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Lições do pai para o Dia dos Pais

Mesmo privado de sua companhia, sigo conversando com ele sobre a vida, suas encruzilhadas e seus botequins

ODS 11 • Publicada em 12 de agosto de 2025 - 08:55 • Atualizada em 12 de agosto de 2025 - 10:56

Meu pai tem aparecido seguidamente nos meus sonhos, talvez por conta das campanhas publicitárias para o Dia dos Pais – foi também, a partir de um agosto, em 2011, que fomos privados de sua companhia. No sonho mais gravado na memória nessas últimas semanas (o mais recorrente?), Cazé me encontra no Centro e pergunta: “Onde se bebe uma Brahma Extra nesta cidade?” Tento explicar que não é possível beber mais sua cerveja predileta que ficou cada vez mais difícil de encontrar até desaparecer de vez nesta década.

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A Brahma Extra era uma cerveja – criada em meados do século passado, quando a Companhia Cervejaria Brahma não havia virado esse conglomerado Ambev – mais encorpada, com teor alcóolico maior (5,5%) do que a média e um pouco mais amarga. Era a cerveja do meu pai: sempre tinha em casa e preferia bares e restaurantes que serviam Brahma Extra. “Uma cerveja gelada, gelada sem passar do ponto, é sempre uma boa companhia”, ensinou meu pai, que não bebia chope porque lhe fazia mal ao intestino: sua teoria envolvia o processo de pasteurização.

O Restaurante 28, último frequentado por meu pai no Centro do Rio: recordando lições do pai para o Dia dos Pais (Foto: Reprodução Redes Sociais)
O Restaurante 28, último frequentado por meu pai no Centro do Rio: recordando lições do pai para o Dia dos Pais (Foto: Reprodução Redes Sociais)

No tal sonho, andávamos um bocado pelo Centro do Rio de Janeiro, hábito que ele tinha e passou de pai para filho. Cazé (apelido de Oscar José que família e amigos usavam) trabalhou a maior parte da vida no Centro, em unidades do Banco do Brasil. Quando entrei na universidade, aos 18 anos, ele passou a me chamar para almoçar todas as semanas no Centro. Dizia ele lá em casa que era para termos conversas de homem para homem. Nunca descobri o que isso significava exatamente porque a gente falava de bebida, de restaurantes, da cidade, do trabalho, da faculdade, dos amigos, das mulheres, de política, dos tempos dele e dos novos tempos – temas de boas conversas em mesas de bares ao longo da vida, com todo tipo de companhia.

Nesta época, ele me deixou algumas lições valiosas que levei para a vida. “Se trabalho fosse bom, ninguém te pagava para fazer”; “os amigos, você precisa cultivar e ter sempre por perto; os inimigos, é melhor nem ver: fazem mal ao fígado”; “cuidado com que não bebe; geralmente está escondendo alguma coisa”. E também tentou me convencer a aprender logo a dirigir, a me vestir melhor para ir ao trabalho, a não exagerar nas manifestações de afeto com as moças de preferência do meu coração – lições que não aprendi. Tínhamos muitas semelhanças e outras tantas diferenças. “Tem gente que se aborrece para não pagar e tem gente que paga para não se aborrecer” – dizia ele, que preferia se aborrecer, a mim, que preferia pagar.

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Meu pai me apresentou a uma dúzia de restaurantes de qualidade no Centro – os preferidos dele também já não existem. Levou o jovem universitário para provar o Labskaus, do Bar Ficha (na Rua Teófilo Otoni), especialidade da Dona Maria (Schaade), a proprietária, alemã, que também cuidava da cozinha; para olhar as panelas do Penafiel (na Senhor dos Passos), antes de pedir um prato de bacalhau – às vezes, um ossobuco de vitela com arroz de brócolis o fazia deixar a especialidade do restaurante português; para encarar a moqueca do Oxalá, na Cinelândia; para comer paio português na Lisboeta (na Frei Caneca), não sem antes de atacar uma empada de camarão, com pimenta, de entrada; e, naturalmente, para conhecer seu restaurante predileto, o Real (na Praça XV), auto intitulado o Rei das Peixadas, que incorporou ao cardápio uma Garganta de Cherne à Oscar, uma adaptação para sua pedida mais constante, com mudanças no acompanhamento.

Cartão do Real, restaurante da Praça 15, frequentado por meu pai: caminhar pelo Centro é refazer um inventário de cicatrizes (Foto: Reprodução)
Cartão do Real, restaurante da Praça 15, frequentado por meu pai: caminhar pelo Centro é refazer um inventário de cicatrizes (Foto: Reprodução)

Nestes restaurantes habituais, conhecia pelo menos um garçom pelo nome – no Real, quase todos – e fazia questão de pedir sugestões, mesmo conhecendo o cardápio de cor e mesmo tendo o hábito de repetir os pratos. “Em qualquer bar, o mais importante é ser bem atendido”, repetia. “E chamar o garçom pelo nome sempre ajuda”, ensinou. Mas tinha um paladar muito mais apurado que o meu, reclamava quando os pratos não saíam como deveriam e deixou de frequentar alguns lugares – nenhum da lista acima – porque o padrão caiu. Para os botecos, dos próximos de casa ou dos estádios onde íamos ver jogos do Bangu, a regra única era servir cerveja em garrafa – podia até não ter Brahma Extra, só precisava estar gelada.

Caminhar pelo Centro do Rio – creio que para todos que passaram, pelo menos, dos 40 anos – é fazer um inventário de cicatrizes, de perdas de lugares amados e agora fechados. A pandemia fez as vítimas mais recentes, de um processo de esvaziamento que vem de longe. “No 28, tem Brahma Extra”, disse o Cazé naquele tal sonho que ficou na memória (ou se repetiu). O 28 – o nome de batismo era Pastoria – foi o último restaurante (Rua Barão de São Félix 28) que o velho frequentou no Centro do Rio, agora já neste século 21, depois que aqueles da lista foram fechando um a um. Ele está certo: o 28 tinha Brahma Extra. Mas não há mais o 28, que fechou no meio da década passada, quando meu pai também não estava mais por aqui.

Brahma Extra, em sua última versão: cerveja em garrafa para conversas com meu pai (Foto: Oscar Valporto - 18/04/2019)
Brahma Extra, em sua última versão: cerveja em garrafa para conversas com meu pai (Foto: Oscar Valporto – 18/04/2019)

Sigo, entretanto, caminhando muito pelo Centro e, depois de mais um sonho, perambulei ali pela Lapa atrás de um lugar onde tivesse cerveja em garrafa, que não fosse “artesanal” – como o Cazé, gosto mesmo de cerveja pilsen, com gosto de cerveja (ele não ia gostar de saber que, pouco antes de desaparecer, a Brahma Extra tinha uma versão Weiss). “Procura aí no celular – não é para isso que serve esse computador de bolso?” – imaginei uma frase que não me lembro dele ter usado. Meu pai detestava telefones, principalmente celulares.

Descobri que tinha Serramalte, uma cerveja que ele me ensinou a gostar ainda na adolescência (antes dela ser adquirida pela Antártica), no Cacimba, numa esquina da Gomes Freire  com a Mem de Sá, em frente a um bar chamado Choperia do Papai e perto de um restaurante (no qual nunca tinha reparado) batizado de Marizé – minha mãe era Mariza, com Z, e já apresentei aqui o Cazé. Com quem, aliás, sigo conversando sobre a vida, suas encruzilhadas e seus botequins.

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