‘Lula fez discurso de estadista na COP’, diz ativista social Cândido Grzybowski

Para fundador do Fórum Social Mundial, ênfase do presidente eleito em relacionar a crise climática com a desigualdade marcou a COP27

Por Amelia Gonzalez | ODS 13 • Publicada em 28 de novembro de 2022 - 09:10 • Atualizada em 29 de dezembro de 2022 - 23:40

Lula com lideranças indígenas na COP27: discurso de estadista, na visão do ativista Cândido Grzybowski (Foto: Ahmad Gharablia / AFP – 17/11/2022)

Dia 16 de novembro de 2022, Sharm-el Sheikh, Egito, COP27. O presidente eleito do Brasil Lula da Silva faz um discurso, considerado por muitos o ápice do encontro internacional que reuniu 194 nações para debater questões climáticas. De forma contundente, o futuro líder de um país tão emblemático para as causas ambientais como o Brasil – o quarto no ranking dos maiores emissores e que carrega hoje o doloroso selo de maus tratos à maior floresta tropical do mundo – disse que as mudanças climáticas estão intrinsecamente ligadas à miséria, à fome e à desigualdade social. “A desigualdade entre ricos e pobres manifesta-se até mesmo nos esforços para a redução das mudanças climáticas… Por isso, a luta contra o aquecimento global é indissociável da luta contra a pobreza e por um mundo menos desigual e mais justo”, disse Lula, que no dia 1º de janeiro assumirá, pela terceira vez, a cadeira da presidência no Planalto.

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Depois disso, e ao final de uma cansativa jornada de reuniões que se estendeu até o dia 20 de novembro, um domingo, a cúpula do clima de 2022 fechou seu relatório final. Entre várias medidas registradas no texto, uma das mais comentadas foi a que criou um comitê de transição para novos arranjos financeiros que possam ajudar países pobres a lidarem com perdas e danos climáticos. E a criação de um fundo específico para isso.

A conferir se isto vai ser feito ou se vai ser mais uma decisão que ficará na promessa. Mas, uma pergunta ficou no ar: as palavras de Lula terão interferido diretamente nessa decisão?

Lula hoje está muito melhor, não é só um homem que veio de luta, mas incorporou uma dimensão muito mais ampla, no sentido de adotar uma democracia ecossocial transformadora

Cândido Grzybowski
Ativista, filósofo e fundador do Fórum Social Mundial

É evidente que olhos e ouvidos do mundo todo estavam voltados para o discurso de Lula da Silva. Aqui no Brasil, os movimentos sociais que estiveram perto dos governos Lula e Dilma (de 2003 a 2016) e se mantém afastados da atual administração por motivos óbvios, ouviram o ex-presidente com atenção de analistas. Será hora de fazer as malas e pousar novamente no Planalto para reafirmar um governo com participação social ativa?

O filósofo e educador Cândido Grzybowski, ex-diretor do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase), ONG criada nos anos 80 por Betinho, era um desses atentos espectadores. Como um dos criadores do Fórum Social Mundial, fundado em 2001 como um espaço para o debate sobre desenvolvimento humano, Grzybowski esteve bastante presente no primeiro governo de Lula, em 2002. E está orgulhoso e satisfeito.

Com base no discurso da COP e em outras declarações do presidente eleito, aponta uma diferença considerável entre aquele governo do início do século e o que vai começar duas décadas depois: “Lula aprendeu muita coisa. Para começar, ele não só não escreveu Carta aos Brasileiros, como mandou às favas o tal teto de gastos”, disse ele, em referência ao novo regime fiscal instituído no governo de Michel Temer.

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A inclusão dos povos indígenas, que terão no governo um ministério, é outro ponto alto do discurso de Lula, comemorado por Grzybowski. Ele ressalta que a relação com os povos indígenas não foi, de forma alguma, prestigiada no primeiro governo do ex-presidente, o que acentua a diferença de postura atual.
“É uma mudança estratégica, semelhante a ele ter criado o ministério das questões raciais em 2003, que conseguiu democratizar as universidades, e veio para ficar”, disse ele.

Grzybowski afirma que Lula foi considerado uma estrela da COP também porque deu um jeito de dizer que as emergências climáticas fazem parte da desigualdade social. Com essa declaração, acredita o ativista social, Lula estendeu uma crítica ao que ele chama de capitalismo verde. O desafio é muito maior do que deixar a floresta em pé, declara Grzybowski.

Por isto mesmo o ativista social sentiu falta, no discurso de Lula, uma referência ao petróleo, que considera um grande problema da humanidade. A mudança civilizatória que se precisa fazer – o texto final da Conferência reiterou a decisão de buscar limitar o aumento de temperatura global em 1.5°C prevista em Glasgow no ano passado – só vai acontecer, acredita Grzybowski, se o petróleo do pré-sal ficar onde está.

“Está longe de se pensar que reduzir as emissões de carbono é somente preservar a floresta em pé. Nós temos uma grande reserva de petróleo e querem que se use esta reserva com energia, para financiar o combate à pobreza. Isso é contribuir para as mudanças climáticas. Mas vai dizer para os economistas que precisamos deixar o pre-sal onde está? Eles vão dizer que esta é a nossa chance de desenvolvimento, e pronto. Mas a história mostra que a dependência total de um recurso que se consiga com o extrativismo não gera nada”, lembra o ex-diretor do Ibase.

