ODS 1
Kim Freitas, uma influenciadora contra o apagamento de mulheres lésbicas e desfeminilizadas
'Orgulho em ser sapatão': soteropolitana de 29 anos está à frente do ‘ativismo digital caminhão’ e escancara vulnerabilidade de quem foge do padrão heteronormativo.
A influenciadora lésbica e soteropolitana Kim Freitas, 29, relembra com carinho da infância. Sempre foi incentivada a ser quem quisesse. “Minha mãe me permitiu ser apenas uma criança. Então, se eu queria brincar de Barbie, ou se eu queria jogar bola, minha mãe entendia que eu era só uma criança, que o que escolhi brincar não ditaria o meu sexo, digamos assim”. Porém, por volta dos 14 anos, essa realidade livre de preconceitos começou a mudar.
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Por conta da não-feminilidade, Kim passou a enfrentar lesbofobia em diversos ambientes sociais. Ao estudar em uma escola Jesuíta — com predominância de valores cristãos — passou a lidar com opressões contra a sua lesbianidade num momento em que já se entendia como uma mulher sapatona. Invalidavam desde a aparência até as escolhas, sempre com expectativas masculinas, associadas à heteronormatividade, relacionadas ao seu comportamento e trajetória. “Sofri toneladas de bullying e até mesmo quando eu fui tentar me inserir num meio LGBT+ aqui, em Salvador, sofri lesbofobia”, relata.
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Veja o que já enviamosKim se tornou influenciadora na ‘causa sapatona’, acolhendo, na internet, mulheres lésbicas desfeminilizadas como ela. Entre outras pautas, ela reivindica por direitos na saúde, visibilidade e o direito de ser não-feminina: “Eu queria só um espaço ali para poder falar alguma coisa que eu queria ter escutado”. Com 21 mil seguidores, Kim, que também é graduanda em Ciência Social, fala sobre o orgulho em ser uma mulher desfeminilizada e hoje declara fazer parte do mundo de ‘ativismo digital caminhão’, como essas mulheres também são conhecidas, muitas vezes pejorativamente, como as ‘caminhoneiras’.
“Havia poucas mulheres lésbicas não-femininas no meio LGBT+ digital falando sobre a gente”. Com isso, Kim começou a criar conteúdos que explicam a pluralidade do que é ser mulher: “A gente precisa sempre entender que ser sapatona não é universal, ser mulher não é universal”, afirmou.
O mundo do ‘ativismo digital caminhão’
Após começar o trabalho com as redes sociais, Kim passou a empoderar outras mulheres ‘caminhoneiras’. “Quando a gente pensava nas referências da época, eram sempre meninas de São Paulo que culturalmente não dialogavam comigo, não era a minha realidade”, comenta. Seu trabalho na internet levou à co-fundação do clube de benefícios lésbico “Clube Tona”. O projeto conecta profissionais autônomas a compradores/assinantes que buscam serviços em diferentes áreas, suprindo a falta de oportunidades profissionais que essas mulheres enfrentam por conta da aparência.
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Pela visibilidade de suas redes, Kim notou que havia uma lacuna de profissionais que encaixou com a questão do desemprego da população lésbica, “as pessoas comentavam comigo ‘estou atrás de uma dentista, estou atrás de uma barbeira, estou atrás de fulana de tal, não aguento mais a insegurança de ser atendida por homens’”, conta Kim.
A hostilidade, segundo ela, faz com que mulheres lésbicas se sintam vulneráveis e acabem por se cercar apenas em círculos ‘lesbocentrados’ — onde priorizam outras mulheres lésbicas em sua vida, seja na internet, em amizades, em relacionamentos ou no dia a dia. “Toda minha rede de apoio é bissexual ou sapatão, e naturalmente a gente vai andar em lugares aliados, digamos assim, ou que são frequentados, por pessoas LGBT+.”
Visando essa oportunidade, Kim fundou também a Festa Preciosa, um evento pensado para celebrar e promover o lazer de mulheres lésbicas e bissexuais da cidade. “Salvador não tinha uma cena forte voltada para mulheres que amam mulheres. Quando me perguntavam onde era o lugar de sapatão, eu não tinha o que falar durante muito tempo. Agora a gente já tem um aqui, outro ali. Mas é essa necessidade. Ela foi também pescada das minhas observações que chegam via internet.”
