ODS 1
Raposa Serra do Sol reescreve sua história
Uma das maiores terras indígenas do país tem gado, horta, psicicultura e autogestão. Ao contrário do que afirmara o ministro Gilmar Mendes, a atividade econômica é exitosa e os indígenas não passam fome
Se o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), tivesse aceito o convite das lideranças da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, localizada ao norte de Roraima, seria obrigado a admitir que errou feio. Oito meses depois de afirmar, numa audiência no STF, que a demarcação do território e a consequente saída dos arrozeiros da área teriam levado os indígenas a comerem do “lixão” na capital Boa Vista, o #Colabora constatou, ao visitar o território, uma realidade completamente diferente daquela propagada erroneamente pelo ministro.
Leu essa? Garimpo divide opiniões e socializa impactos na Raposa Serra do Sol
Identificada como uma das maiores terras indígenas do Brasil, Raposa Serra do Sol está encravada na tríplice fronteira entre Brasil, Venezuela e Guiana. Seus 1,7 milhão de hectares estão espalhados por três municípios (Pacaraima, Normandia e Uiramutã) e, pelas mãos dos indígenas, vem se tornando um território cada vez mais produtivo, tendo chegado a 2024 autossuficiente do ponto de vista econômico.
Ao todo, seis etnias convivem na Terra Indígena. São elas: Macuxi, Wapichana, Taurepang, Patamona, Sapará e Ingarikó, dos troncos linguísticos Karib e Aruak. É um território com uma rica diversidade cultural, assim como o próprio estado de Roraima, onde vivem 11 povos indígenas do Brasil.
“Só quem não conhece a nossa realidade, pode ter essa ideologia de que os indígenas passam fome”, critica Amarildo Macuxi, líder indígena da T.I. Raposa Serra do Sol: “Não estamos passando fome e nem vivendo do lixão”.
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Veja o que já enviamosAs atividades econômicas no território indígena são diversas, sendo a pecuária a principal. As lavouras tradicionais de mandioca, feijão e milho estão por toda parte, espalhadas pelas comunidades. A piscicultura vem, aos poucos, se consolidando. Sem falar na experiência exitosa de autogestão que os indígenas adotaram na Raposa Serra do Sol.
Rebanho da Terra Indígena Raposa Serra do Sol conta com 60 mil cabeças de gado. (Foto: Arquivo CIR)
Atividades econômicas
Um rebanho de 60 mil cabeças de gado vem garantindo autossuficiência econômica no território, o que leva José Arizona, do povo Macuxi, a considerá-la “uma bacia de criação de boi”. Ele é tuxaua geral da terra indígena, título concedido exclusivamente às lideranças políticas.
“Uma vaca para o Índio” é o nome do projeto que deu início ao rebanho na Raposa Serra do Sol. O projeto é resultado de uma iniciativa conjunta dos missionários da Consolata, uma instituição religiosa que acompanha os povos indígenas na Amazônia há 75 anos, em parceria com os indígenas. O primeiro lote de gado doado foi para a comunidade de Maturuca e, posteriormente, expandido para outras comunidades e regiões da Terra Indígena.
Criado de forma coletiva, o rebanho vem ajudando a engrossar as estatísticas do estado, mas, segundo o tuxaua, os dados oficiais divulgados pela Agência de Defesa Agropecuária de Roraima (Aderr) são subnotificados: “Por isso, estamos lutando por esse reconhecimento de origem e reivindicamos certificação de que somos produtores de gado em Roraima”. O gado, explica, sai da Terra Indígena, mas é registrado como sendo de outra região do estado e não das comunidades da Raposa Serra do Sol.
Banco de sementes da Terra Indígena Raposa Serra do Sol devolveu diversidade ao território. (Foto: Arquivo CIR)
Outra iniciativa econômica que vem se mostrando viável é a adoção do manejo sustentável. Ao perceber que as sementes tradicionais do território estavam acabando, a comunidade criou sua própria casa de sementes. “Voltamos a ter diversidade”, comemora Amarildo Macuxi, coordenador do banco de sementes da região Serras – por ser um território muito grande, a TI é dividida em quatro áreas geográficas e Serras é uma delas.
Linha de frente junto às lideranças masculinas da comunidade, as mulheres tiveram um papel fundamental na conquista pela terra. A tuxaua geral das mulheres indígenas da região Serras, Elínia de Souza, também do povo Macuxi, observa que hoje conseguem trabalhar seus projetos de sustentabilidade com mais tranquilidade. Os produtos são vendidos em feiras livres.
“No passado, a Raposa Serra do Sol era muito violentada. Hoje, temos mais liberdade para trabalhar e produzimos artesanatos, costuramos, temos roça, criamos gado. Tudo isso para garantir nosso bem viver em um território sustentável”, comemora Elínia.
Inimigos à espreita
Conhecido por seus laços de proximidade com os ruralistas, Gilmar Mendes revoltou os indígenas, em agosto de 2023, quando foi enfático ao criticar a política indigenista brasileira por destinar “muita terra” aos povos originários.
