ODS 1

Cães resgatados no Abrigo Palmira Gobbi, em Canoas (RS); através de parceria com ONG Cão Sem Don 20 cães resgatados serão adotados em São Paulo (Foto: Bruna Ourique/Prefeitura de Canoas - 26/04/2025)
Centenas de animais resgatados nas enchentes no Sul seguem em abrigos
Desastre revela colapso de sistema de proteção animal e falta de políticas públicas. Voluntários sofrem com sobrecarga física e emocional
“Não tem nenhuma cidade que a gente visite que não tenha abrigo superlotado”. A frase é de Carine Zanotto, designer de software e uma das idealizadoras do Arca Animal. Nascida em Vacaria (RS) e moradora de Barra Velha (SC), ela decidiu utilizar o conhecimento na área de tecnologia para ajudar o maior número de animais resgatados das enchentes no Rio Grande do Sul. Estimativas apontam que pelo menos 15 mil pets – entre cães e gatos – foram salvos após as chuvas que devastaram o Estado, mas o número total pode chegar a 19 mil.
Leu essas? Todas as reportagens da série especial ‘Enchentes no Sul, um ano depois’
Muitos animais reencontraram seus antigos tutores e outros ganharam novos lares. Porém, parte desses “mais-que-humanos” já estava em situação de abandono e cerca de mil continuam em abrigos, conforme dados da Arca Animal. “Os abrigos temporários já foram todos desmobilizados, não existem mais. Ficaram os animais que foram para ONGs, e alguns animais estão sob tutela de pessoas que não tinham ONG e que acabaram formalizando o abrigo”, explica Carine.
Leia mais: Chuvas no Sul: iniciativas buscam lares para desabrigados de quatro patas
Uma das instituições que atuou no acolhimento de animais resgatados é a Associação 101 Viralatas, localizada em Viamão, na região metropolitana de Porto Alegre. “Hoje nós temos aproximadamente 60 animais resgatados das enchentes”, aponta France Amaral, gerente da ONG. Após o desastre socioambiental, a doutora em Diversidade Cultural e Inclusão Social deixou seu antigo emprego e passou a se dedicar exclusivamente à Associação.
Gostando do conteúdo? Nossas notícias também podem chegar no seu e-mail.
Veja o que já enviamos“Nós éramos um dos pontos de acolhimento, fazíamos o tratamento veterinário e colocávamos eles em um local seguro”, relembra France. Devido a dimensão da catástrofe, as iniciativas mobilizadas à época se dividiram em equipes que realizavam os resgates e outras voltadas para o acolhimento dos pets, como foi o caso da 101 Viralatas.
A situação enfrentada pelos voluntários da causa animal nas enchentes também revelou a ausência de políticas públicas efetivas, além da sobrecarga dos abrigos e seus responsáveis. Inicialmente, a Arca Animal serviu como uma plataforma para adoções ou busca de animais perdidos, porém, a intenção é ampliar a atuação para a esfera do levantamento de informações sistêmicas, de forma a identificar as principais demandas que os municípios possuem para lidar com animais em situação de rua e propor soluções, como campanhas de castração.

