Cerrado em chamas causa problemas na saúde e na aprendizagem

Cerrado em chamas causa problemas na saúde e na aprendizagem

Estiagem histórica no Pantanal prejudica cultura das hortaliças no Quilombo Família Ozório. Érica e a filha Jesuelly fazem o que podem para salvar as verduras. Foto Mariana Arndt (Instagram @marianaarndt)

Queimadas no Pantanal e em Brasília acentuam a fragilidade do bioma e a urgência na proteção da ‘caixa d’água do Brasil’

Por Camila Saccomori | ODS 13 • Publicada em 22 de outubro de 2024 - 00:02

Nas aulas de Geografia e Ciências, as crianças aprendem que o Centro-Oeste é formado por três estados (Goiás, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul) e pelo Distrito Federal. Aprendem que a maior parte desta região do Brasil tem o Cerrado como bioma, uma savana tropical com verões quentes e chuvosos e invernos secos. Na escola da vida, as famílias que moram no Centro-Oeste aprendem que nos últimos anos a savana mudou em resposta às mudanças climáticas. A temperatura aumentou, a umidade do ar diminuiu, os padrões de chuva estão muito alterados. Os livros escolares ainda não informam que o Cerrado foi o bioma com a maior área queimada em agosto de 2024, equivalente a 43% de tudo que pegou fogo no Brasil no período (dados do Monitor do Fogo, do MapBiomas). Mas os alunos e pais que vivem na região sentiram no corpo os efeitos, quase a sensação de viver em um deserto. Assim como ocorre no Sudeste, a fumaça traz problemas respiratórios, especialmente aos grupos de saúde mais vulnerável, e prejudica a produção agrícola, gerando perdas econômicas e insegurança alimentar a quem depende de recursos naturais para viver.

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A escola ensina ainda como funciona, em teoria, o equilíbrio ambiental; na prática, basta olhar para locais como o Pantanal. De forma direta, as comunidades enfrentam dificuldades para manter sua subsistência com tanto fogo, desmatamento e redução da água. De forma indireta, todo o país e o continente sul-americano sentem os impactos, pois a chamada “caixa d’água do Brasil”, agora em risco, compromete a segurança hídrica, energética, alimentar e a biodiversidade nacional.

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No quilombo pantaneiro, a luta para garantir preservação e subsistência

Olhando de fora, podia ser uma tarde de domingo qualquer. Jesuelly Eloiza Vieira Ozorio, de 9 anos, tomava banho de balde com outras crianças onde vive, no Quilombo Ribeirinha Família Osório, localizado em Corumbá, Mato Grosso do Sul. O que a cena não capta é que a brincadeira servia principalmente para amenizar o calor. Assim como em outros dias, aquele último final de semana de setembro estava absurdamente quente e seco, reflexo das queimadas no Pantanal.

Em outros tempos, Jesuelly e os amigos correriam para lá e para cá; afinal, qual criança não gosta de correr? Agora é preciso poupar o fôlego. “A gente corre um pouquinho e já fica cansado”, conta a menina. Dois dias antes, as aulas da escola da região haviam sido suspensas por conta da fumaceira. Alunos passaram mal, o cheiro é forte dentro e fora das salas de aula, tanto faz se a porta fica aberta ou fechada, se é para usar máscara ou não. Está em todo o lugar.

Sejamos didáticos: a menina sente os impactos do clima na saúde, na educação, no lazer. E sua família também perde o direito de produzir o sustento em seu próprio território. Família de tradição agrícola e pesqueira, os Ozório vivem um 2024 de estiagem histórica no Pantanal, com queda direta na fonte de renda. Auxílios externos ou governamentais pouco chegam até ali. Não bastasse a luta histórica pelo direito à terra, como tantos outros quilombos, ainda há a batalha pela subsistência.

O Pantanal está ficando muito queimado e não tem como os bichinhos ficarem lá, então é por isso que eles vêm para cá

Josuelly
9 anos

A mãe de Jesuelly, Érica Vieira Castelo, e o tio da menina, Jorge Rodrigues da Silva, narram os desafios diários e recentes. Já não é mais possível pescar. Pela seca do Rio Paraguai, à margem na comunidade, há escassez de peixes neste período. “Em 49 anos de vida, nunca vi nada parecido com isso”, relata Jorge. A alternativa seria ir de barco a locais mais distantes, porém não compensa o valor do combustível se voltarem com pouco peixe. Plantar se tornou a principal ocupação e com dificuldades: além da falta de água para irrigar, a fauna local está desorientada devido aos incêndios.

“A gente já está produzindo em menor quantidade do que antes: bananas, mamão, mandioca, abóbora-cabotiá. E este pouco, ainda por cima, os bichos vêm e comem”, explica Érica. Quais bichos? Animais da mata, que fogem dos incêndios e buscam alimentos, seja na horta dos Ozório, das famílias ao redor ou até em áreas urbanas, como em Ladário, cidade que faz limite com Corumbá.

Circulam vídeos de queixadas (porcos-do-mato) andando em bandos nas ruas e supermercados. No quilombo, já avistaram rastros de onça. Capivaras comem melancias inteiras da plantação. Passarinhos perdidos escolhem as alfaces, hortaliça preferida, justamente a verdura que os Ozório mais vendiam em feiras ou forneciam para escolas. Ainda se salvam rúcula, cebolinha e salsa, e, também, rabanete e beterraba.

