ODS 1
Complexo de Pedrinhas, 10 anos depois dos massacres: reformas e prêmio de gestão
Especial 'Complexo de Pedrinhas: marcas de uma barbárie' | Considerada a pior penitenciária do país em 2014 após chacinas em série, conglomerado prisional de São Luís passou por mudanças mas ainda há denúncias de violações dos direitos dos encarcerados
O Maranhão tem tentado abandonar o passado de chacinas e decapitações no Complexo Penitenciário São Luís (antigo Complexo de Pedrinhas). O nome do grande aglomerado de unidades prisionais não foi a única mudança: atualmente o Governo do Maranhão tem sido reconhecido pela gestão penitenciária. Em 2023, o estado conquistou a premiação de Melhor Sistema Penitenciário do País como 1° lugar no Ranking Prisional do Selo de Gestão Qualificada em Serviços Penais, devido ao maior registro de unidades entre os 30 primeiros lugares do Selo de Gestão Qualificada em Serviços Penais do Ministério da Justiça.
A rebelião continuada entre 2013 e 2014 com uma sequência de massacres foi o ápice da crise no sistema prisional do Maranhão: naquele momento, o histórico de motins já garantia a fama e o lugar de Pedrinhas entre as piores e mais violentas penitenciárias do país. Em novembro de 2010, 18 presos foram mortos durante uma rebelião que durou 27 horas: superlotação, maus tratos, péssimas condições das unidades e a guerra entre facções dentro do Complexo Penitenciário de Pedrinhas já faziam parte do cenário. Também em 2010, alguns encarcerados foram decapitados após a execução pelos rivais.
Quando a situação foi controlada após os meses de rebelião continuada, foi iniciado um processo de reforma do sistema prisional. Foram tomadas providências para mudanças na infraestrutura, na administração interna das unidades, na forma de custódia e divisão das pessoas encarceradas em um processo que vem desde 2014. Contudo, até hoje entidades de defesa dos Direitos Humanos ainda reclamam de violações dos direitos de pessoas em privação de liberdade nas unidades do Complexo de Pedrinhas, agora Complexo Penitenciário São Luís.
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Afinal, que medidas foram tomadas ao longo dos últimos dez anos e qual a situação real das unidades do Complexo?
Medidas emergenciais: um passeio até dez anos atrás
No começo do ano de 2014, o Ministério da Justiça se juntou ao Governo do Maranhão em uma medida emergencial para que ações mais efetivas começassem a ser tomadas para acabar com a rebelião continuada no Complexo Penitenciário de Pedrinhas. Os motins e ataques orquestrados pelas facções criminosas que ocupavam as unidades prisionais já batiam a marca de mais de 60 pessoas assassinadas e quase um ano de descontrole do estado sobre o sistema prisional.
A Organização das Nações Unidas (ONU) e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) já haviam se pronunciado cobrando o Estado brasileiro para que acabasse com a rebelião e, consecutivamente, com as violações dos direitos humanos a que as pessoas em privação de liberdade estavam submetidas nas sete unidades que compunham o Complexo de Pedrinhas na época. O Conselho Nacional de Justiça também se reuniu no início daquele ano para analisar e organizar as solicitações de medidas a serem tomadas: a mais urgente era o pedido de intervenção federal em São Luís. No entanto, embora previsto em Constituição, o mecanismo de intervenção federal nunca tinha sido acionado no Brasil e não foi daquela vez. Apenas em 2018 ocorreu a primeira intervenção no país, na segurança do estado do Rio de Janeiro.
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Veja o que já enviamosEm 2014, a primeira medida de contenção da rebelião continuada foi a criação do Comitê de Gestão Integrado com a participação de representantes dos governos federal e estadual para a estruturação das ações. A decisão foi anunciada durante a visita emergencial do então ministro da Justiça, José Eduardo Cardoso, que chegou a São Luís após reunião com a presidenta Dilma Rousseff. Outras importantes medidas iniciais foram o mutirão realizado nas unidades para verificar os processos das pessoas privadas de liberdade e, assim, poder reduzir a superlotação com a soltura daquelas que já haviam cumprido a pena, mas ainda não tinham recebido a progressão; o reforço do efetivo da Força Nacional, que já estava atuando em São Luís na contenção da rebelião desde outubro de 2013; e um investimento de mais de R$ 1 milhão para a criação de novas vagas.
