Boicotar ou não os Jogos Olímpicos de Inverno?

Vista aérea da Cerimônia de Abertura dos Jogos Olímpicos de Inverno de Pequim 2022, no Estádio Nacional (Foto: Koji Aoki / Aflo / DPA via AFP)

Já passou da hora de fugirmos das alternativas infernais e começarmos a acreditar que um outro mundo ainda é possível

Por Emanuel Castro | ArtigoODS 16 • Publicada em 10 de fevereiro de 2022 - 08:21 • Atualizada em 1 de dezembro de 2023 - 18:32

Vista aérea da Cerimônia de Abertura dos Jogos Olímpicos de Inverno de Pequim 2022, no Estádio Nacional (Foto: Koji Aoki / Aflo / DPA via AFP)

Em filosofia ambiental, chamamos de ALTERNATIVAS INFERNAIS* um conjunto de situações formuladas de modo que não deixem outra escolha senão a aceitação de algo muito ruim, uma resignação: o famoso “mas eu não tinha alternativa…”. As ALTERNATIVAS INFERNAIS descendem diretamente do capitalismo neoliberal, da resignação de que “meus filhos terão uma vida melhor”. As ALTERNATIVAS INFERNAIS surgem quando descobrimos que uma ideia que nos venderam por séculos, a de progresso, não funcionou, “ninguém cai mais nessa”. Quanto mais brigávamos pelo progresso da nação, mais a desigualdade aumentava e mais o planeta era destruído, sem qualquer perspectiva de mudança. Sem poder vender mais a poção mágica do progresso, o neoliberalismo passou a jogar pesado, entregando perguntas que nos constrangiam e respostas prontas de resignação.

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O neoliberalismo é também conhecido por destruir a escolha política, ou seja a política mesmo, e o pensamento coletivo, valorizando o individualismo e o empreendedor de si: as ALTERNATIVAS INFERNAIS como arma. ALTERNATIVAS INFERNAIS acontecem quando alguém te fala: “se você não aceitar este baixo salário, alguém vai…”. Acontece todo dia no neoliberalismo, mas vamos dar exemplos específicos, nos diversos governos: “se vocês quiserem que o Brasil cresça, é preciso aceitar a nova legislação trabalhista” (que precariza empregos) ou “se não fizermos uma reforma da Previdência, o Brasil quebra”! Ora, as leis passaram, o Brasil não quebrou. Não quebrou? O famoso um porcento mais rico (que no Brasil parece mais com meio porcento apenas), seguramente, não. Mas o resto do país, ou está quebrado ou em vias de. O Brasil é apenas o um porcento (ou meio)?

Mais um exemplo, desta vez no meio ambiente, nos governos Dilma e Lula: “é preciso construir usinas hidrelétricas na Amazônia ou não teremos energia elétrica”!” Bom, Belo Monte foi construída no Rio Xingu, Jirau e Santo Antônio foram construídas no Rio Madeira, em monstruosas catástrofes ambientais e humanas, e seguimos com fortes possibilidades de apagões, além das contas de luz subirem exponencialmente. Belo Monte custou R$ 40 bilhões e, durante seis meses por ano, tem dificuldades de manter suas oito turbinas funcionando. No segundo semestre de 2021, apenas meia turbina funcionou.

Um exemplo esportivo de ALTERNATIVAS INFERNAIS, agora. Chegou um pacote pronto para as torcidas de Botafogo e Cruzeiro: “ou os clubes viram clube-empresas hoje ou vão abrir falência amanhã”. O que é absolutamente verdade, ou encontravam um comprador ou fechavam as portas. De repente, vemos a seguinte situação: torcedores felizes porque encontraram um investidor, agora o clube deles tem um dono! A pergunta infernal já continha a resposta embutida. É por querer mesmo.

Para combater as ALTERNATIVAS INFERNAIS, para fugir do neoliberalismo que traz respostas resignadas antes mesmo das perguntas pré-fabricadas, é preciso mudar a lógica, o modo como estruturamos o pensamento, fugir do economicismo rasteiro que só sabe pensar da mesma maneira, sempre. Outros mundos são possíveis. Outras lógicas são possíveis.