Mercado de carbono: mais problema do que solução

Grzybowski admite que o fato de os impactos causados pelas mudanças climáticas afetarem principalmente as pessoas mais vulneráveis, é, de certa forma, uma novidade para a humanidade. Por isto mesmo ele se surpreendeu positivamente com o discurso de Lula neste sentido. “Ele está sendo um estadista”.

“Lula foi claro no discurso da COP: não tem como enfrentar a questão ecológica, que começa pelas questões climáticas, sem enfrentar a desigualdade social. É uma situação muito nova, a humanidade nunca tinha enfrentado desafios de ordem ecológica tão grandes. Em todos os sistemas ecológicos, já ultrapassamos limites humanitários. É uma mudança de fundo. E o Lula focou nisso, de um jeito que me deixou muito orgulhoso. Lula hoje está muito melhor, não é só um homem que veio de luta, mas incorporou uma dimensão muito mais ampla, no sentido de adotar uma democracia ecossocial transformadora”, disse Grzybowski.

O mercado não percebeu ainda que cuidar do clima é cuidar das pessoas e diminuir a pobreza

Cândido Grzybowski
Ativista, filósofo e fundador do Fórum Social Mundial

O filósofo corrobora, de certa forma, as críticas ao capitalismo verde, quando comenta sobre o mercado de carbono, ao qual chama de velha racionalidade econômica. “Claro que a questão das emissões é crucial, inclusive por causa da elevação do mar, que vai impossibilitar a vida em alguns territórios. Mas o mercado verde é mais um problema do que solução: ele quer evitar a destruição, mas não quer mudar. Veja o deserto verde que muitos criam com as florestas de eucalipto. Eles plantam eucalipto, muitas vezes em terras indígenas ou de quilombolas, fazem uma floresta morta e apresentam como alternativa para pagamento de quem não consegue diminuir suas emissões. Sim, essa floresta consegue sequestrar o carbono. Mas ela, em si mesma, é uma agressão à integridade do sistema ecológico que o planeta criou”, disse o ex-diretor do Ibase.

Para Grzybowski, a desigualdade mundial ficou ainda mais acentuada com a pandemia. Com a doença se espalhando, algumas empresas foram à falência, mas outras, pelo contrário, se tornaram ainda mais ricas. Ao mesmo tempo, os países ricos descobriram que nem eles tinham autonomia para enfrentar uma pandemia. Nem máscaras tinham, já que elas eram produzidas apenas na China.

Fórum Social Mundial: a caminho da insignificância

Como se sabe, faz parte da pobreza, foco do presidente eleito, não ter acesso à água, aos alimentos, ao bem-viver. E é preciso que a sociedade tenha uma voz ativa para lembrar isso todo o tempo, mesmo com um governo que se pauta pelas questões sociais. Para isso foi criado em 2001, por um grupo do qual Cândido Grzybowski fez parte, o Fórum Social Mundial.

Ano após ano, no entanto, o Fórum foi perdendo a força: “Para termos um discurso, precisamos nos assumir como ator, e o Forum se define como espaço, é por isso que ele hoje caminha para a insignificância. Nessas questões climáticas, por exemplo, eu nem sei quem do FSM esteve no Egito, se é que esteve alguém lá. Não assumem uma agenda. O Fórum Social Mundial poderia ter sido algo que não foi. Estamos então tentando mudar, e fizemos uma avaliação: se queremos mudar o Forum social Mundial, teremos que praticar a desobediência civil, e não esperar que o grupo que controla o conselho internacional vá aderir”, disse Grzybowski.

Do grupo que hoje se une para tentar mudar o Fórum, fazem parte o escritor português Boaventura de Sousa Santos, o diretor-geral da Inter Press Service, Roberto Savio, e outros. Tudo em nome de se conseguir instituir, de fato, uma participação social ativa no governo que está sendo montado em Brasília. “Filosoficamente, nós somos instituintes e constituintes. A democracia se funda no princípio da igualdade cidadã, o governo é nosso delegado, os parlamentares também, com o objetivo de atender a necessidade da sociedade e regular o mercado. Não é ter poder absoluto. O mercado é, no limite, um bem comum. Isso que as pessoas não falam: é feira, é troca, vem daí a ideia. É parte da relação humana, da convivência, do compartilhamento. Mas foi apropriado privadamente para ganhar dinheiro, para explorar, o mercado não percebeu ainda que cuidar do clima é cuidar das pessoas e diminuir a pobreza. Não se pode ser contra a ideia do mercado, mas tudo vai depender das políticas produtivas e sociais, do fortalecimento da agricultura familiar e combate à pobreza”.

A complexidade do tema, no entanto, não assusta o ativista social, para quem as alternativas sociais existem se há esforço de busca. “E democracia é este esforço para se chegar ao possível”.

O que é preciso fazer? Incluir. E, sim, alavancar mudanças profundas. Mas mudar, reafirma Grzybowski, é pensar sobre o que vai ser feito também com a questão do petróleo, com mineração e agronegócio.São problemas que não vão ser resolvidos tão facilmente, acredita ele. “E não se deve esperar soluções desses setores, porque não vêm”.

Amelia Gonzalez

Jornalista, durante nove anos editou o caderno Razão Social, encartado no jornal O Globo, que atualizava temas ligados ao desenvolvimento sustentável. Entre 2013 e 2020 foi colunista do G1, sobre o mesmo tema. Atualmente mantém o Blog Ser Sustentável, onde as questões relacionadas ao meio ambiente, ao social e à governança são tratadas sempre com ajuda de autores especialistas.

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