Regionalismo em Libras: diversidade cultural brasileira traduzida em sinais

Sinalários e glossários documentam sinais para expressões típicas de diferentes regiões do Brasil

Por Micael Olegário | ODS 10
Publicada em 19 de setembro de 2025 - 09:12  -  Atualizada em 19 de setembro de 2025 - 09:51
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Professora Keli Krause faz o sinal para o estilo tradicional de dança chamado chamamé; sinalário documenta regionalismo da Libras no RS (Foto: Reprodução/Sinalário Gaúcho)

É bergamota, mexerica, ponkan ou tangerina? Os diferentes nomes para a mesma fruta exemplificam a diversidade cultural e linguística do Brasil. O regionalismo que caracteriza sotaques, expressões e formas de nomear o mundo também se traduz na Língua Brasileira de Sinais (Libras) e nas diversas variações de sinais que existem entre as culturas regionais e estaduais. Em diferentes lugares, projetos de sinalários (dicionário de sinais) documentam o regionalismo em Libras e a diversidade das comunidades surdas brasileiras.

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A Libras é uma língua baseada em aspectos gestuais-visuais, ou seja, no movimento das mãos e na expressão facial das pessoas. A construção dos sinais é baseada em diferentes elementos, como a configuração da mão, o ponto de articulação, o movimento, a orientação da palma da mão e a expressão corporal-facial. Assim como acontece no português, a Libras também é afetada pelo contexto dos próprios falantes, o que explica o regionalismo.

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“Compreender o contexto cultural da Libras é compreender que a língua é viva, construída coletivamente e indissociável da comunidade surda e de suas experiências sociais”, afirma Keli Krause, professora de Libras da Universidade Federal do Pampa (Unipampa). Em conjunto com outras pessoas da comunidade surda de São Borja e do Rio Grande do Sul, a docente surda ajudou a construir o “Sinalário Gaúcho”.

Lançado no final de agosto, o projeto nasceu com a intenção de valorizar a identidade regional da comunidade surda. “Observamos a falta de sinais específicos relacionados à cultura gaúcha, sobretudo para as crianças surdas, que necessitam de materiais visuais acessíveis no ambiente escolar”, conta Keli. O sinalário serve também para auxiliar a inclusão da comunidade surda nas celebrações farroupilhas que acontecem em setembro no Estado.

Além de Keli, participaram do projeto o também professor de Libras da Unipampa, William Brum, as intérpretes de Libras da instituição, Marenize Eder e Ludmilla Ximenes, e a discente Yohanna Braz Dri, responsável pela edição dos cerca de 60 vídeos com sinais para expressões gaúchas, como piquete, gaita, peão, prenda, erva mate, chiripá, bagual, arapuca, campeiro, entre diversos outras. Participaram ainda como colaboradores externos voluntários, as professoras Bibiana Ferrão, Ana Carolina Machado e o professor Júlio Marcos Souza.

Captura de tela colorida de ilustrações do sinal de açaí. Na imagem, aparece o avatar de uma mulher branca de cabelos pretos, sinalizando açaí em Libras.
Glossário apresenta ilustrações de sinais de frutas paraenses; Libras é uma língua viva vinculada aos contextos culturais (Foto: Reprodução)

Outros sinalários e glossários

Quais os sinais para açaí, buriti, castanha do pará e tucumã? O Glossário Pai d’égua de Libras foi pensado para responder essa pergunta e documentar sinais de frutas paraenses. O material foi elaborado pela professora e intérprete de Libras Tamyres Gyslane Ferreira Silva, no Programa de Pós-Graduação em Docência em Educação em Ciências e Matemáticas, da Universidade Federal do Pará (UFPA).

Outra proposta semelhante foi idealizada por professores, profissionais e estudantes do Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia da Bahia (IFBA), Campus Seabra. Batizado de Sinalário de Libras da Chapada Diamantina (BA), o projeto nasceu durante a pandemia e já conta com mais de 160 vídeos sobre sinais do cotidiano, termos utilizados nos cursos do IFBA e elementos característicos do Território da Chapada Diamantina.

Professor de Libras no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE), em Juazeiro do Norte, Adriano Rodrigues dos Santos desenvolveu um Glossário em Libras da região metropolitana do Cariri (CE). O projeto fez parte de sua dissertação no Programa de Pós-Graduação em Letras, da Universidade Federal da Paraíba (UFPA). Além destes, na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), o Grupo de Pesquisa e Estudos do Léxico  da Libras também pretende construir um dicionário com expressões típicas da comunidade surda pernambucana.

Regionalismo e diversidade cultural

Psicóloga surda e professora de Libras no Rio de Janeiro, Luciana Ruiz costuma atender pessoas surdas de diferentes estados. Além disso, ela é voluntária em um grupo de pessoas idosas surdas. “Muitos deles vêm de diferentes regiões do país, trazendo consigo suas próprias formas de sinalizar. Esse convívio me faz refletir sobre como a Libras carrega histórias de vida, memórias e influências culturais que vão muito além da língua”, descreve Luciana.