“Vai apanhar como um homem”: a cultura da violência de gênero
Em imagens que viralizaram nas redes sociais em abril deste ano, uma jovem lésbica de 26 anos — não identificada —, vestindo uma bermuda com as cores da bandeira LGBT+, sofre diversas agressões em uma plataforma da estação da Luz do metrô de São Paulo. Os vídeos, gravados por testemunhas, mostram a mulher, jogada no chão da estação, levando tapas no rosto, na cabeça e pontapés enquanto sofre ofensas de um policial militar. Além das agressões físicas, a jovem era xingada de “sapatão” e ouviu do policial que iria “apanhar como um homem”. O policial foi identificado e afastado. Tarcísio de Freitas, governador de São Paulo, também repudiou a conduta do policial: “A imagem choca. A gente repudia esse tipo de agressão, pede desculpas à sociedade, nós não vamos tolerar esse tipo de comportamento”, disse o governador de São Paulo.
O caso, que repercutiu nacionalmente, não é isolado. “A gente nunca sabe se vai sofrer algum caso de lesbofobia, se a gente vai apanhar de uma segurança e ser retirada a força de um local que é nosso por direito”, afirma Kim.
Em 2023, o Brasil manteve-se como líder mundial em mortes violentas de LGBT+, com 257 casos documentados, um a mais que em 2022. A Bahia, onde Kim mora, ocupou a quarta posição entre os estados brasileiros e a primeira no Nordeste, com 22 mortes violentas. Os dados são divulgados há 44 anos pelo Grupo Gay da Bahia (GGB).
Além da violência, o uso de banheiros públicos, assim como para pessoas trans, também são preocupações de mulheres lésbicas não-femininas. Para Kim, esses locais são os que ela se sente mais vulnerável: “a gente vê muitos casos de mulheres confundidas com homens por estarem fora dos padrões de gênero e foram mortas, como, o caso de Luana Barbosa”.
Justiça por Luana Barbosa
Luana Barbosa dos Reis, mulher negra, lésbica e periférica, foi brutalmente espancada e morta em 2016, vítima da violência policial em Ribeirão Preto, no interior de São Paulo. O caso ganhou repercussão nacional e internacional, motivando a apresentação de projetos de lei em várias casas legislativas do país, que chamam a atenção para o caso de Luana e para as violências cometidas contra mulheres lésbicas, como a PL 1.667/2023.
Proposto em 2021 e reapresentado pela deputada estadual Verônica Lima (PT-RJ) em 2024, a ‘Lei Luana Barbosa’ visa criar o Dia Estadual de Enfrentamento ao Lesbocídio, que se destina a promover campanhas, atividades e ações públicas de enfrentamento e erradicação do lesbocídio e a construção de uma cultura de não violência contra as mulheres lésbicas.
Em abril deste ano, com dois pareceres favoráveis, o projeto de lei deu entrada na Comissão de Finanças, Orçamento e Planejamento do Rio de Janeiro e foi distribuído para a deputada Fabiana Bolsonaro. Até então segue sem atualização. A parlamentar, apesar de não ter parentesco com o ex-presidente Bolsonaro, afirma que sua ideologia é a mesma do presidente candidato à reeleição.
A crescente do bolsonarismo montou, desde a eleição de Jair Bolsonaro para presidente em 2019, uma frente conservadora contra políticas favoráveis ao público LGBT+. Do outro lado, há resistência e trabalho como resposta. Um levantamento da Agência Diadorim registrou que parlamentares brasileiros propuseram cerca de 4 leis pró-LGBTQIA+ por mês, desde 2019. Dessas, 25 foram aprovadas.
Outros casos de lesbofobia no Brasil
Além do caso de Luana, citado acima, muitos outros problemas heteronormativos minam a segurança de mulheres lésbicas que fogem do padrão da feminilidade. Ana Caroline Sousa Campêlo, de 21 anos, também lésbica, foi encontrada morta em 10 de dezembro em Maranhãozinho, a 232 km da capital São Luís. A jovem, que havia se mudado para a cidade poucos meses antes para morar com a namorada, foi brutalmente assassinada logo após sair do trabalho, tendo a pele do rosto, o couro cabeludo, os olhos e as orelhas arrancados.
