Violência: 48% de crianças baleadas no Rio foram atingidas em ações policiais

Eloah, cinco anos, morta quando brincava em casa na Ilha do Governador, reforça estatística do Instituto Fogo Cruzado sobre as jovens vítimas dos tiroteios

Por #Colabora | ODS 16 • Publicada em 14 de agosto de 2023 - 00:48 • Atualizada em 21 de novembro de 2023 - 19:42

Eloah, de cinco, morta com um tiro no peito quando brincava em casa no Morro do Dendê, na Zona Norte do Rio: 48% de crianças baleadas foram atingidas em ações policiais (Foto: Reprodução)

Na sexta-feira (11/08), a Fundação Fogo Cruzado publicou uma nova plataforma – Futuro Exterminado – reunindo informações sobre crianças e adolescentes baleadas no Rio de Janeiro: em sete anos, 601 crianças e adolescentes foram baleados na Região Metropolitana do Rio, a cada quatro dias uma criança ou adolescente é baleado. Os dados foram registrados entre 5 de julho de 2016 e 8 de julho de 2023, quando 267 foram mortos e 334 ficaram feridos. O levantamento aponta ainda que as ações e operações policiais foram o principal motivo para vitimar crianças e adolescentes nos últimos sete anos. Entre as 601 jovens vítimas, 286 (48%) foram atingidas nestas circunstâncias – 112 mortas, 174 feridas.

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Na manhã de sábado, a Polícia Militar do Rio fez mais uma contribuição a essa macabra estatística. Ação policial no Morro do Dendê, na Ilha do Governador, provocou mais duas mortes. O adolescente Wendel, de 17 anos, estava na garupa de uma moto; a PM alega que o veículo tentou escapar da abordagem policial e houve disparos contra os agentes que reagiram. Uma hora depois, manifestantes organizavam um protesto contra a morte do jovem quando a PM chegou. De acordo com moradores, policiais atiraram para dispersar o protesto. Um tiro matou a menina Eloah, de cinco anos, que brincava dentro de casa, longe da confusão.

A história do Rio de Janeiro é marcada por crianças e adolescentes mortos e feridos. A gente sabe que não são casos isolados. Ágatha Félix, Maria Eduarda, João Pedro, Kauã, Alice, Emilly e Rebecca. Todo mundo lembra de um destes nomes. Não podemos deixar essas histórias se perderem

Cecília Oliveira
Diretora Executiva do Fogo Cruzado

Futuro Exterminado foi inspirado pela morte do adolescente Thiago Flausino Menezes, de 13 anos, durante uma ação policial na Cidade de Deus uma semana antes da nova tragédia. “A juventude é alvo no Rio de Janeiro e os dados do Fogo Cruzado mostram isso de maneira muito nítida. Uma em cada três crianças ou adolescentes foi vítima de bala perdida. 48% deles foi atingido durante uma ação policial. É inacreditável esses números existirem e não termos nenhuma política de segurança que funcione como resposta a eles. Parece que ninguém se importa”, desabafou Cecília Olliveira, diretora executiva do Instituto Fogo Cruzado, em entrevista.

Na plataforma, é possível consultar as informações sobre cada criança e adolescente que foi vítima de violência armada no Grande Rio desde julho de 2016. O mapa interativo lançado na sexta-feira receberá atualizações periódicas, tanto dos dados gerais quanto das informações das vítimas. Para Cecília, este é um passo importante para o planejamento de políticas públicas e também um esforço de memória. “A história do Rio de Janeiro é marcada por crianças e adolescentes mortos e feridos. A gente sabe que não são casos isolados. Ágatha Félix, Maria Eduarda, João Pedro, Kauã, Alice, Emilly e Rebecca. Todo mundo lembra de um destes nomes. Não podemos deixar essas histórias se perderem. Nosso esforço é também de memória, porque, sem ela, a sociedade não se mobiliza. Em nenhum lugar do mundo tantas crianças são baleadas sem que a sociedade se indigne. Aqui não pode ser diferente. As pessoas precisam se importar”, afirmou a diretora do Fogo Cruzado.

