ODS 1
Lúpus na América Latina: racismo, invisibilidade e falta de atenção
Mulheres afrodescendentes enfrentam atrasos no seu diagnóstico por falta de especialistas ou demora nos exames
Mulheres afrodescendentes enfrentam atrasos no seu diagnóstico por falta de especialistas ou demora nos exames
Não havia tempo. Saionara Santana precisou se apressar para que a filha fosse atendida em um centro médico em Salvador, capital da Bahia, no Nordeste do Brasil. A menina estava com uma cólica crônica. Ao chegar, cheia de angústia, a recepcionista mal a olhou, embora, para Saionara, a situação fosse urgente. Ela, então, disse as palavras que imaginou que gerariam a compreensão da outra mulher.
— Tenho lúpus e preciso que atendam a minha filha – disse a mãe, de 45 anos.
—Sim? E daí? – foi a resposta recebida.
Leu essas? As reportagens da série Lúpus: drama das mulheres latinoamericanas
Ali, naquele instante, que hoje permanece como uma lembrança viva de três anos atrás, Saionara entendeu que para o sistema de saúde de seu país ela era apenas mais um número nas estatísticas do Lúpus Eritematoso Sistêmico (LES). Que as promessas de prioridade por ser mulher, paciente com lúpus e afro-brasileira não se cumpririam. Em troca, receberia um olhar frio e indiferente.
Saionara também não imaginava, mas a realidade dela está conectada com a de outras mulheres da região, especialmente da Colômbia e do Peru, onde as afrodescendentes da América Latina enfrentam atrasos no seu diagnóstico – por falta de especialistas ou demora nos exames. Isso leva ao agravamento e comprometimento dos órgãos vitais, principalmente do rim, uma tendência muito presente nessa população, segundo descreve o artigo “Epidemiologia global do Lúpus Eritematoso Sistêmico”, da Nature Rheumatology.
E também se reflete nas estatísticas de mortalidade do Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro: 87% das mortes vinculadas à doença entre 2016 e 2020, os dados mais recentes, foram de mulheres. Do total de óbitos nesses mesmos anos, 47% foram de mulheres negras.
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Veja o que já enviamosUm estudo publicado em 2017 na Revista Brasileira de Reumatologia estima que há entre 150.000 e 300.000 pacientes com a doença no país.
Na Colômbia, o número de casos de lúpus relatado por médicos aumentou constantemente, de 23.777 em 2015 para 52.944 em 2021.
No Peru, 16.000 casos foram relatados em 2020, mas os pesquisadores acreditam que o número pode ser maior, pois muitos médicos ainda não conseguem diagnosticar corretamente os sintomas do lúpus.
Pensemos no lúpus como um agente infiltrado que coloca as defesas do corpo contra o próprio organismo, causando danos nos órgãos, gerando cansaço. Por isso é enquadrado como uma doença autoimune, capaz de incapacitar quem dela padece.
Isso se reflete não apenas na história de Saionara. Assim como ela, há também Jenny Saavedra, uma mulher mestiça e afro-americana do norte do Peru, que passou por crises psicóticas, ou Mireya, na costa colombiana, que além de sofrer de episódios de esquizofrenia, teve de conviver com um dano nos rins e pulmões como resultado da doença.
Lúpus sem atenção
As mulheres de países como Peru, Brasil ou Colômbia costumam enfrentar diversas barreiras, algumas associadas à discriminação devido à sua raça ou nacionalidade. Outras, relacionadas à falta de atenção por parte das autoridades da saúde ou à falta de acesso aos serviços.
E esse não é um problema recente. De acordo com um estudo da Organização Mundial da Saúde, referente ao Dia da Saúde em abril de 2018, 3 em cada 10 pessoas na América Latina não têm acesso a cuidados em saúde por motivos financeiros.
A esse contexto se somou o que mulheres, crianças e adolescentes viveram durante a pandemia. O relatório “Desafios da pandemia de COVID-19 na saúde da mulher, da criança e da adolescência na América Latina e no Caribe”, do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e do Fundo da ONU para a Infância (UNICEF), informa que houve uma redução de 10% na cobertura dos serviços essenciais à saúde.
O lúpus é um assunto que ainda requer maior atenção, apesar dos esforços que vêm sendo feitos em temas legislativos, como na Colômbia, onde existe a Lei 1.392 de Doenças Raras que garante o acesso ao tratamento, embora exclua as pessoas com lúpus; ou o Regulamento da Lei nº 29.698 no Peru, que declara de Interesse Nacional e Atenção Preferencial o Tratamento de Pessoas Portadoras de Doenças Raras ou Órfãs.
