Desmatamento ameaça o desenvolvimento infantil na Amazônia

Desmatamento ameaça o desenvolvimento infantil na Amazônia

Um dos meninos está sentado na casa (os pés dele no ar, ali era tudo água antes)

Estiagem, poluição do ar e destruição da floresta trazem incertezas aos modos de vida tradicionais no Norte

Por Camila Saccomori | ODS 13 • Publicada em 22 de outubro de 2024 - 00:12

Por décadas a Amazônia foi chamada de “pulmão do mundo”, o que a ciência já esclareceu que não é a definição mais correta (os oceanos detêm o título). Ainda assim, é a maior floresta tropical do planeta, sede de 50% da biodiversidade mundial. O que os cientistas são unânimes em alertar é quão perto estamos de um ponto de não-retorno, ou seja, a uma mudança definitiva do bioma amazônico. A constatação veio em um artigo publicado na capa da revista Nature, em fevereiro, que tem como uma das coautoras a geógrafa paraense Nathália Nascimento. O estudo conclui que o ritmo de degradação da Amazônia nas últimas décadas pode levar a floresta ao limite, tornando impossível recuperar o que foi perdido.

Leu essas? Todas as reportagens da série especial As crianças e a crise climática

Todos já sentem na pele, no pulmão, no bolso, no estado de espírito os efeitos do “combo” seca extrema e fumaça tóxica gerada por queimadas. Esta crise ambiental, e seus fatores combinados, já é, inclusive, chamada por muitos como “o novo normal”, como se fosse possível se acostumar com tantos impactos no cotidiano.As análises indicam que, em muitos municípios, a estiagem iniciada em meados do ano passado praticamente não deu trégua: conforme o Centro de Monitoramento e Alerta de Desastres Naturais (Cemaden), a seca histórica de 2023 é a mesma de 2024 na Amazônia.

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Para além da natureza, os reflexos na saúde são os mais preocupantes. Levantamento do Salud Urbana (Salurbal) com dados da América Latina, publicado na Nature Medicine, relaciona calor e poluição ao aumento das doenças respiratórias e cardiovasculares, além de doenças renais (decorrentes da desidratação).

A fumaça pode afetar também o cérebro: a pesquisadora Mellanie Fontes-Dutra — biomédica, virologista e neurocientista — aponta que a exposição prolongada ao ar poluído traz riscos de alterações estruturais no cérebro, como nos neurotransmissores e aumento da inflamação, contribuindo para problemas neurológicos, inclusive transtornos de ansiedade.

É que as queimadas liberam grandes quantidades de partículas finas na atmosfera. Por serem tão finas, penetram profundamente nos pulmões. Além disso, as crianças são mais suscetíveis aos efeitos da poluição porque respiram mais rapidamente que os adultos, absorvendo assim mais partículas tóxicas. E, justamente, no momento em que todo o organismo ainda está em desenvolvimento.

Emergências ficam sobrecarregadas de casos relacionados à fumaça. Em agosto, Manaus registrou hospitais públicos e privados superlotados com crianças e adultos relatando agravos respiratórios. Em setembro, a empresa suíça IQAir, que monitora a qualidade do ar, constatou que Porto Velho (Rondônia) e Rio Branco (Acre) estavam com os dois maiores níveis de poluição do mundo. A palavra “insalubre” não aparece só nos relatórios, e sim nas conversas da população. É como se todos os moradores das cidades fossem fumantes.

Mulheres e crianças são as primeiras atingidas por situações dramáticas assim. Um levantamento que analisou a saúde de 300 mil bebês nascidos em 47 municípios do Amazonas, por uma década, constatou que as gestantes de comunidades ribeirinhas tiveram mais partos prematuros e recém-nascidos abaixo do peso com mais frequência. Isso porque estas localidades são mais vulneráveis às mudanças climáticas. Quadros de estresse associados à falta de alimentação adequada são responsáveis por esta triste realidade.

Na Orla da União, em Parintins, os irmãos Kedson, de 2 anos, e Gael Victor, de 7, brincam no barco que antes da estiagem também servia de transporte pelo rio Amazonas. Foto Klysna Anayal (Instagram: @klysnaanayal)
Na Orla da União, em Parintins, os irmãos Kedson, de 2 anos, e Gael Victor, de 7, brincam no barco que antes da estiagem também servia de transporte pelo rio Amazonas. Foto Klysna Anayal (Instagram: @klysnaanayal)

Alegria do Festival se esvai na estiagem recorde do Amazonas

Todo brasileiro já ouviu falar em Parintins, sede do maior evento folclórico a céu aberto do mundo. Tombado como patrimônio cultural pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, o Festival Folclórico de Parintins é realizado na segunda quinzena de junho. A festa popular traz apresentações de boi-bumbá, com a competição entre o Garantido (cor vermelha) e o Caprichoso (cor azul). O turista observa a divisão das cores olhando para as pinturas das casas ou em placas indicativas. A casa de Maria do Carmo Maciel Pinheiro fica na área da cor vermelha, no bairro Orla da União, a 370 quilômetros da capital Manaus, no extremo leste do estado. Além de rotas de avião, a principal forma de transporte entre Parintins e outros municípios é a fluvial. Só com esta informação já é possível imaginar o impacto da estiagem em diversos pontos da cidade, mas há muito mais a dizer.