A reunião emergencial, com a presença da governadora Roseana Sarney, do ministro Cardozo e de autoridades federais e estaduais, realizada em São Luís no dia 9 de janeiro de 2014, foi consequência direta da comoção nacional ocorrida após a morte da menina Ana Clara, uma criança de seis anos, assassinada em um incêndio de ônibus uma semana antes. O ataque fez parte de uma série de atos de terror na capital maranhense, ordenada pelos chefes das organizações criminosas responsáveis pela rebelião ainda em curso no Complexo de Pedrinhas.
Estava claro que o Governo do Estado tinha perdido o controle das unidades prisionais. A rebelião continuada teve a autoria de duas facções principais que estavam em disputa territorial na época: o Primeiro Comando do Maranhão (PCM) – com raízes no interior do estado, em especial da Baixada Maranhense, e influência do Primeiro Comando da Capital (PCC), com base em São Paulo – e o Bonde dos 40 – facção composta por gangues de São Luís, capital do Maranhão. Neste período, nem os agentes penitenciários (hoje chamados de policiais penais) conseguiam entrar nos pavilhões, uma vez que as pessoas em cumprimento de pena não ficavam dentro das celas, mas soltas nas unidades superlotadas, com quase o dobro de sua capacidade. A estrutura das cadeias estava seriamente danificada após um ano de rebeliões com quebra-quebras e incêndios, algumas literalmente caindo aos pedaços.
Assessora especial do Ministério da Justiça na época e componente do Comitê de Gestão Integrado, a advogada Clarice Calixto afirma que a situação era de “completa desorganização” no Maranhão. “O secretário de Justiça e Administração Penitenciária, Sebastião Uchôa, tomou uma série de medidas equivocadas para a contenção da crise”, analisa Clarice, dez anos após a criação do comitê. Em entrevista, a advogada – atual secretária-geral da Advocacia Geral da União – conta que a sensação que, ao morar meses no Maranhão para auxiliar nas medidas de contenção, era a de que o básico no complexo prisional – alimentação, vestuário, até mesmo limpeza do sistema de esgoto – era feito de forma amadora; todos aqueles problemas juntos chegaram até a crise de proporções internacionais. Para Clarice Calixto, havia, por parte dos representantes governos federal e estadual, muita vontade de resolver o problema que o Complexo de Pedrinhas havia se tornado, mas a tarefa era grande demais, uma vez que nem o básico estava organizado.
Camila Neves – também integrante do Comitê de Gestão, indicada pelo Ministério da Justiça – relata o desespero que sentiu ao conhecer a situação das unidades. “Durante uma visita, o secretário da época, Sebastião Uchôa, demonstrou o maior orgulho em dizer que a forma que estavam lidando com a situação das facções tinha sido construir um muro no meio da unidade, separando as pessoas. Como se um muro fosse resolver um problema tão grande como aquele”, lembra a mineira Camila, que chegou a ser subsecretária de Administração Penitenciária do Maranhão entre 2015 e 2016. “A mesma empresa licitada para fornecer fazer a limpeza do esgoto era a que fornecia outros serviços. A comida chegava estragada e ficava um monte de lixo fedendo, misturado a esgoto, com ratos enormes do tamanho de gatos, era absurda a situação”, acrescenta Camila
Há quem diga que, sem a sequência de chacinas entre 2013 e 2014, a situação de negligência e violações dos direitos humanos no Complexo Penitenciário de Pedrinhas não teria tido medidas para a resolução tão cedo. O então secretário estadual Sebastião Uchôa chegou a dizer, em entrevista a uma emissora de rádio em janeiro de 2014, que a onda de atentados determinado pelos chefes de facções era “um mal que vinha para o bem” pois permitiria a construção de novas penitenciárias e outras medidas. Por outro lado, é inegável que foram as constantes violações dos direitos humanos em Pedrinhas que impulsionaram uma crise tão sangrenta.