Na presença de centenas de indígenas que estavam presentes na Praça dos Três Poderes, em Brasília, para onde se deslocaram para acompanhar de perto mais uma das sessões de julgamento do Marco Temporal — tese jurídica que defendia que os indígenas só teriam direito às terras que ocupavam em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição –, o ministro defendeu que as terras indígenas deveriam ser abertas a grandes empreendimentos. A mineração, por exemplo, seria, a seu ver, uma alternativa interessante.
Para reforçar sua linha de raciocínio, citou, especificamente, o exemplo da Raposa Serra do Sol. Demarcada em 2005 e homologada de forma definitiva quatro anos depois, em 2009, a demarcação teria levado os indígenas a “passarem fome” e, o pior, muitos deles estariam sendo obrigados a “catar lixo em Boa Vista”, a capital do estado.
A declaração deixou os indígenas revoltados, levando o Conselho Indígena de Roraima (CIR) a publicar, à época, em suas redes sociais, uma declaração, considerando a fala “absurda e preconceituosa”. O ministro chegou a ser convidado a ir ver de perto o que vinha ocorrendo na Terra Indígena após a desintrusão, ou seja, depois da expulsão dos arrozeiros que ocupavam a área de forma ilegal. O convite, no entanto, nunca foi aceito.
Com o rosto pintado de urucum, Joenia Wapichana foi a primeira advogada indígena a fazer uma sustentação no STF com o caso da Raposa Serra do Sol. Quinze anos depois, assumia a presidência da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), no terceiro mandato do presidente Lula. Olhando em retrospecto, Joenia avalia que houve avanços na Raposa Serra do Sol, mas ressalta que os invasores continuam à espreita e tentam voltar ilegalmente para a Terra Indígena. “Os invasores, especialmente garimpeiros, insistem em entrar no território. Sendo necessário que os próprios indígenas criem mecanismos de defesa e proteção, pois o Estado brasileiro falha quando se trata de proteger os territórios indígenas. É preciso continuar vigilante. A luta continua”, afirma.
Originária de Roraima, onde nasceu na comunidade indígena Cabeceira do Truarú e onde viveu até os oito anos de idade, quando se mudou com a mãe para a capital Boa Vista, Joenia vem acompanhando de perto o que acontece na Raposa Serra do Sol.
Décadas de resistência
Os Macuxi, Taurepang, Ingarikó, Patamona, Sapará e Wapichana da Terra Indígena Raposa Serra do Sol estão reescrevendo sua história e vivendo em liberdade. “Após a demarcação, a gente tem vivido essa vida livre, de ir e vir dentro do nosso território”. A exaltação à liberdade do tuxaua geral José Arizona Macuxi, líder máximo da terra tradicional, dá à medida do que se transformou a área, após a expulsão dos arrozeiros.
“Quando criança, vivia com medo e andava escondido para não sofrer humilhações e ameaças de fazendeiros”, lembra, contando que, hoje, pesca, caça e perpetua sua cultura sem ser obrigado a pedir licença aos invasores.
Os 19 anos que separam o passado, antes da demarcação, do presente significam uma verdadeira revolução para a comunidade. Os mais de 28,1 mil mil indígenas da Raposa Serra do Sol transformaram o sentimento de medo em resistência.
Não foram poucos os momentos de violência sofridos pela comunidade. O incêndio do Centro Indígena de Formação e Cultura Raposa Serra do Sul (CIFCRSS), ocorrido em 2005, foi um deles. Na ocasião, homens encapuzados e armados com armas de fogo e pedaços de pau atearam fogo no local. Sem falar nos inúmeros ataques perpetrados contra algumas das comunidades da Terra Indígena.
A história da Raposa Serra do Sol remonta os anos 1970. O país vivia uma ditadura militar e os indígenas do território decidiram que era hora de ir à luta. À época, a decisão foi no modo “vai ou racha”, como lembram algumas lideranças. Mas até chegar a demarcação (em 2005), o processo foi longo e tortuoso. A área foi reconhecida em 1993 pela Funai, delimitada fisicamente cinco anos depois, em 1998, mas só foi homologada em 15 de abril de 2005, durante o primeiro mandato do presidente Lula.
Protocolo de Consulta
No Dia Internacional da Mulher, em 8 de março deste ano (2024), a Terra Indígena Raposa Serra do Sol protagonizou um ato histórico. Naquele dia, lançava o seu Protocolo de Consulta – uma espécie de Carta Magna que assegura e protege os direitos dos indígenas e o território onde vivem, além de garantir autonomia e fortalecer a organização social. O documento, de 59 páginas, levou seis anos para ser concluído.
Considerado a lei máxima da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, o protocolo garante o direito de a comunidade ser consultada para toda e qualquer decisão que afete o território. Construído com o apoio jurídico do Conselho Indígena de Roraima (CIR), o documento é resultado de um processo de construção coletiva.
No dia do lançamento, o protocolo foi distribuído para os cerca de 47 tuxauas da Raposa Serra do Sol. Exemplares também foram distribuídos para o Grupo de Proteção, Vigilância Territorial Indígena (GPVITI) e para os agentes indígenas de saúde.
