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Ainda estou aqui: a sociedade que escolheu apagar a própria memória

O magistral filme de Walter Salles narra a trágica história da família do ex-deputado Rubens Paiva, alertando para os perigos de não acertar as contas com o passado

ODS 16 • Publicada em 15 de novembro de 2024 - 06:37 • Atualizada em 15 de novembro de 2024 - 06:49

Eunice (Fernanda Torres) e os filhos, na casa do Leblon: família atravessada pela tragédia do desparecimento do patriarca. Foto Alile Dara/Onawale/Divulgação

A praia, moldura de tantos momentos ingenuamente felizes, se distancia no retrovisor; a casa ampla e confortável, agora vazia, diminui de tamanho, enquanto o carro se afasta; a vida se dissolve para nunca mais. Em silêncio, a família incompleta se despede das próprias memórias, atravessada pela torturante interrogação sobre o paradeiro do patriarca. Três crianças, duas adolescentes e a mãe são as passageiras do mistério.

Leu essa? Terra do autoritarismo e da desigualdade

A viagem carrega Eunice Paiva e seus cinco filhos com o ex-deputado Rubens Paiva, desaparecido em 1971 após ser arrancado de casa por meganhas da ditadura militar. Levado ao DOI-Codi, foi torturado e morto, crimes só confirmados 40 anos depois – e até hoje impunes. O assassinato integra caudalosa coleção de brutalidades perpetradas por agentes do Estado, no período de arbítrio iniciado pelo golpe de 1964.

A história da família Paiva compõe “Ainda estou aqui”, novo filme de Walter Salles Jr, protagonizado por Fernanda Torres, dedicado a um dos muitos episódios que a sociedade brasileira se esforça em esquecer. Ao tentar varrer a barbárie estatal para debaixo do tapete, sem acertar contas pelos delitos cometidos no período, impõe-se a pena perpétua de velhos e novos golpistas atacarem de novo, numa ciranda macabra e eterna.

Na sua grande obra desde “Central do Brasil” (1998), o cineasta se debruça sobre história cotidiana, prosaica, para denunciar a profundidade da violência do autoritarismo. Deputado moderado e democrata cassado na segunda semana da ditadura, Rubens Paiva exilou-se por sete meses na Iugoslávia e voltou para São Paulo ainda em 1964. Anos mais tarde, mudou-se para o Rio, instalando a família em casa confortável na Avenida Delfim Moreira, em frente à Praia do Leblon.

Parecia uma ensolarada vida de sonho, no entra-e-sai das crianças, dos mergulhos ao entardecer no mar calmo e azul. Havia o supercarioca circular de visitas, o despojamento de bermudas e sandálias de dedo cheias de areia, os almoços e cafés, jantares e chopes. A filha que vai estudar fora, os namoros, a brisa atlântica, o Dois Irmãos… Até a violência dos anos de chumbo bater à porta.

Começa a angústia de uma família ao mesmo tempo indefesa e corajosa. Eunice e uma filha passam dias presas, são também torturadas, mas logo liberadas. Paiva jamais volta – e a vida desmorona em parafuso. Como pagar boletos, se a conta do banco era operada pelo desaparecido? A matriarca encara tudo com altivez. Decide jamais deixar de sorrir, e engaja os filhos no protesto destemido.

A mulher do ex-deputado sequestrado pelo governo militar renasce em desempenho magistral de Fernanda Torres. A atriz interpreta Eunice na medida certa, conduzindo os espectadores pela transformação da dona de casa em advogada ativista que ainda socorreu outros oprimidos, como os indígenas. Todo o elenco atua divinamente, compondo obra que está entre as grandes da produção nacional em todos os tempos.

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Fernanda Montenegro: breve participação, sem fala, rende momento de profunda emoção. Foto Alile Dara/Onawale/Divulgação

(“Ainda estou aqui” concorre ao Oscar de melhor filme estrangeiro como indicado brasileiro, revivendo a expectativa boba de, enfim, o país conquistar o prêmio mais badalado da indústria. Salles, Fernanda e Selton Melo, que interpreta Rubens Paiva, também podem ser premiados. O clima meio “Copa do Mundo” em torno da estatueta dourada, distribuída sob a lógica e os interesses de Hollywood, também acompanhou “Central do Brasil” e “Cidade de Deus” e segue uma desnecessidade. O filme sobre a família Paiva é espetacular, independentemente da escolha americana.)

Apesar de se concentrar nos anos 1970, é terrivelmente atual, pelo alerta à sociedade viciada em esquecer as próprias mazelas. Como na escravidão e em todos os outros momentos de vilania estatal, o Brasil não se passa a limpo. Mantém-se viciado no conchavo. Até o processo em relação ao assassinato de Rubens Paiva está parado no STF, no bojo da discussão em torno da Lei de Anistia, o absurdo institucional que liberou todos os criminosos dos anos de chumbo.

O resultado grita aos olhos do país nos últimos anos. O deputado que exaltou, no microfone da Câmara, um dos poucos torturadores identificados não só ficou impune como se elegeu presidente. No seu desgoverno, turbinou os mortos na pandemia e acelerou a destruição da Amazônia, entre incontáveis iniquidades. Agora, inelegível, costura a própria anistia, contando com a cumplicidade dos palanques concedidos para lobbies despropositados.

Ao longo dos últimos anos, o Brasil silenciou ante uma pororoca de ataques à democracia. Militares e policiais conspiraram despudoramente contra as eleições; generais ameaçaram seguidas vezes instituições teoricamente independentes; políticos oprimiram minorias; órgãos de seguranças fecharam os olhos para a violência capitalista. O país safou-se por um triz da tentativa de golpe que depredou prédios icônicos de Brasília e, esta semana, viu atentado terrorista em plena Praça dos Três Poderes fracassar por ação do destino.

Eunice Paiva morreu em 2018, após padecer década e meia com o Mal de Alzheimer. O arbítrio segue vivo, espreitando a democracia, graças ao aval da sociedade que voluntariamente apaga sua própria memória.

#semanistia

Walter Salles, durante as filmagens: um dos melhores filmes brasileiros de todos os tempos. Foto Alile Dara/Onawale/Divulgação

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