Manifestante segura um cartaz com os dizeres 'Vergonha da China' durante uma marcha de protesto que reuniu tibetanos em frente à sede do Comitê Olímpico Internacional (COI) antes da abertura dos Jogos Olímpicos de Inverno de Pequim 2022. Foto Valentin Flauraud/AFP. Fevereiro/2022
Manifestante segura um cartaz com os dizeres “Vergonha da China” durante uma marcha de protesto que reuniu tibetanos em frente à sede do Comitê Olímpico Internacional (COI) antes da abertura dos Jogos Olímpicos de Inverno de Pequim 2022 (Foto: Valentin Flauraud / AFP / Fevereiro 2022)

Os Jogos Olímpicos de Pequim e os uigures

No caso das Olimpíadas, a discussão não deve e não pode ser apenas boicotar ou não as Olimpíadas, fugir das ALTERNATIVAS INFERNAIS, ou seja: apoiar ativamente os uigures (já trataremos do caso) significa não ter Jogos Olímpicos ou realizar os Jogos Olímpicos significaria não dar visibilidade ao massacre dos uigures. Diante da própria alternativa infernal, o neoliberalismo nos obriga a falar dos Jogos Olímpicos e nos calar diante dos uigures. Como se fosse necessário e automático.

O povo uigur é de ascendência turcomena e de religião muçulmana. Eles vivem espalhados por vários países da Ásia Central, chegando até a província de Xinjiang, onde a população de uigures em território chinês é de mais de oito milhões de habitantes. A partir da década passada, várias escaramuças passaram a ocorrer entre os uigures e a polícia da província. O Governo chinês, então, lançou mão de uma tática muito comum no Ocidente, especialmente nos Estados Unidos: classificou o caso de terrorismo contra o Estado chinês.

A partir de agora, vamos falar de fatos retirados de relatórios de duas ONGs internacionais altamente qualificadas: A Anistia Internacional (em “Nowhere feels safe”) e a Human Rights Watch (em “Break their lineage, break their roots”). Estes relatórios sobre os uigures são de fácil acesso nas páginas destas duas entidades. A ONU também vem tratando do assunto com regularidade (como em Rights experts concerned about alleged detention, forced labour of Uyghurs in China), mas ainda não ofereceu um relatório definitivo pois prefere esperar uma viagem da Alta Comissária de Direitos Humanos, a ex-presidenta do Chile Michelle Bachelet, à Província de Xinjiang. Bachelet tenta, desde o ano passado, ir até lá. Há uma autorização para após o período olímpico.

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Segundo as ONGs, cerca de um milhão de uigures foram confinados em campos de reeducação (o que alguns analistas internacionais trataram como campos de concentração). Nestes campos, que tiveram suas construções monitoradas por fotos de satélite, os uigures sofrem, segundo relatos, tortura e, muito pior, as mulheres em idade de reprodução estariam sofrendo esterilizações em massa, entre outras denúncias. O que caracterizaria um etnocídio. A ONU ainda não decidiu se vai classificar o caso de genocídio, por causa da viagem (e investigação) até aqui não realizada. Mas alguns países, em seus parlamentos, estão votando moções para caracterizar o caso de genocídio, ou não. No ano passado, o Parlamento canadense decidiu, por 266 votos a favor e nenhum contra, que, sim, é genocídio.

Claro está que há um oportunismo ocidental na questão. Países de todo o Ocidente também cometem crimes contra os Direitos Humanos ou crimes ambientais, o tempo todo, e não há propaganda tão forte quanto quando isso ocorre na China. Há preconceito e vontade de apontar o dedo para aqueles que não são iguais a nós. Há, também, um medo do crescimento econômico chinês e sua influência em todo o mundo, especialmente na África e na América Latina. Nada disso, porém, impede que denunciemos etnocídios, até para que nos eduquemos para falar dos nossos próprios genocídios e crimes ambientais. Isso é urgente, urgentíssimo.

Enfim, por que temos de optar entre Jogos Olímpicos e denunciar o massacre uigur, um ou outro?

Os Jogos Olímpicos nazistas

Historicamente, a primeira tentativa mundial de boicote aos Jogos Olímpicos foi em 1936, em Berlim, na Alemanha. Não há aqui nenhuma chance ou vontade ou interesse de comparar o Estado chinês com o Nazismo alemão. Nada. Nunca. O objetivo é tratar de possibilidades que existiam diante da comunidade olímpica, em 1936, e quais opções foram escolhidas. Para que atletas, dirigentes e jornalistas possam refletir sobre o caso atual. Vamos tratar, assim, das três instâncias que propuseram um boicote, enfim rejeitado pelo COI.

