O Zika, o ministro e a OMS

Infectologista da Fiocruz diz que epidemia poderá superar pandemia de HIV/Aids

Por Rivaldo Venancio Cunha | ArtigoODS 3 • Publicada em 3 de fevereiro de 2016 - 08:00 • Atualizada em 24 de fevereiro de 2016 - 13:44

David Henrique, de cinco meses, que nasceu com microcefalia, no colo da mãe, a pernambucana Mylene Helena
David Henrique, de cinco meses, que nasceu com microcefalia, no colo da mãe, a pernambucana Mylene Helena
David Henrique, de cinco meses, que nasceu com microcefalia, no colo da mãe, a pernambucana Mylene Helena

Recentemente, o ministro da Saúde, Marcelo Castro, protagonizou mais uma polêmica na grande mídia e nas redes sociais ao afirmar: “Nós estamos há três décadas com o mosquito aqui no Brasil e estamos perdendo feio a batalha para ele. Ano passado foi o (ano) que teve o maior número de casos de dengue no Brasil em toda a história”. Anteriormente, em novembro de 2015, em decisão ética e corajosa o ministro decretou situação de emergência em saúde pública de interesse nacional, atitude que lhe valeu inúmeras críticas em parcela dos meios de comunicação e nas mídias sociais, por ser a medida considerada “exagerada” e vexatória, algo que “deixava o Brasil mal diante do mundo”.

Tenho dito e repetido que a situação atual é de extrema gravidade, e que essa epidemia de más-formações congênitas em razão da infecção pelo vírus zika poderá se transformar em verdadeira tragédia sanitária, provocando sofrimento superado apenas pela pandemia de HIV/Aids. A cada dia fica mais evidente que estamos diante de uma epidemia de zika congênita. Em frequência cada vez maior, estão sendo observadas diversas alterações congênitas em crianças que foram expostas ao vírus zika, demonstrando que a microcefalia é uma das más-formações, mas não a única. Até o final de 2016, poderemos ter cerca de quinze mil casos suspeitos de microcefalia notificados.

A epidemia de zika congênita que está ocorrendo no Nordeste, Região que concentra 86% (oitenta e seis por cento) dos casos suspeitos de microcefalia, possivelmente atingirá os demais estados do País nos próximos meses e anos

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Por mais que a frase dita pelo ministro possa incomodar, temos que admitir que é carregada de honestidade e de coerência ética diante da gravidade da situação. Assim como o ministro, ao analisar o que aconteceu nas últimas três décadas de sucessivas epidemias de dengue, também eu acredito que estamos perdendo essa batalha contra o mosquito Aedes aegypti, que também transmite os vírus chikungunya e zika.

Embora houvesse relatos desde meados do século XIX e início do século XX, a circulação dos vírus da dengue no Brasil só foi comprovada em 1982, quando ocorreu uma epidemia em Boa Vista (RR). Depois de curto período de relativa calmaria, a dengue tornou a aparecer em 1986, no Estado do Rio de Janeiro, de onde nunca mais saiu. Variando apenas as cidades, epidemias são registradas quase que anualmente no Brasil; no entanto, comumente observamos em muitas autoridades sanitárias, profissionais de saúde e meios de comunicação, certa perplexidade diante dessas epidemias, mostrando-se surpresos com a ocorrência e a magnitude das mesmas.

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É angustiante ter que admitir que enquanto os graves problemas estruturais não forem superados, vamos conviver com epidemias de dengue, zika e chikungunya no Brasil, a menos que um novo aporte científico e tecnológico seja disponibilizado para toda a população

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Nossas condições climáticas e sociais são favoráveis à proliferação do mosquito transmissor desses vírus. Temos elevadas temperaturas ambientais e chuvas em abundância, além de graves deficiências na coleta dos resíduos sólidos urbanos e irregularidade no abastecimento de água para uso doméstico; a intermitência no fornecimento de água estimula o seu armazenamento inadequado, e pode gerar novos criadouros de Aedes aegypti, favorecendo a ocorrência de dengue, zika e chikungunya. Isso para não falar da histórica violência urbana existente, principalmente na periferia de cidades de médio e grande porte, realidade que muitas vezes dificulta o acesso dos agentes que atuam no controle desses mosquitos.