Se olharmos para o aspecto de investimento dos governos da região para garantir o acesso à saúde, para organizações como a OMS ou as Nações Unidas, o gasto com essas políticas está longe de ser o mais adequado para o cuidado integral da população. E quando nos referimos ao lúpus, o número é ainda menor.
Junto a essas barreiras, as mulheres enfrentam outro desafio: as falhas no diagnóstico precoce. Santiago Bernal, reumatologista e professor da Universidade Javeriana na Colômbia, explica que existem discussões entre os médicos sobre a doença, porque o lúpus é muito variado. “É possível encontrar todo um espectro, desde pacientes cujo cérebro é afetado, a outros, em que são afetados o coração, os pulmões, os rins, o pâncreas, o fígado, o intestino ou a pele”.
Para Oswaldo Castañeda, reumatologista peruano com quase 40 anos de experiência nessa doença, “ainda há muita dificuldade para diagnosticar [o lúpus] por falta de conhecimento e diligência”.
A maioria das mulheres afetada pelo lúpus se encontra em idade produtiva, como demonstram os números na Colômbia, Peru ou Brasil. Os desafios impostos pela doença não as impedem de enfrentar a discriminação, falta de acesso aos serviços de saúde, de trabalhar ou mesmo ter filhos.
Escassez de hidroxicloroquina
A chegada da pandemia acentuou ainda mais o atraso que já ocorria no diagnóstico do lúpus e, além disso, gerou a escassez de hidroxicloroquina, um antimalárico que ajuda a atenuar a atividade da doença, mas que passou a ser usado sem consenso médico no tratamento da Covid-19.
No caso colombiano, Camila Castellanos, de 25 anos, relata que durante esse tempo ficou até 20 dias sem receber o medicamento do sistema de saúde, devido ao seu uso massivo para combater o coronavírus. “Você não pode ficar sem esse remédio. Exija”, dizia-lhe sua reumatologista, o que a levou até a ameaçar a Entidade Prestadora de Serviços (EPS), o equivalente a um seguro médico, de tomar medidas legais, caso não desse uma solução.
No final, conseguiu ser transferida para outra instituição, onde lhe concederam a hidroxicloroquina. “Eu estava muito assustada e só pensava que o lúpus não espera; me sentia em risco”, conta.
Essa situação foi vivida tanto na Colômbia como no Peru e Brasil, dando origem a redes de apoio entre os próprios pacientes com LES para procurar o medicamento ou obter doações diante da inação do Estado em relação a eles.
No Brasil, exigiram receita médica para a venda nas farmácias. “O problema era que ninguém conseguia falar com seus médicos para obter a receita. Agora voltou à normalidade, mas quem mora longe das capitais continua sofrendo com a falta de acesso”, disse o presidente da ONG Superando o Lúpus, Eduardo Tenório. “O preço da caixa dobrou, foi muito complicado para mim. Agora estou de volta à minha cidade, sem trabalho e separada, dependo do dinheiro da minha mãe para comprar as próximas caixas”, disse a paciente Irma de Almeida.
O mais importante, porém, foi que a conjuntura revelou que uma pessoa com essa condição pode ver sua vida em perigo apenas pela falta de uma medicação.
Depois de fazer esse percurso pelo qual as pessoas com lúpus passam na região, principalmente as mulheres, o panorama mostra que ainda há muito a ser feito por elas: desde acelerar os processos de diagnóstico, passando por garantir efetivamente o tratamento de cada uma e, claro, melhorar sua inserção na sociedade, derrubando estigmas sobre a etnia ou a própria doença, e seu ingresso a um mundo de trabalho mais propenso a empregar homens e a rejeitar mulheres doentes.
Em suma, o que esses pacientes buscam não é aquele olhar frio que Saionara recebeu em um centro de saúde no Brasil, mas um olhar aberto, próximo e compreensivo, para se sentirem acompanhados e apoiados em meio ao que estão passando. “Não precisamos apenas de remédios, mas de conversa”, conclui Saionara.
*Este projeto do Historias Sin Fronteras foi desenvolvido com o apoio do Departamento de Educação Científica do Instituto Médico Howard Hughes e da InquireFirst.
Alice de Souza, jornalista brasileira, é especialista em Direitos Humanos e atua na Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji). Trabalhou no Diario de Pernambuco e no Jornal do Commercio. Héctor Vila León, jornalista venezuelano, pós-graduado em Marketing Político e em Direitos Humanos, é cofundador do projeto jornalístico Cápsula Migrante. Joandry Suaréz, colombiano, é fact-checker para RedCheq e Colombiacheck. Fundador de Venezuela Al Minuto (VAM) e bolsista da Internews Health Journalism Network. Zonia Antonio Benito, jornalista peruana, é especialista em jornalismo de gênero, fact-checking, música e direitos humanos. É fundadora e diretora de La Antígona