Nos meses pós-massacres, último ano do governo de Roseana Sarney como governadora do Maranhão, as unidades ainda viviam em clima de guerra. “Todo dia era a mesma coisa. De manhã, a gente colocava os presos no pátio e passava o dia inteiro soldando as grades de volta nas celas porque eles não aceitavam, quebravam tudo de novo à noite” conta hoje o policial penal Michael Trombim, na época responsável pelo comando do Grupo Especial de Operações Penitenciárias (Geop), equipe que realizava a contenção de motins.
A decisão de soldar as grades diariamente partiu do major Alessandro Frankie, da Polícia Militar da Paraíba, que assumiu a direção do Complexo de Pedrinhas no segundo semestre de 2014 e foi o principal responsável pelas medidas de contenção na época. Até setembro de 2014, as facções em conflito ainda conviviam juntas nas unidades; após assumir a Superintendência de Controle e Execuções Penais, o major decretou a separação por facções, afirmando ser “desumano” que a medida não tenha sido tomada antes.
Enquanto isso, além da contenção, também era urgente a melhoria das condições mínimas de sobrevivência. “A primeira medida que tomamos foi mudar a empresa que fornecia a alimentação, fazer todo mundo comer junto, pessoas em privação de liberdade e agentes. Porque dessa forma a gente conseguia ter um controle maior de qualidade” conta a advogada Camila Neves, hoje trabalhando na Secretaria de Planejamento e Gestão do Governo de Minas. A comida foi uma das principais estratégias para reestruturação, uma vez que comer bem dentro do Complexo de Pedrinhas era usado como moeda de troca entre as pessoas que tinham mais condições.
Outra medida de segurança imediata, lembra Camila, foi a distribuição de uniformes para todos: os agentes com calça e camisas verdes; pessoas privadas de liberdade com shorts e camisetas laranjas para os homens e rosas para as mulheres; além de uniforme para trabalho fora das instituições prisionais. Com isso, era possível distinguir em dias de motins quem era quem, o que era praticamente impossível antes com todos à paisana.
Limpeza, reconstrução, mais rigidez nas regras, além de normas e protocolos novos a serem seguidos foram a rotina de um trabalho que parecia não ter fim. Até mesmo materiais de higiene pessoal e chinelos começaram a ser distribuídos para acabar com o comércio ilegal que ocorria nas unidades. “Vendiam de tudo lá dentro – comida, sabonete, droga, até mulheres iam se prostituir lá dentro mesmo sem ter nenhum parente e conseguiam entrar com facilidade”, conta Michael.
As medidas de reestruturação do sistema prisional do Estado se intensificaram com a posse de Flávio Dino, juiz federal no Maranhão por 12 anos, como governador do estado. Murilo Andrade, experiente gestor de unidades prisionais de Minas Gerais, foi nomeado secretário de Administração Penitenciária. A partir de então, a lógica foi invertida: as atividades de ressocialização ganharam força com o discurso de reaproveitamento do investimento público.
O que mudou em 10 anos
A superlotação crônica do Complexo de Pedrinhas impôs a criação de mais vagas no sistema prisional do estado como prioridade para o processo de mudanças. Contudo, apesar do crescimento de vagas em 58,1% (entre 2014 e 2018), o crescimento da população carcerária foi ainda maior, em 63,5%. Enquanto eram construídas novas unidades no Maranhão, a solução para aumentar o número de vagas no Complexo de Pedrinhas foi adaptar os espaços que já existiam, construindo mais camas nas celas. Antes eram usadas beliches de concreto acopladas às paredes na maioria dos prédios; atualmente são triliches, aumentando as vagas sem aumentar as celas. Dessa forma, em teoria, ninguém dormiria no chão ou em redes. No entanto, dez anos depois ainda existem unidades em que as pessoas dormem “na praia” (no chão) por conta da superlotação.