Colapso na proteção animal
Carine Zanotto conta que seu envolvimento com a causa animal começou após uma experiência com um canil clandestino que funcionava como uma matriz para a reprodução e venda de animais de raças populares, como o salsicha (dachshund) e o beagle. Na época, a dona do local ofereceu para ela um “desconto” em uma salsicha que tinha um problema no olho. “Ela me deu um desconto, porque era como se fosse um objeto com defeito. Naquele momento pensei: se eu não levar esse bicho vai acabar sendo matriz”. Para Carine, o preço que pagou foi o custo de um resgate.
Durante as enchentes, Carine entrou em contato com o Grupo de Resposta a Animais em Desastres (GRAD) e descobriu que poderia colaborar com a organização de dados. Foi assim que a equipe do Arca Animal reuniu informações sobre 493 abrigos que receberam pets resgatados. Parte desses mais-que-humanos (termo que faz referência aos animais, plantas, rios, florestas e demais entes vivos e não-vivos que coexistem no planeta, em uma visão além da centralidade do humano) foi cadastrado na Pets RS, outra plataforma usada para identificar animais resgatados.
Agora, a organização pretende desenvolver um modelo de mapeamento do número de animais em situação de rua em municípios. De acordo com Carine, a ideia é utilizar informações sobre a população, Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) e número de animais reconhecidos, para fazer estimativas mais precisas do número de pets desabrigados. A partir dos dados, o objetivo é propor soluções e cobrar respostas do poder público.
“Visitamos abrigos públicos de todos os lugares no Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná e São Paulo. Todos colapsaram. As protetoras estão adoecendo, enlouquecendo e morrendo”, comenta Carine, ao mencionar a situação precária de diversos abrigos pelo Brasil. As estimativas da Arca Animal podem servir, por exemplo, como subsídio do projeto de lei n°2070/2023 para criação do Estatuto do Animal Doméstico, em tramitação no Senado Federal.
A designer de software ressalta que os abrigos precisam ser encarados como lugares de passagem, onde os animais possam receber tratamento. Outra crítica feita por Carine é com relação ao marketing em torno de vira-latas que apenas visa o lucro e não resulta em ações efetivas em prol dos pets abandonados.
“Não há nada de errado em gostar da imagem do vira-lata. O problema é quando a imagem vale mais que a vida. Quando o branding vale mais que o bem-estar. Quando o lucro se sobrepõe à luta. A estampa do cãozinho conquista curtidas, mas a esterilização, o microchip, o abrigo adequado e a adoção responsável seguem esquecidos, sem verba, sem plano, sem Estado”, questiona nota da entidade.
Doações cessaram
Na Associação 101 Viralatas, cerca de 400 animais foram acolhidos no período das enchentes no Rio Grande do Sul. A mobilização gerada no período fez com que a instituição recebesse apoio em forma de doações, incluindo toneladas de rações do governo federal. Contudo, com o tempo, os apoios e as doações foram sendo encerradas.
“Nosso contingente atual é de aproximadamente 400 animais entre cães e gatos e a gente não recebe nenhum tipo de apoio mais, fora a ajuda de pessoas físicas”, conta France Amaral. Segundo ela, a Associação tem buscado contato com a prefeitura de Viamão para dialogar sobre políticas públicas, mas até o momento não teve retorno.
À dificuldade financeira e estrutural, soma-se a sobrecarga emocional e psicológica dos voluntários e profissionais que trabalharam com os animais resgatados. “Estamos tentando fazer uma parceria com uma psicóloga para fazer atendimento a baixo custo para os nossos tratadores e voluntários” ressalta a gerente da 101 Viralatas, uma das instituições cadastradas no Pets RS.
France também menciona a importância da microchipagem para identificação dos tutores dos animais. Recentemente, foi criado o Sistema do Cadastro Nacional de Animais Domésticos (SinPatinhas) para o registro de cães e gatos em um banco de dados nacional. A iniciativa inclui um QR Code que pode ser fixado na coleira dos pets. De acordo com o governo federal, existem cerca de 62,2 milhões de cães e 30,8 milhões de gatos no Brasil, sendo que 35% deles vivem em ruas ou abrigos.

Outros mais-que-humanos afetados
Uma das imagens mais emblemáticas das enchentes no Rio Grande do Sul foi o resgate do cavalo batizado como Caramelo. A imagem do animal em cima do telhado de uma casa alagada em Canoas, na região metropolitana de Porto Alegre (RS) repercutiu nas redes sociais e gerou uma mobilização para realizar o resgate do equino.
Após ser atendido e recuperar o peso que havia perdido, Caramelo foi adotado pela Universidade Luterana do Brasil (Ulbra) e levado para viver em uma fazenda-escola. Desde 2002, o Rio Grande do Sul considera o cavalo crioulo como animal símbolo e patrimônio cultural do Estado.
Dados da Emater RS/Ascar apontam que 9.158 localidades e mais de 200 mil propriedades rurais sofreram danos em todo o Rio Grande do Sul. Cerca de 3,7 mil criadores de animais tiveram prejuízos, com mais de 1,1 milhão de aves mortas, além de bovinos de corte e leite (17.257 mortes), suínos (14.794 mortes), peixes e abelhas (16.054 caixas). O desastre também atingiu animais silvestres, como aves, répteis e roedores, além de impactar os habitats de diversas espécies.
Outras matérias do especial Enchentes no Sul, um ano depois
Relacionadas

Micael Olegário
Jornalista formado pela Universidade Federal do Pampa (Unipampa). Gaúcho de Caibaté, no interior do Rio Grande do Sul. Mestrando em Comunicação na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Escreve sobre temas ligados a questões socioambientais, educação e acessibilidade.