Ouvindo a conversa dos adultos sobre os animais, Jesuelly se divide entre sentir medo (por saber que andam soltos por aí, como a cobra sucuri encontrada um dia antes no galinheiro) e pena. “O Pantanal está ficando muito queimado e não tem como os bichinhos ficarem lá, então é por isso que eles vêm para cá”.

Consciente das histórias de seus ancestrais no território, com respeito pela natureza e a tradição passada de geração em geração no quilombo, a menina tem um recado do que espera que mude daqui para frente: “Quero que as pessoas parem de tacar fogo no Pantanal, de queimar as árvores que são a nossa fonte de ar. Estão prejudicando a nossa maneira de viver”.

Assim como vários colegas, Isabella, 14 anos, já perdeu dias de aula em Taguatinga/DF por conta da fumaça das queimadas e do calor extremo. Foto Sthefane Felipa (Instagram @sthefanefelipa)
Assim como vários colegas, Isabella, 14 anos, já perdeu dias de aula em Taguatinga/DF por conta da fumaça das queimadas e do calor extremo. Foto Sthefane Felipa (Instagram @sthefanefelipa)

Fumaça interrompe rotina escolar em Brasília

Da esquina de casa, a menina Isabella e o pai, Herbert Herik, avistavam parte das queimadas da gigante Floresta Nacional de Brasília (Flona) no início de setembro. É a maior unidade de conservação do Distrito Federal, que já teve quase metade da área total consumida pelo fogo, segundo o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). Não bastasse uma perda ambiental destas proporções, imagine a fumaça nos ares da cidade. Somado ao cenário desolador, foram 157 dias sem chuva em Brasília (até 28 de setembro), além do calor sem precedentes. A combinação de fatores leva diversos estudantes de muitas escolas a passar mal e desmaiar, um dia após o outro. Sim, o verbo está conjugado no presente, pois é uma situação longe de ser encerrada.

Situada em Taguatinga, região administrativa do Distrito Federal, a poucos metros da Flona, a CEF 17 tem 872 alunos matriculados no Ensino Fundamental 2, do sexto ao nono ano. Diariamente algum caso de saúde relacionado ao calor ou à fumaça chega ao conhecimento da diretora, Andréia Ferreira. São casos de mal-estar, sangramento nasal e desmaios ou ainda vômitos e calafrios. Um aluno chegou a ter convulsões. O telefone dos pais toca, com pedidos para buscarem os filhos antes do turno acabar.

“Nunca vi nada parecido em 12 anos na direção”, comenta Andréia. “Percebemos os impactos diretamente na vida de todos, desde os professores que precisam passar o conteúdo e, também, sofrem com a situação até os alunos que não conseguem se concentrar. Ficam agitados, impacientes, com baixa energia”, lamenta a diretora.

Importante registrar que as salas de aula da CEF 17 têm ar-condicionado, conforto raro nas escolas públicas. Para tentar amenizar os desconfortos, a cada troca de intervalo os professores incentivam os alunos a beberem água. Em outras escolas do DF, a orientação é promover banhos de mangueira no recreio, para aliviar o calor de forma lúdica com as crianças menores.

Percebemos os impactos diretamente na vida de todos, os alunos que não conseguem se concentrar. Ficam agitados, impacientes, com baixa energia

Andréia Ferreira
Diretora da escola

Cedinho, pela manhã, na caminhada de cinco minutos para a escola, Isabella já confere a temperatura, que na imensa maioria dos dias de setembro não baixava de 36 graus. Aos 14 anos, a estudante do 9º ano já perdeu aulas por causa do calor e da fumaça. Sentiu fraqueza, enjoos, dor de cabeça e febre. Nestes dias, voltou para casa antes do meio-dia e passou horas só descansando, com o climatizador de ar ligado sempre, até se recuperar.

Mesmo com sintomas, levar ao posto de saúde para consulta seria outra odisseia. As emergências estão lotadas, como o pai viu no noticiário, por conta do aumento do número de casos precisando de atendimento e também da greve dos médicos da rede pública de saúde do Distrito Federal, recém-encerrada (27 de setembro, sexta-feira).

“Para ser atendido só com a pulseirinha vermelha, um caos”, explica Herbert, 46 anos, professor de educação física, que também vê impactos em seu próprio trabalho. Uma de suas atividades é dar aulas de tai chi chuan, arte milenar chinesa de meditação e movimento, ao ar livre, já que a natureza proporciona um cenário mais relaxante. Devido ao clima, é impossível marcar qualquer turma antes das 18h, horário ainda abafado, mas não tão insuportável.

Entre os indispostos com o calor estão os mascotes da família, o gatinho Flock e os cães Romeu e Julieta. A tutora Isabella faz o que pode para colaborar, colocando gelo nos potinhos de água, molhando o chão para refrescar as patinhas e deixando o trio na frente do ventilador. Informa-se pelas notícias trazidas pelo pai, que acredita que tudo isso vai longe: “Dizem que é só uma ‘onda de calor’, mas creio que irá piorar. Pois as ações globais realizadas são mínimas para reverter esse quadro”.

Camila Saccomori

Jornalista gaúcha formada pela Unisinos, mestre em Comunicação pela PUCRS. Atuou por 20 anos no Grupo RBS, onde foi repórter e editora nos veículos Zero Hora, clicRBS, Diário Gaúcho e outros. É freelancer desde 2018, com matérias publicadas em jornais, revistas e sites (Terra, Crescer, Porvir etc). Fellow do Dart Center/Columbia University, especialista em Primeira Infância, e bolsista de reportagem das fundações National Press e Heinrich Boell. É instrutora da rede Instituto Fala, ministrando oficinas da Google News Initiative.

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