De acordo com o Relatório de Informações Penais (Relipén) do Ministério da Justiça e Segurança Pública com dados de junho de 2023, o Maranhão tinha uma população prisional de 11.650 pessoas – mais que o dobro das 5.257 de 2014. Mas a capacidade de vagas, ainda de acordo com o Relipen, era de 12.454. Para alcançar esse número, foram construídas novas unidades: a Unidade Prisional de Ressocialização São Luís 7 (UPRSL 7), que veio se somar às outras seis unidades e ao centro de triagem; a UPMax, de segurança máxima e a UPR Regional, ambas em São Luís, no mesmo bairro de Pedrinhas mas independentes do complexo; e de outras unidades em municípios do interior do Maranhão para que as pessoas privadas de liberdade não ficassem mais centralizadas na capital.
Outra medida estrutural foi a construção de um grande muro ao redor das unidades do complexo, unificando os prédios de um lado e de outro da BR-135. Foram construídas duas portarias unificadas para os dois lados do Complexo Penitenciário São Luís – um com seis unidades e outro com duas. O presídio feminino continua separado da estrutura, mais distante. Dessa forma, os familiares que vão visitar qualquer unidade passam pelo mesmo procedimento de segurança na entrada para a verificação do material que a pessoa está levando.
As regras de visita estão mais rígidas para reduzir itens proibidos como drogas, celulares e até armas. Para entrar, a pessoa tem que ter o nome previamente autorizado (pessoas privadas de liberdade só podem acrescentar nomes em sua lista após o parentesco comprovado, ou em caso de casamento ou união estável); apresentar sua identificação pessoal; entregar comidas, materiais de higiene ou outros objetos para inspeção no scanner; ser submetida ao detector de metais; e passar pelo bodyscan (uma das mudanças para acabar com as revistas vexatórias a que os visitantes eram submetidos).
Além de itens pessoais de higiene pessoal, são permitidas roupas de cama e banho, peças íntimas, ventiladores – pequenos, de marcas aprovadas, levados desmontados e sem a tela de proteção para evitar que a pessoa possa usar como esconderijo de drogas) e remédios de uso continuado desde que aprovados pela segurança e com recomendação médica. De acordo com autoridades penitenciárias, a entrada de materiais proibidos só pode ocorrer, atualmente, por corrupção humana ou por meio dos caminhões de produtos que chegam para as oficinas – como cargas de areia ou pedras – onde podem ser escondidos itens.
As obras em Pedrinhas incluíram a construção de oficinas de trabalho para os encarcerados: fábrica de blocos de concreto para calçamento, fábrica de móveis, fábrica de chinelos, lavanderia para peças utilizadas pelos hospitais do estado, entre outras. A parte interna do complexo, que interliga as unidades, também passou por processo de urbanização com abertura de ruas, jardinagem e acessibilidade. A segurança foi reforçada com mais de 1.300 câmeras em todo o sistema prisional e centrais de monitoramento.
Dados da Seap (Secretaria Estadual de Administração Penitenciária) mostram que, desde 2015, 8 mil novas vagas foram geradas com a construção ou reforma de mais de 60 unidades. Com isso, a taxa de ocupação caiu de 168% para 93% em 2023. Também foram construídos 30 galpões para trabalho, 52 laboratórios de informática, 108 salas de aula e 43 bibliotecas para a ressocialização. Todo esse investimento em estrutura resultou na premiação de 13 unidades em primeiro lugar no ranking do Selo de Gestão Qualificada em Serviços Penais. Outras conquistas anunciadas pelo governo estadual foram zerar o índice de analfabetismo nas unidades prisionais e implementar atividades de ressocialização por meio do trabalho ou estudo em todas as instituições de cumprimento de pena do Maranhão.
Apesar dos números, entidades da sociedade civil afirmam que, mesmo com todas as intervenções, o poder dentro das unidades prisionais ainda está na mão do crime organizado e não do Estado. O que significa dizer que, a qualquer momento, pode estourar novamente uma grave crise no sistema.