Primeiro e mais importante: atletas de todo o mundo, vejam só, apelaram para a Carta Olímpica pedindo o boicote aos Jogos! Algo que seria visto como impossível hoje! O que eles alegavam: nem todos os atletas alemães tinham iguais condições de treinamento e de acesso a elas, no caso, os atletas judeus estavam proibidos de treinar e competir. Vejam bem, em 1935, atletas já lutavam por seus pares e propunham o boicote aos Jogos para defender os colegas judeus. Há, na Carta Olímpica (uma espécie de Constituição Olímpica), no primeiro capítulo, segundo parágrafo, sexto item, um texto proibindo que haja discriminação no movimento olímpico. O que os nazistas faziam com os atletas judeus seria uma quebra da “lei olímpica”.

Alguns dirigentes europeus encamparam a luta de seus atletas e propuseram o boicote; o que foi rejeitado pelo COI por dois motivos: os judeus foram alijados da cidadania alemã, portanto, não eram mais alemães, e assim não estavam sendo proibidos de competir pela Alemanha! Surpresa para alguns, nenhuma surpresa para outros. E comprometeram-se a ter uma atleta judia na delegação, a esgrimista (florete) Helene Mayer, que morava nos Estados Unidos e era filha de pai judeu com mãe cristã. Uma atleta, uma única!

No ambiente olímpico, depois de atletas e dirigentes, a vez da mídia: o jornal The Guardian (na época, Manchester Guardian), um dos mais respeitados jornais de todo o mundo, escreveu dois editoriais, em dias seguidos, em dezembro de 1935, pedindo o boicote mundial ao Jogos de Berlim. Vamos repetir: um dos mais importantes e influentes veículos de mídia da época, em todo o planeta, pediu o boicote aos Jogos. Motivo: o antissemitismo nazista e a construção dos primeiros campos de concentração, como Dachau. Em 1935, quando propuseram o boicote, ainda não se falava em genocídio ou Holocausto (no caso iigur, muitas vozes falam em genocídio e etnocídio), muito menos pensava-se em mais uma Guerra Mundial.

O que aconteceria se houvesse o boicote aos Jogos Olímpicos de 1936? Talvez, para o nazismo, não mudaria muita coisa, provavelmente o Holocausto e a Segunda Guerra Mundial se dariam da mesma forma. Mas, para os esportes, não tivesse ocorrido Berlim-36, os Jogos Olímpicos seriam totalmente diferentes do que conhecemos hoje. Por um motivo simples: os Jogos tal e qual conhecemos hoje são uma cópia fidelíssima dos Jogos de 1936.

Tudo o que diz respeito à organização das Olimpíadas nasceu ou desenvolveu-se (espetacularizou-se) em 1936. A chama olímpica acesa em Olímpia, a tocha olímpica, o revezamento da tocha olímpica e o acendimento da pira olímpica e a pira olímpica, todas criações dos Jogos Nazistas. Espetáculos de abertura e encerramento com desfile de atletas e discurso de autoridades, no caso, o Führer, Jogos Nazistas. Cerimônias de entregas de medalhas coreografadas e espetacularizadas, Jogos Nazistas. Construção de vários estádios, Jogos Nazistas. Vila Olímpica cercada e protegida por policiais, Jogos Nazistas. Transmissões de resultados ao vivo para todo o mundo, por Telex, Jogos Nazistas. Transmissões radiofônicas para todo o mundo, Jogos nazistas. Transmissão ao vivo pela TV pela primeira vez na história, Jogos nazistas. Filme oficial com criação de replay, efeitos e ângulos até hoje usados em todo mundo, áudio ambiente valorizando as competições, a incrível Leni Riefenstahl e os Jogos Nazistas. Patrocínios dos Jogos, Jogos Nazistas. Empresas de material esportivo apoiando os atletas, Jogos Nazistas. Autoridades nos estádios, Jogos Nazistas. Mistura de políticos com atletas, Jogos Nazistas. Propaganda estatal com os Jogos, envelopamento de toda a cidade com motivos olímpicos, Jogos Nazistas. Queima de fogos no encerramento, Jogos Nazistas. E esta lista não tem mais fim. Os aristocratas do COI amaram aqueles jogos, começando pelo Barão de Coubertin. Assim, desde 1936, em todas as edições dos Jogos Olímpicos, estamos revivendo e revivendo os Jogos Nazistas. Estamos amarrados aos Jogos de 1936 até hoje. Quase nada foi criado, tudo copiado do Ministério de Propaganda Nazista de Joseph Goebbels. Enfim, o espírito olímpico, tal e qual o conhecemos hoje, é uma invenção da propaganda nazista.