Nos últimos 30 anos, inúmeras campanhas de controle do Aedes foram feitas, enfrentamos várias “batalhas” de uma suposta “guerra contra o mosquito”. Essas mobilizações ajudaram a reduzir o impacto e a magnitude das epidemias, mas, infelizmente, mostraram-se insuficientes para impedir a disseminação do vírus. Nunca é demais lembrar que as condições que contribuem para a proliferação de focos desses mosquitos têm suas raízes fincadas em um modelo de desenvolvimento social e econômico adotado pelo Brasil ao longo de séculos. Embora importantes, as campanhas de prevenção à dengue não mudam, e nem teriam governabilidade para mudar, a determinação social relacionada com a ocorrência das doenças transmitidas por esse mosquito.

É angustiante ter que admitir que enquanto os graves problemas estruturais não forem superados, vamos conviver com epidemias de dengue, zika e chikungunya no Brasil, a menos que um novo aporte científico e tecnológico seja disponibilizado para toda a população, como, por exemplo, uma vacina ou uma nova forma de controlar a proliferação do Aedes. Nesse contexto, a frase do ministro expressa uma dura e triste realidade. Devemos ter humildade e honestidade para admitir que o modelo de controle do mosquito que realizamos durante os últimos trinta anos – baseado no uso de inseticidas, larvicidas e redução de focos domiciliares – foi insuficiente para resolver o problema.

Para todos nós, brasileiros, a decisão da Organização Mundial da Saúde de decretar emergência de saúde pública de interesse internacional deve servir de estímulo para uma profunda reflexão. Mais que motivo para desânimo, tal medida poderá significar um ponto de partida para a mudança na forma pela qual cuidamos do ambiente; também poderá se transformar em oportunidade ímpar para mobilizar a sociedade contra os mosquitos e em defesa de soluções estruturantes para sanar as graves deficiências na coleta dos resíduos sólidos urbanos e os crônicos problemas no abastecimento de água para uso doméstico.

Rivaldo Venancio Cunha

Possui graduação em Medicina pela Universidade de Caxias do Sul, RS (1982), mestrado em Medicina Tropical pela Fundação Oswaldo Cruz, RJ (1993), doutorado em Medicina Tropical pela Fundação Oswaldo Cruz, RJ (1997) e pós-doutorado em Medicina Tropical com ênfase no estudo das doenças causadas por vírus pela Fundação Oswaldo Cruz, RJ (2007). Atualmente, coordena o Escritório da Fundação Oswaldo Cruz em Mato Grosso do Sul e é um dos infectologistas brasileiros mais destacados em pesquisas sobre dengue, chicungunya e zika.

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9 comentários “O Zika, o ministro e a OMS

  1. Rui Arantes disse:

    O descaso histórico com o saneamento ambiental que inclui o saneamento básico, fornecimento regular de água, coleta de esgoto e de resíduos sólidos em nosso país é um fator preponderante nesta grave epidemia. Não é uma mera coincidência que a epidemia começou pelo Nordeste, região onde o saneamento básico tem investimentos pífios ao longo da história e o processo de urbanização ocorre de maneira totalmente desordenada sem a presença do estado. Esta é uma realidade de diversos municípios brasileiros que estão sob grave risco de epidemia. Infelizmente o Brasil chegou ao século XXI com uma epidemia transmitida por um mosquito semelhante à situação enfrentada por Oswaldo Cruz em 1903 na luta contra a febre amarela. Depois de 110 anos ainda temos os mesmos problemas ?

  2. Juliana Goes disse:

    Aqui onde eu moro nos últimos anos tem tido muito casos de Dengue, nunca mais ouvi falar da Zica Virus. O que será que aconteceu? Da até medo

  3. Juliana Castro disse:

    Complicado. Perto da minha residência tem muito vizinho que ainda deixa água em vasilhas de plantas e tem alguns terrenos com pneus. Fico com medo, mas a prefeitura não faz vistoria. Uma pena!

  4. Alessandra da Fontoura disse:

    Deveria ser lei não deixar água acumulada. Me sinto mal quando vejo tantos lugares ainda que não tem consciência da gravidade que é o mosquito da dengue. Lamentável.

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