Maranhão na Corte Interamericana de Direitos Humanos
Em outubro de 2013, a Sociedade Maranhense de Direitos Humanos, a seccional maranhense da Ordem dos Advogados do Brasil, e as ONGs Justiça Global e Conectas fizeram uma petição à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), parte da Organização dos Estados Americanos (OEA), a respeito das violações dos direitos das pessoas privadas de liberdade e denunciando torturas. Em dezembro do mesmo ano, a Corte Interamericana de Direitos Humanos determinou uma série de recomendações que o Estado do Maranhão deveria cumprir para que as unidades garantissem mínimas condições para o cumprimento de penas privativas de liberdade na Medida Cautelar nº 367-13. As recomendações, em 2014, se transformaram em determinações e o caso passou a ser acompanhado pela Corte.
Em 2016, os órgãos peticionários divulgaram um relatório comprovando que o Estado brasileiro não estava cumprindo com as determinações no caso do Complexo de Pedrinhas. O documento demonstrou que, mesmo após dois anos do ápice da crise carcerária, as condições de higiene, saúde e segurança ainda eram precárias. No ano seguinte, em 2017, a Corte tomou a decisão inédita de juntar quatro casos brasileiros envolvendo violações dos direitos humanos: Complexo de Pedrinhas (Maranhão), Complexo do Curado (Pernambuco), Instituto Penal Plácido de Sá Carvalho (Rio de Janeiro) e a Unidade de Internação Socioeducativa (Espírito Santo).
A junção dos casos que tramitavam na Corte Interamericana teve como objetivo cobrar do Estado a respeito da crise do Sistema Carcerário Brasileiro. Na época, o Brasil foi intimado a responder 52 perguntas sobre a situação dentro dos cárceres, que iam desde dados estatísticos sobre mortes dentro das unidades até informações sobre corrupção de agentes penitenciários e proteção aos presos LGBTI+.
Em 2018, a Corte aprovou resolução determinando “a adoção imediata das medidas necessárias para proteger eficazmente a vida e a integridade pessoal de todas as pessoas privadas de liberdade no Complexo Penitenciário de Pedrinhas”. E renovou medidas cautelares por considerar que, mesmo com as intervenções feitas pelos governos federal e estadual, as unidades ainda estavam superlotadas e com denúncias de maus tratos. Entre as medidas, foi determinada a reforma em todo o Complexo de Pedrinhas (já então chamado de Complexo Penitenciário São Luís), cuja estrutura não cumpria com os requisitos para estabelecimentos de cumprimento de pena de privação de liberdade.
No fim de 2019, após analisar relatórios da CIDH, que havia realizado visita ao Maranhão e a outros seis estados um ano antes, e do Ministério Público do Maranhão e também de documentos enviados pelos governos, a Corte Interamericana, apesar de reconhecer os esforços do estado para melhor a situação, voltou a requerer medidas para proteção da vida dos presos no complexo. Na resolução de 2019, o tribunal destaca que o crescimento da população carcerária dificulta mudanças estruturais. “Esse crescimento torna ineficazes as medidas que possam ser tomadas a respeito do aumento de vagas nos centros penitenciários, que continuam sendo insuficientes ante o alto número de pessoas que neles ingressam”, aponta a resolução. A Corte ressalta ainda que “a falta de acesso a serviços de saúde e a salubridade” provoca “risco à vida e à integridade pessoal das pessoas privadas da liberdade, dos funcionários e dos visitantes do Complexo Penitenciário de Pedrinhas”.
O tribunal determinou ainda a formulação de “Plano de Contingência, com ações detalhadas e prazos atualizados para a reforma estrutural e de redução da superpopulação e da superlotação no Complexo Penitenciário de Pedrinhas”, além de requerer uma série de informações sobre saúde, segurança, uso de armas. E recomendou a realização de mutirões judiciais para acelerar julgamentos e medidas para a progressão de regime e ainda ampliação do número de defensores públicos para atuar nas unidades. Também ficou decidido que a CIDH continuaria acompanhando os casos. Em 2021, a Corte promoveu uma audiência pública para discutir a situação dos quatro estabelecimentos prisionais brasileiros em investigação.