Não surpreende a ninguém que os campos de concentração e o genocídio uigur não sejam razão para um boicote aos Jogos. E, especialmente, que afetos e desejos fascistas estejam sempre de mãos dadas com as alternativas infernais neoliberais. Até hoje. Especialmente hoje.

Alternativas Infernais e o esporte

Como fugir às ALTERNATIVAS INFERNAIS no esporte? Duas propostas. Ambas passam pela dissolução do Comitê Olímpico Internacional. Para que serve o COI? Além de criar uma casta aristocrática esportiva e ter poderes absolutos no mundo do esporte, tudo o que alguém pensar sobre funções de organização e gestão no mundo olímpico pode ser substituído por um dos modelos a seguir. Em resposta direta: não serve para nada, a não ser criar máquina burocrática, moralista e que passa a vida a se retroalimentar enquanto cria ALTERNATIVAS INFERNAIS.

A primeira proposta é o modelo já testado pelos tenistas profissionais: no caso masculino, a ATP, e no feminino, a WTA. São gestores contratados para defender os direitos de seus contratantes, no caso os tenistas. Não são os gestores que podem demitir os atletas, mas estes, sim, podem demitir as diretorias da ATP ou WTA, se não organizarem corretamente os direitos dos tenistas. É um modelo híbrido, meio do caminho, pois ainda há a criação de máquina burocrática, por mais que possa ser azeitada pelos tenistas. De qualquer forma, apesar de aproximar os tenistas das decisões mais importantes, ainda existe uma camada decisória que foge ao controle direto dos tenistas. Mas fica o exemplo, também na China, da WTA, que decidiu, no fim do ano passado, boicotar todos os torneios de tênis em solo chinês enquanto não for esclarecido o caso Peng Shuai (enquanto ela não reaparecer em público), uma tenista que denunciou, nas redes sociais, violência sexual por parte do ex-vice-premiê chinês, Zhang Gaoli e gerou grande preocupação, em todo o mundo, por sua segurança e paradeiro. Se o COI não consegue tratar de um etnocídio, a WTA foi muito mais ágil – e firme – para tratar do caso Peng Shuai.

A segunda proposta é mais direta e muito mais difícil de ser imaginada e implantada. Mas será, um dia. A autogestão. Nesta, os atletas decidem sobre a escolha de sedes dos Jogos, seu acompanhamento e, principalmente, controlam e organizam diretamente o orçamento e as fontes de receita dos Jogos Olímpicos. Assim, por exemplo, poderão decidir se os Jogos se alternam entre países ou ficam fixos no Peloponeso (próximos a Olímpia), diminuindo dramaticamente custos. Ou se os diferentes esportes ocorrem em vários países: o futebol no Brasil, o basquete nos Estados Unidos, o hóquei sobre a grama na Índia, o tênis de mesa na China, o judô no Budokan de Tóquio etc. etc. etc… Com as decisões, os atletas poderiam, por exemplo, direcionar a maior parte do dinheiro para pesquisas e construção de centros de treinamentos na África e na América Latina. Poderiam buscar igualar condições de nutrição e preparo físico nos treinamentos entre centros americanos e europeus com os do resto do mundo. Que atletas fariam isso? Por quatro anos, todos os dez mil atletas que participaram das últimas edições dos Jogos. Dez mil apenas, em tempos de internet e ferramentas de comunicação desenvolvidos durante a pandemia, algo simples. Tem proposta melhor? Claro! Esta é só embrionária.

O mais importante é a proposta de autogestão, pois um outro mundo é possível.

(*) Especialmente nos livros La sorcellerie capitaliste, de Isabelle Stengers e Philippe Pignarre, e Au temps des catástrofes, de Stengers

Emanuel Castro

Formado em Jornalismo pela UFRJ e em Filosofia pela PUC-RIO. Foi ombudsman de Esporte dos canais Globo. Possui mestrado em Filosofia, na PUC, com ênfase em Ética e Perspectivismo. É doutorando em Filosofia Ambiental, sempre na mesma instituição. Sua pesquisa é sobre o Antropoceno e seus impactos, especialmente na Amazônia, onde morou e visita com frequência para estudar a catástrofe climática em comunidades indígenas e quilombolas. É professor de Filosofia em cursos pré-vestibular para negros e carentes, um movimento pela democratização de acesso ao ensino superior.

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