A auxiliar de limpeza Thais Cyriaco, 30 anos, foi obrigada a usar o banheiro masculino do supermercado onde trabalha em Campinas, no interior de São Paulo, durante cinco meses. “Eu sou mulher, mas uma promotora do supermercado me viu no banheiro feminino e reclamou com a gerente de Recursos Humanos. No dia seguinte, minha supervisora me procurou e disse: ‘Já que você parece homem, vai ter que usar o banheiro masculino’. Eu retruquei, disse que era mulher e que não queria, mas ela foi irredutível”.
Julia Mendes, de 21 anos na época, foi vítima de agressão e homofobia na estação de metrô de Sapopemba, na Zona Leste de São Paulo. A violência ocorreu após ela ser confundida com um homem pelos seguranças do local. Julia, que é balconista, estava voltando de um evento com amigos na noite do ocorrido. Antes de chegar em casa, ainda dentro da estação de Sapopemba, ela se dirigiu ao banheiro feminino, onde foi surpreendida por duas funcionárias que tentaram impedi-la de entrar. “Elas me chamavam: ‘moço, moço, moço’. Eu tive um contato visual com elas, tentando explicar que eu era uma menina. Achei que elas tinham entendido”, relatou Julia em um vídeo sobre a situação.
Dados da pesquisa ‘I LesboCenso Nacional: Mapeamento de Vivências Lésbicas no Brasil’ realizada pela Liga Brasileira de Lésbicas e Associação Lésbica Feminista de Brasília — Coturno de Vênus, em 2022, apontaram que 79% das mulheres entrevistadas para a pesquisa já sofreram algum tipo de lesbofobia. Entre os atos mais recorrentes estão: assédio moral, assédio sexual e violência psicológica.
Dificuldades no acesso à saúde pública
O Observatório das Desigualdades destacou em 2023 a discussão sobre a saúde da população LGBTQIA+, que enfrenta preconceitos e discriminações históricas. Apesar de avanços como o reconhecimento da União Homoafetiva e a criminalização da LGBTfobia pelo STF, a efetivação desses direitos é desafiada por grupos conservadores e pela falta de políticas adequadas.
Um estudo denominado ‘Saúde das mulheres lésbicas: promoção da equidade e da integralidade’, aponta alguns obstáculos em relação a mulheres lésbicas e saúde pública. O primeiro problema está relacionado à falta de acesso das mulheres lésbicas aos serviços de saúde devido ao constrangimento e à vulnerabilidade que sentem devido a sua sexualidade.
A necessidade de revelar sua orientação sexual em serviços que seguem modelos heterossexuais afasta as mulheres lésbicas e bissexuais do atendimento. Os autores destacam que a vergonha da exposição, a insegurança sobre a confidencialidade e o medo da reação dos profissionais são questões críticas neste contexto.
Por outro lado, o segundo problema identificado é que, mesmo quando as mulheres lésbicas não se sentem desconfortáveis em revelar sua sexualidade aos profissionais de saúde, elas ainda não recebem um atendimento específico em serviços guiados pela lógica heteronormativa. As crenças pessoais e religiosas dos profissionais, a fragilidade na formação e a naturalização da heterossexualidade são fatores problemáticos.
Os autores desse estudo apontam três barreiras principais ao atendimento de saúde para mulheres lésbicas: o apagamento e a falta de debate sobre a diversidade sexual; a ausência de serviços seguros e integrais; e a falta de protocolos e conhecimento sobre as necessidades específicas das lésbicas.
Essas especificidades incluem desde diferenças na prevenção de Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs) e possíveis fatores de risco para doenças, devido à baixa ou precária atenção à saúde deste grupo, até questões relacionadas à saúde mental, violência e abuso de drogas e álcool, em decorrência do contexto social.
Os estudos mostraram também que o constrangimento ao revelar a orientação sexual e a inadequação dos serviços médicos guiados por modelos heteronormativos são obstáculos significativos. Além disso, a saúde mental dessas mulheres é impactada pela violência e discriminação. A recente pesquisa da UFMG e UFRJ durante a pandemia de Covid-19 revelou que 36% da população LGBT+ enfrenta discriminação semanalmente, com 11% ocorrendo em serviços de saúde.
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Jornalista formado pela Universidade Nove de Julho. Atualmente integra o time de repórteres correspondentes da Agência Mural de Jornalismo das Periferias e foi estagiário no Canal Reload. Nascido e criado nas periferias da Zona Sul de São Paulo, é apaixonado por comunicação, histórias e explorar a cidade de bicicleta.