Dessa forma, a CIDH, ao longo dos últimos 10 anos, tem realizado sistematicamente o monitoramento do cumprimento das medidas impostas pela Corte, com apoio das entidades da sociedade civil que fizeram a petição inicial. Ainda em 2023 o Maranhão respondeu às mais recentes determinações da Corte, com nova audiência para apresentar as ações realizadas pelo Governo do Estado a respeito do cumprimento das medidas cautelares. “Todo ano a gente responde, faz o que eles pedem, mas todo ano eles pedem mais coisas. A gente cumpre com o que está determinado e depois surgem mais medidas” comentou Murilo Andrade, secretário de Administração Penitenciária do Maranhão desde 2015. O Governo do Estado afirma que as mazelas de violações dos direitos humanos ficaram no passado e hoje é possível ser trabalhada a ressocialização das pessoas privadas de liberdade.
Já as organizações que fizeram a petição inicial à CIDH discordam. Luís Pedrosa, presidente do Conselho Estadual dos Direitos Humanos e que participou da petição à CIDH pela OAB-MA na época, afirma que atualmente existe uma acomodação e, até, uma omissão por parte do Estado para os problemas dentro das unidades prisionais. “É uma propaganda política muito forte apresentando o presídio como se fosse o lugar mais tranquilo do mundo e um espaço onde o Estado tivesse o controle totalmente da comunidade carcerária, A avaliação de quem convive com a comunidade carcerária, que recebe suas queixas, suas denúncias é de que a divisão dos presídios por facção prejudicou muito a progressão de penas”, afirma Pedrosa, destacando que as denúncias ocorrem até hoje. “Continua a haver as arbitrariedades, as torturas, a negação de direitos e a superlotação carcerária que, em determinados pavilhões, chega a ser absurda”, acrescenta Pedrosa.
Joisiane Gamba, da Sociedade Maranhense de Direitos Humanos, afirma que as ações “não passam por uma política de desencarceramento e quem acaba sofrendo com isso sempre é o mais pobre”. As entidades da sociedade civil defendem que não adianta construir novas vagas para acabar com a superlotação das unidades, mas que são necessárias políticas preventivas e contrárias ao superencarceramento, que tem sido a tendência do país. Os peticionários alegam que sempre será instável a segurança das unidades prisionais enquanto continuarem prendendo as pessoas indiscriminadamente.
De acordo com as organizações, a superlotação continua. Hoje, por exemplo, a taxa de ocupação da Penitenciária Regional de São Luís é de cerca de 176%, a da UPRSL 1 de 121%, UPRSL 3 de 158%, UPRSL 5 de 148%, UPRSL 7, de 103%, segundo dados da SMDH. Em algumas dessas unidades, as pessoas ainda dormem no chão, sem camas o suficiente para todos.
Também existe uma morosidade por parte do Estado para o cumprimento de algumas medidas: somente em agosto de 2023, por exemplo, foi empossado o Comitê Estadual de Combate à Tortura (CECT/MA), órgão instituído por meio da Lei Estadual Nº 10.334 de 2015. A finalidade era erradicar e prevenir a tortura em todo o estado do Maranhão, promovendo o respeito aos direitos humanos, em especial das pessoas privadas de liberdade: este instrumento só saiu do papel oito anos depois, mesmo sendo uma das medidas impostas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos em 2014.
As entidades também ainda recebem queixas sobre maus tratos por parte dos policiais penais. Repórteres da Folha de S. Paulo que estiveram no complexo penitenciário mais recentemente também ouviram reclamações sobre a má qualidade da comida, a escassez de itens de higiene e a falta de atendimento médico adequado. Os conflitos diminuíram muito com a separação dos encarcerados por facções que permanece até hoje. Mas o Bonde dos 40 e o PCM seguem organizados dentro do complexo onde há também integrantes do PCC e Comando Vermelho, hoje atuantes no Maranhão. São cicatrizes do conflito de 10 anos atrás que nunca fecham.
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Jornalista e mestra em Comunicação pela UFMA (Universidade Federal do Maranhão. É cofundadora da agência Sebá Comunica e assessora de comunicação na pauta dos Direitos Humanos. Metade maranhense e metade carioca, é apaixonada por leitura e escrita criativa.