“O Protocolo de Consulta é o resultado da resistência da comunidade e da necessidade de o Estado brasileiro manter um diálogo transparente, além de respeitar o posicionamento dos povos indígenas”, analisa Joenia, presidente da Funai.
Diferentemente de outros protocolos de consulta que o CIR ajudou a construir, baseado na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que garante aos povos originários a Consulta Livre Prévia e Informada, o da Terra Indígena Raposa Serra do Sol teve algumas particularidades, segundo o assessor jurídico da instituição, Junior Nicácio:
“Queríamos um protocolo que quando a pessoa fosse ler, de cara pudesse conhecer a história de luta da Raposa Serra do Sol. As violências que sofreram não podem ser apagadas. Outros temas presentes no documento são a forma como a comunidade quer ser consultada, levando em consideração, além da Convenção da OIT, as especificidades de cada um dos povos que vivem na comunidade”.
A indicação do atual tuxaua geral do território já é fruto do Protocolo de Consulta. Arizona está convencido de que esse documento servirá para barrar projetos que querem fazer dentro da terra indígena sem respeitar a consulta prévia. Ele se refere a projetos tanto do governo federal quanto da iniciativa privada. “O Protocolo de Consulta garante a defesa do nosso território”, conclui Arizona.
“Essas instâncias de decisão são ferramentas importantes de diálogo e construção de políticas públicas”, avalia Sineia do Vale, coordenadora do Departamento de Gestão Territorial e Ambiental no Conselho Indígena de Roraima (CIR) e do Comitê Indígena de Mudanças Climáticas (CIMC).
Diálogo acima de tudo
A Raposa Serra do Sol foi a primeira terra indígena do país a ter um Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania (Cejusc) do Brasil. Inaugurado em 2015 pelo então presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Ricardo Lewandowski, o centro está localizado na comunidade indígena do Maturuca, no município do Uiramutã, ao Norte de Roraima. À época, o ministro declarou: “É um avanço muito importante para o judiciário brasileiro e é tão pioneiro que pode ser considerado como o primeiro do mundo”.
Como muitas das 76 comunidades atendidas são de difícil acesso, o centro tem um veículo para chegar nos locais, epicentro do conflito. Todas as atividades são coordenadas pelas lideranças indígenas e os casos registrados são gravados em duas línguas: português e a materna indígena. O polo garante que eventuais conflitos sejam resolvidos pelos próprios membros da comunidade. É um modelo inédito no Brasil e os mediadores indígenas foram capacitados por instrutores do Tribunal de Justiça de Roraima na época que foi criado.
Reparação de danos causados por animais, atritos com relação ao plantio, falta de cumprimento de regras da comunidade, brigas envolvendo bebidas alcoólicas ou desentendimentos entre famílias são os conflitos mais recorrentes. É o caso, por exemplo, de um conflito envolvendo um casal.
Após a separação, a mulher queria ajuda financeira para a filha, o que, no Direito de Família, é conhecido como pensão alimentícia. O caso terminou em acordo e o processo foi resolvido dentro do próprio território, sem ter sido necessário acessar a Vara de Família de Roraima. Ficou ainda estabelecido as visitas do pai à filha.
Nos dias em que o #Colabora esteve na terra indígena, ocorreu um julgamento com a participação da equipe jurídica do Conselho Indígena de Roraima (CIR). “Os tuxauas das duas comunidades envolvidas chegaram para nós levando a decisão das duas comunidades envolvidas. Eles estavam procurando auxílio jurídico. Nosso papel é auxiliar as lideranças. Não tomamos nenhuma decisão”, explica o advogado Junior Nicácio, coordenador do Departamento jurídico do CIR: “Minha função é a de reforçar que a decisão tem ou não tem base legal”.
Nem todos os casos são julgados no polo de conciliação. As decisões costumam ser tomadas pelos tuxauas, que resolvem os problemas internos de sua própria comunidade. No polo, só chegam os casos em que a comunidade e o tuxaua solicitam a presença de mediadores. No caso acompanhado por Nicácio, o conflito envolvia duas comunidades e o tuxaua avaliou que era preciso ter a participação de mediadores.
Ao final do julgamento, o indígena que estava no caso para ser julgado no polo, foi condenado pelas duas comunidades. O réu cumpriu pena dentro da própria terra indígena, o que reforça o pressuposto de que as comunidades da Raposa Serra do Sol têm autonomia para resolver esses problemas.
*A reportagem especial ‘Raposa Serra do Sol reescreve sua história’ foi uma das vencedoras da Bolsa #Colabora de Reportagem – 8 anos
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Ariene Susui, ativista indígena povo Wapichana, atua desde os 14 anos no movimento indígena pela participação dos jovens e das mulheres nas discussões políticas, ambientais e educação. Cofundadora da rede de comunicadores indígenas de Roraima Wakywaa. graduada em Comunicação Social-jornalismo e Mestre em Comunicação pela UFRR. Foi assessora de comunicação do Conselho Indígena de Roraima, atuou na comunicação na Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) e atualmente atua como jornalista independente com foco na Amazônia cobrindo pautas ambientais e indígenas.