É comum, em Parintins, encontrar casas flutuantes. Mas é difícil acreditar que a foto acima seja a casa flutuante de dona Maria. Não há água para flutuar. Assim como esta comunidade, outras 34 estão em situação de isolamento. A estiagem é recorde. Este é o Rio Amazonas, o maior rio em volume de água do mundo, inserido na Bacia Amazônica, o maior sistema fluvial do mundo. Usamos superlativos para destacar o espanto em ver que tudo está seco. O rio atingiu a marca de menos de 2m20cm de profundidade no começo de outubro. É a pior seca em 49 anos na ilha. Difícil ver as cenas atuais e lembrar que há apenas três meses, em maio, Parintins estava alagada por fortes chuvas.

Agora, além de faltar água para a casa flutuar e água para transporte com a canoa, falta muita coisa na vida de dona Maria e dos quatro netos que moram com ela: Shelsia, de 15 anos, Agatha, 9 anos, Gael Victor, 7 anos, e o caçula Kedson, 2 anos. Falta renda, falta água potável para beber (atualmente vão buscar nas torneiras de vizinhos em outras localidades distantes, diariamente), falta comida. “Eu falo para os meninos: a hora que tem, a gente come. A hora que não tem, a gente não pode fazer nada”.

Ver esse rio vazio assim dá uma tristeza. A gente não tem ajuda de ninguém, só de Deus

Dona Maria
Aposentada

Nos dias prévios ao Festival Folclórico e durante a festa, é o momento de buscar oportunidades de trabalho em Parintins. “Qualquer coisa que surgir”. Quando o evento acaba, acaba o movimento. A situação financeira é a mais afetada. No resto do ano, quando a casa está flutuando, dona Maria pode usar o espaço como venda, para “vender qualquer coisa que tiver” a quem passear pela Orla. Agora, na seca extrema, estão isolados.

Natural de Terra Preta do Mamuru, dona Maria tem 60 anos e saiu de lá criança. Trabalhou muito tempo na roça e teve negado seu pedido de auxílio-aposentadoria. Também trabalhou por 20 anos nos serviços gerais da escola em Parintins onde seus netos estudam. Nem assim conseguiu se aposentar formalmente. “Já lutei tanto e não consigo”.

Há três meses, desde que a estiagem começou deste jeito recorde, os netos caminham vários quilômetros debaixo do sol forte para ir à escola. A brincadeira preferida dos meninos era justamente na água: pular no rio Amazonas, voltar à casa flutuante e pular de novo. Hoje não há como brincar e nem se refrescar.

Dona Maria conta que “ninguém das autoridades” apareceu por lá para dar uma olhada com carinho na situação. Nenhum auxílio do governo no resto do ano, só campanha eleitoral com muitas promessas. “Quando chega a época de política, todos querem ser o pai da criança”, resume. Apesar da dificuldade de deslocamento, fez um esforço e conseguiu ir a pé votar no domingo, 4 de outubro. O noticiário dos dias anteriores informava a criação de um Comitê Municipal de Combate à Estiagem, para distribuir cestas básicas e outros suprimentos à população isolada, mas dona Maria diz que não recebeu absolutamente nada. “Ver esse rio vazio assim dá uma tristeza. A gente não tem ajuda de ninguém, só de Deus.”

Observando o rio Madeira, em Porto Velho, Rondônia, as irmãs Ester, 11 anos, e Anne, 9, filhas mais novas de Rosa Gonçalves, que sofre com o ar tóxico da cidade. Foto Marcela Bonfim (Instagram: @amazonianegra e @bonfim_marcela)
Observando o rio Madeira, em Porto Velho, Rondônia, as irmãs Ester, 11 anos, e Anne, 9, filhas mais novas de Rosa Gonçalves, que sofre com o ar tóxico da cidade. Foto Marcela Bonfim (Instagram: @amazonianegra e @bonfim_marcela)

Crianças sofrem para respirar em Porto Velho

“Muito insalubre”: esta é a definição oficial do índice do ar em Porto Velho. A capital de Rondônia detém um título que nenhuma cidade quer: a de pior qualidade de ar para respirar no país. É um problema crônico e preocupante, cuja causa está especialmente relacionada às queimadas, que ocorrem em larga escala e se espalham ainda mais na temporada da seca. Ester, de 11 anos, havia aprendido sobre o assunto na escola, mas viveu episódios de total desespero quando viu a saúde de sua mãe debilitada por conta do ar tóxico da cidade. Na primeira semana de setembro, Rosa Maria Pereira Gonçalves, 49 anos, estava trabalhando de manhã quando começou a se sentir sufocada. Puxava o ar e não conseguia respirar. Levada rapidamente para a UPA, recebeu alta poucas horas depois. Foi para casa descansar, mas à tarde a crise voltou — e foi ainda pior.