Para a psicóloga e pesquisadora, as variações nas formas de sinalizar não representam um problema, mas mostram a diversidade cultural brasileira. Segundo ela, em geral, os surdos adotam estratégias para se fazer compreender e aprender os diferentes sinais. “Para mim, conhecer essas diferenças amplia não só o vocabulário, mas também o olhar sobre a pluralidade da comunidade surda no Brasil”, complementa.

Jéssica Rabelo Nascimento aprendeu Libras ainda na infância no Mato Grosso do Sul para se comunicar com o irmão surdo. Desde então, cultivou se dedicou ao estudo da língua de sinais e fez disso sua temática de pesquisa – o regionalismo em Libras é um dos focos do seu doutorado. Além disso, ela atua como professora na Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT).

Atualmente, Jéssica mora em Cuiabá, mas antes trabalhou no Campus Araguaia da UFMT, em Barra do Garças, na fronteira com Goiás. “Existem variações dentro do mesmo Estado”, pontua, ao relembrar uma palestra no Campus Araguaia em que foi intérprete de Libras e teve contato com sinais diferentes para a mesma palavra. “O mesmo sinal pode ter configurações de mão diferentes”, explica. Muitas vezes, a mudança ocorre devido a forma e as referências utilizadas para sinalizar.

“Existem os sinais que o intérprete vai combinar com o surdo, a partir do ele se sentir mais confortável visualmente de utilizar. Então, eu vejo que é muito bom ter glossários e dicionários, mas mais pelo sentido do registro”, afirma, sobre a importância de evitar uma padronização que elimine o regionalismo em Libras. A partir da experiência como professora e intérprete, Jéssica observa que as pessoas surdas costumam se adaptar e aprender rapidamente os sinais específicos de um lugar.

Foto colorida de membros do projeto de extensão Libras na UFOP. Na imagem, diversos estudantes aparecem posando para a foto ao lado de um cartaz com o nome do projeto
Membros do projeto de extensão Libras na UFOP; regionalismo também afetam ouvintes que buscam aprender Libras (Foto: Divulgação/Libras na UFOP)

Atravessamentos

Psicóloga e professora de Libras na Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), Andreia Chagas Rocha Toffolo teve contato com Libras a partir de uma experiência em uma escola que atendia crianças com deficiências múltiplas. Atualmente, ela coordena o projeto de extensão Libras na UFOP. “É muito comum recebermos surdos de Belo Horizonte em bancas e acabamos aprendendo outros sinais”, conta, sobre as variações da Libras entre as duas cidades mineiras.

Para Andreia, o regionalismo em Libras gera variações ainda maiores do que na língua portuguesa, embora faltem estudos que as registrem. “Se selecionarmos 100 termos para ver a variação linguística em Libras e português, na língua de sinais é muito maior”. Essas mudanças tendem a afetar mais pessoas que estão aprendendo, além de intérpretes e tradutores.

Ludmilla Ximenes mudou de Fortaleza (CE) para São Borja (RS) para atuar como intérprete de Libras na Unipampa. “Nesse deslocamento, eu percebi que muitos sinais são diferentes de um estado para o outro. Por exemplo, boa tarde, lá é diferente. Boa noite, mãe, pai e sinais ligados a meses também”, descreve. Ludmilla enfatiza que o regionalismo em Libras e as diferenças não são prejudiciais para a comunicação.

Em alguns casos, porém, o não reconhecimento do regionalismo pode ser um desafio. Andreia observa isso na academia, quando alguns professores apresentam um sinal regional como se fosse a única configuração possível para a expressão. A docente da UFOP também cita mudanças geradas por outros elementos além da cultura, como a religião. “A igreja evangélica utiliza um sinal que é diferente do utilizado na católica”, aponta.

Em comparação com as línguas escritas, os registros da Libras são muito mais recentes. No Brasil, a primeira obra considerada como dicionário de língua de sinais foi publicada em 1857 por Flausino da Gama, um ex-aluno do Imperial Instituto de Surdos-Mudos, atual Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES).

A ausência de documentação dificulta a observação das transformações na língua ao longo do tempo. Jéssica Rabelo Nascimento, da UFMT, cita a influência que as tecnologias e redes sociais exercem sobre a Libras, por exemplo, com a mudança do sinal para celular. “Inicialmente você colocava no bolso, porque os surdos viam os ouvintes com aqueles telefones grandes pendurados na cintura”, conta Jéssica.

O sinal mais tradicional para telefone, ainda utilizado, possui uma configuração de mão para representar uma antena e um bocal. Outro sinal contemporâneo já faz referência aos smartphones, com a mão reta e um movimento de toque na palma da mão, representando o touch screen das telas. O mesmo acontece quando uma expressão ou palavra nova surge, como Pix – representado em Libras com o sinal da letra “P” e de uma chave. 

Micael Olegário

Jornalista formado pela Universidade Federal do Pampa (Unipampa). Gaúcho de Caibaté, no interior do Rio Grande do Sul. Mestrando em Comunicação na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Escreve sobre temas ligados a questões socioambientais, educação e acessibilidade.

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