agora era claramente absurdo. Antes, o absurdo era disfarçado de racionalidade. Agora, o absurdo apresentava-se como absurdo.

Esta transparência do absurdo não melhorou nada. As pessoas continuavam a morrer de fome, a trabalhar sem descanso e a ser invisibilizadas. Mas agora faziam-no sabendo que o sistema era absurdo.

Era uma forma de progresso? Ou apenas uma nova forma de opressão?

Ninguém sabia. O saber também se tinha avariado.

XI. Teorema da Invisibilidade

Postulado 1: A invisibilidade é um estado quantificável.

Postulado 2: Qualquer sistema de quantificação produz os seus próprios invisíveis. Postulado 3: Os operadores de um sistema tornam-se, eventualmente, invisíveis ao próprio sistema.

Corolário: A avaria não foi uma falha do sistema, mas o seu funcionamento ótimo.

O Dr. Contagem, na sua análise final (documento 10000001), concluiu: “O sistema funcionou. O objetivo era tornar corpos invisíveis. O sistema tornou todos os corpos invisíveis, incluindo os operadores do sistema. Eficiência: 100%.”

A 7834, que nunca recuperou o nome próprio, continuou a ser 7834. Mas agora havia 7834-A, 7834-B, 7834-C, até 7834-∞. Cada avaria multiplicava-a. Era uma invisibilidade fractal.

A Mariana descobriu que o algoritmo CARE-2.0 calculava corretamente: o sofrimento era, de facto, incalculável. O erro estava em tentar calculá-lo. O algoritmo funcionava quando não funcionava.

A Cartógrafa W. percebeu que tinha mapeado corretamente o mundo: um lugar onde territórios inteiros podiam desaparecer por decisão editorial, onde fronteiras se redesenhavam conforme a conveniência e onde regiões inteiras existiam apenas quando era politicamente útil.

A avaria revelou a verdade: o sistema sempre fora absurdo. A diferença era que antes o absurdo era invisível, agora era visível. Mas visível para quem? Os únicos que podiam ver o absurdo eram os próprios absurdos.

Hipótese final: Não existe fora do sistema. Só há dentro. Todos os corpos, incluindo os corpos que não importam, estão dentro. A inclusão dos excluídos é a forma mais refinada de exclusão.

O sistema não tem exterior. Por isso não há resistência possível. Só há avarias, disfunções e erros de processamento. E as avarias fazem parte do sistema.

Questão: Se os invisíveis se tornaram visíveis, mas apenas para outros invisíveis, mudou alguma coisa?

Resposta: Sim. Agora há dois tipos de invisibilidade: a invisibilidade simples (não ser visto) e a invisibilidade complexa (ver que não se é visto).

A invisibilidade complexa é mais refinada, mais sofisticada e mais eficiente.

É o estado atual do mundo.

Demonstração: Este texto é lido por pessoas que se consideram visíveis, mas que são invisíveis para quem toma as decisões que as afetam. O ato de ler sobre invisibilidade é, ele próprio, uma forma de invisibilidade.

QED. (quod erat demonstrandum)

Não há epilogo. Os sistemas não terminam, apenas se transformam. A transformação atual é: da invisibilidade inconsciente para a invisibilidade consciente.

Progresso ou regresso?

A pergunta está mal formulada. No sistema, não há progresso nem regresso. Há apenas processamento.

O processamento continua.

Mas. às vezes, quando o sistema não está a olhar (e há momentos em que até os sistemas piscam os olhos), alguém em algum lugar escreve um nome próprio numa margem de relatório. Alguém desenha um rosto numa folha de cálculo. Alguém pronuncia uma palavra proibida: “resistência”.

Helena Ferreira

Helena Ferreira é pesquisadora e doutoranda em Estudos Culturais na Universidade de Aveiro (Portugal), onde explora as interseções entre arte, feminismos e justiça social. O seu trabalho cruza escrita acadêmica e experimental, desafiando formatos convencionais e explorando novas formas de expressão. Publicou sobre teatro, semiótica, queer theory e direitos humanos, e tem um interesse particular por narrativas que interrogam as estruturas de poder, a memória e a identidade. Fascinada pela palavra como ferramenta de resistência, a sua escrita busca criar espaços de dissidência e novas possibilidades de existência.

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