Ester e a irmã mais nova, Anne, de 9 anos, testemunharam tudo e ficaram assustadas. Rosa conta que nem conseguia falar com as filhas sobre o que estava acontecendo, pois lhe faltava o ar. “Eu só pensava que se o pior acontecesse comigo, eu não teria conseguido nem me despedir, nem ter dado um abraço”, detalha Rosa com a voz emocionada na entrevista, um mês após tudo ter acontecido.

No hospital, foi atendida e só saiu no dia seguinte. Contou aos médicos seu histórico. Rosa tem asma diagnosticada desde menina, quando morava com os pais e irmãos na comunidade ribeirinha do Baixo Madeira, no distrito de Nazaré. Mas, por longos anos na juventude e na vida adulta, não teve sequer uma crise. Em Porto Velho, tudo mudou. Os episódios se tornaram frequentes com a fumaça da cidade. E especialmente os últimos meses estão sendo os mais difíceis.

Ester ouve a mãe ao telefone dando entrevista e complementa com sua lembrança daquele dia: “Na minha cabeça só passava que minha mãe ia morrer, que eu ia ficar sem minha mãe”, conta Ester. “Minha irmã ficava dizendo que era para a gente pensar positivo, só que ela chorava mais do que eu”. Desde o dia da crise, ela tem usado máscara na rua e carrega na mão bombinhas e remédios caso aconteça de novo. Cozinheira há 24 anos, Rosa sai às 5h30min da manhã para ir ao trabalho. “Não enxergo um palmo na frente”. Há uma semana estava começando a chover um pouco, o que ajuda a dissipar a fumaça.

Na minha cabeça só passava que minha mãe ia morrer, que eu ia ficar sem minha mãe

Ester
11 anos

Ester e Anne fazem campanha para se mudarem de lá. Temem pela saúde da mãe e elas próprias também sofrem com o calor. Assim como outras histórias que contamos aqui, a escola das meninas já fechou algumas vezes por causa do clima. Quando vão para o colégio, o sol do meio-dia deixa as duas cansadas e ofegantes. Elas vão de bicicleta, pois encurta o tempo do trajeto.

De onde moram elas avistam o Rio Madeira, que chegou à inacreditável cota de 25 cm, em setembro deste ano, o menor nível desde o início do monitoramento, em 1967. Neste que é um dos principais afluentes do rio Amazonas, também está faltando peixe. Especialista em fazer comidas típicas da região e, também, comida portuguesa, Rosa conta que está raro encontrar os principais peixes usados na preparação dos pratos, como o dourado e o sambaqui.

Passeando para fazer as fotos para a reportagem, Ester e Anne vão até uma ponte de madeira perto de casa. Há 10 anos, para se ter uma ideia, a região alagava, por isso em 2014 construíram aquele caminho. Até 2022, ou seja, dois anos atrás, ainda tinha água quase passando por cima da ponte. Hoje só se vê a vegetação, nenhum sinal de água. Lembra que mencionamos o trabalho do colégio sobre o clima? Pedimos a Ester que fizesse um resumo para mais pessoas entenderem a situação:

“Vou tirar da cabeça, não vou colar do meu caderno. É assim: a professora explicou que é a atmosfera, né? As ondas de calor chegaram até onde a gente mora, e em Porto Velho é o mais quente. A atmosfera já está na capacidade máxima aqui, está no limite. Então muita gente assim como a minha mãe vai ter problemas de saúde que vão piorar. E isso prejudica até a gente que não tem problema de saúde”, resume a comunicativa menina de 11 anos que sonha em ser jornalista. A gente espera que Ester tenha notícias mais positivas para contar no futuro.

Camila Saccomori

Jornalista gaúcha formada pela Unisinos, mestre em Comunicação pela PUCRS. Atuou por 20 anos no Grupo RBS, onde foi repórter e editora nos veículos Zero Hora, clicRBS, Diário Gaúcho e outros. É freelancer desde 2018, com matérias publicadas em jornais, revistas e sites (Terra, Crescer, Porvir etc). Fellow do Dart Center/Columbia University, especialista em Primeira Infância, e bolsista de reportagem das fundações National Press e Heinrich Boell. É instrutora da rede Instituto Fala, ministrando oficinas da Google News Initiative.

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