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Cecília Oliveira ressaltou ainda que a morte de crianças e adolescentes motivaram ações por parte do judiciário e do Legislativo nos últimos anos. “Quando a Ágatha foi assassinada durante uma ação policial no Complexo do Alemão em 2019, vimos uma comoção como poucas vezes houve nessa cidade. A morte dela foi investigada, mas isso é muito raro. É uma exceção à regra. Também vimos que a sociedade se mobilizou durante a pandemia, quando o João Pedro foi assassinado em meio a uma operação policial em São Gonçalo. Ou seja: é possível reagirmos a essa verdadeira barbárie”, destacou, lembrando que a morte de João Pedro, em plena pandemia, motivou a ABDF em que o STF determinou a restrição a operações policiais nas favelas durante a pandemia.

De acordo com o levantamento, um terço das crianças e adolescentes vítimas da violência armada foi atingido por balas perdidas, o que representa 201 vítimas de balas perdidas nos últimos 7 anos (54 mortas e 147 feridas). Das 201 vítimas, 106 foram atingidas em ações e operações policiais (30 morreram e 76 ficaram feridas). Em sete anos, 12 jovens foram baleados dentro de unidades de ensino, entre os atingidos um morreu e 11 ficaram feridos. Outras sete vítimas foram atingidas quando estavam indo ou voltando das unidades de ensino.

Morte dentro de casa

A morte trágica de Eloah no fim de semana confirma outro dado da nova plataforma do Fogo Cruzado, destacando que nem mesmo dentro de casa crianças e adolescentes estão seguros. Ao menos, 63 crianças e adolescentes foram baleados quando estavam dentro de casa: entre as vítimas, 37 foram mortas e 26 ficaram feridas dentro de residências. Eloah foi baleada durante uma manhã infernal na comunidade da Ilha do Governador que deixou a vizinhança assustada.

Segundo o presidente da Associação dos Moradores do Dendê, Roberto Santos, o primeiro episódio foi a morte do adolescente que não teria obedecido à abordagem policial. “Moradores desceram para a entrada da comunidade para fazer protesto por causa da morte do rapaz. Logo em seguida, passaram várias viaturas e um dos policiais deu um tiro para o alto que acabou atravessando a janela e atingido a criança dentro de casa”, disse o presidente da associação. O adolescente Wendel Eduardo faria 18 anos de idade nesta segunda-feira (14).

Roberto Santos explica que a associação está se organizando para buscar justiça. “A gente está se unindo com outras comunidades para procurar justiça. Toda semana morre alguém que não tem nada a ver com crime. Vamos tentar resolver pela Justiça mesmo”, afirmou Santos à Agência Brasil.

Em nota, a Secretaria de Estado de Polícia Militar informou que o episódio inicial com o adolescente ocorreu depois de uma abordagem de “dois homens na Ilha do Governador, onde o ocupante de carona portava uma pistola na cintura”. A nota alega que, de acordo com os policiais que atuaram na ação, o rapaz teria disparado contra os militares e houve troca de tiros. Em relação à morte da menina, a nota da PM argumenta que os militares foram atacados a tiros disparados do interior da comunidade. “Manifestantes que fechavam as vias nas proximidades jogaram pedras contra viaturas e equipes policiais, além de atearem fogo em um ônibus, na Rua Paranapuã”.

Sobre esse episódio, a PM explicou que “um procedimento apuratório foi instaurado para averiguar a conjuntura das ações e a corregedoria da corporação acompanha os trâmites do caso”. A corporação acrescenta que as imagens das câmeras corporais dos policiais serão disponibilizadas para auxiliar nas investigações. Horas depois da operação, a PM acrescentou que o comandante do 17° Batalhão, na Ilha do Governador, foi afastado do posto.

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Texto produzido pelos jornalistas da redação do #Colabora, um portal de notícias independente que aposta numa visão de sustentabilidade muito além do meio ambiente.

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