Exercícios sobre a natureza da queima

No Dia Internacional da Mulher, reflexões sobre bruxas, poder, medo e ignorância

Por Helena Ferreira | ArtigoODS 5 • Publicada em 8 de março de 2025 - 18:12 • Atualizada em 8 de março de 2025 - 19:11

Ato em defesa das mulheres e contra a violência em Portugal: no Dia Internacional da Mulher, reflexões sobre bruxas, poder, medo e ignorância (Foto: Helena Ferreira)

1. Uma mulher que arde não é apenas uma mulher que arde. É um método. O fogo é um método preciso de transformação da matéria. A Inquisição sabia disto: como transformar carne pensante em cinzas que não pensam.

2. Maria observava. A avó no centro da praça era um ponto fixo no espaço. Um teorema sobre a verticalidade do corpo humano. As chamas subiam. A física é simples: o calor sobe, a carne queima, o poder mantém-se.

3. Havia uma ordem nas coisas:
Primeiro, a acusação
Depois, a confissão (com ou sem tortura; geralmente com)
Por fim, o fogo

A burocracia da morte tem os seus procedimentos. Como uma máquina bem oleada que transforma corpos em exemplos.

Leu essa? Pelo direito inalienável das mulheres a uma vida que preste

4. Notas sobre o conhecimento:
a) O conhecimento das mulheres vem da terra
b) O conhecimento dos homens vem dos livros
c) A Igreja prefere os livros à terra
d) A terra não tem índice nem páginas numeradas
e) A terra não pode ser controlada como um livro

5. Sobre as ervas:
Cada erva tem uma função. Curar ou matar. Às vezes a mesma erva serve para ambos. Como o conhecimento. Como o poder.

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6. Definição:
Bruxa – mulher que sabe demasiado sobre coisas que não estão nos livros aprovados.

7. O Inquisidor João de Melo e Castro acreditava em Deus como se acredita num sistema matemático. Cada queima era uma equação resolvida. Cada confissão, uma prova irrefutável. A fé como um exercício de lógica impecável.

8.Exercício de observação:
Uma praça
Uma fogueira
Uma mulher
Um grupo de pessoas a observar
Questão: onde está o poder?
(A resposta não é óbvia)

9. Sobre as raízes:
Crescem em silêncio
Seguem a água
Quebram pedra
Ninguém as vê crescer
Até que seja tarde demais

10. A terra tem uma memória mais antiga que os livros. Mais antiga que a Igreja. Mais antiga que o medo. A terra lembra-se de quando as mulheres não eram bruxas, eram apenas mulheres.

11. Geografia da resistência:
As raízes emergiram primeiro no norte da praça
Depois no Sul
Depois em toda a parte
Como um mapa sendo desenhado ao contrário
De baixo para cima
Do escuro para a luz

12. Sobre a transformação da matéria:
O Inquisidor transformava mulheres em cinzas,
A terra transformou o Inquisidor em ausência,
Qual transformação é mais definitiva?

13. Maria aprendeu:
que o poder tem medo do que cresce sem permissão,
que a terra não pede permissão para crescer,
que as mulheres são como a terra.

14. Uma taxonomia do medo:
Medo do que não se pode controlar
Medo do que não se pode queimar
Medo do que continua a crescer
Medo do que sabe esperar

15. Lógica da sobrevivência:
Se A então B
Se queimam mulheres
Então a terra responde
(É uma questão de física básica)

16. Sobre o tempo:
Há um tempo para arder
E um tempo para brotar
A terra sabe a diferença
As mulheres também

17. No final:
As raízes voltaram para a terra
Levando consigo segredos e inquisidores
A praça voltou ao normal
(Mas normal é uma palavra que já não significa o mesmo)

18. Anos depois, Maria ensinava:
Não é a magia que importa
É a paciência
Como as raízes
Como a terra
Como a memória

19. Exercício final:
Se queimares uma bruxa
E a terra a reclamar
Quem realmente venceu?
(Não há resposta certa
Há apenas o que a terra sabe
E o que os livros não dizem)

20. Post scriptum:
Todas as histórias sobre bruxas são histórias sobre poder
Todas as histórias sobre poder são histórias sobre medo
Todas as histórias sobre medo são histórias sobre ignorância
E a ignorância, curiosamente, é o que mais facilmente arde.

Helena Ferreira

Helena Ferreira é pesquisadora e doutoranda em Estudos Culturais na Universidade de Aveiro (Portugal), onde explora as interseções entre arte, feminismos e justiça social. O seu trabalho cruza escrita acadêmica e experimental, desafiando formatos convencionais e explorando novas formas de expressão. Publicou sobre teatro, semiótica, queer theory e direitos humanos, e tem um interesse particular por narrativas que interrogam as estruturas de poder, a memória e a identidade. Fascinada pela palavra como ferramenta de resistência, a sua escrita busca criar espaços de dissidência e novas possibilidades de existência.

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