A hipocrisia que mantém milhões sem saneamento

Só 8,2% das favelas de SP têm coleta de esgoto e 17,3% possuem abastecimento de água

Por Edison Carlos | ODS 6 • Publicada em 6 de dezembro de 2015 - 08:00 • Atualizada em 8 de dezembro de 2015 - 09:59

A proximidade dos assentamentos irregulares dos cursos d`água torna a situação ainda mais grave
A proximidade dos assentamentos irregulares dos cursos d`água torna a situação ainda mais grave
A proximidade dos assentamentos irregulares dos cursos d`água torna a situação ainda mais grave

A situação do saneamento básico no Brasil é vergonhosa. Podemos dizer que, de todas as mazelas sociais e ambientais do país, talvez nada se compare ao descomunal impacto à natureza e ao cidadão causado pela ausência da infraestrutura mais elementar – os serviços de água tratada e de coleta e tratamento dos esgotos. Dados do Ministério das Cidades (base 2013) mostram que ainda temos cerca de 35 milhões de brasileiros sem acesso à água tratada, mais da metade da população não tem acesso à coleta dos esgotos e somente 39% dos esgotos do país são tratados antes de serem lançados na natureza. Significa que 61% de todo o esgoto do país segue para fossas, rios, lagos, reservatórios, bacias hidrográficas e aquíferos da forma como sai dos nossos banheiros. É um volume equivalente a 5 mil piscinas olímpicas de esgoto por dia sendo jogado irresponsavelmente na água que depois temos que trata para beber.

Embora a falta de serviços regulares de saneamento básico esteja por toda parte, dos bairros mais nobres às favelas mais carentes, é certo que a maior indefinição para o futuro desses serviços está nas milhares de áreas irregulares espalhadas pelo país. Chamadas pelo nome técnico de aglomerados subnormais, são definidas no Censo Demográfico 2010 do IBGE como sendo “conjuntos constituídos de, no mínimo, 51 unidades habitacionais (barracos, casas etc.) carentes, em sua maioria de serviços públicos essenciais, ocupando ou tendo ocupado, até período recente, terreno de propriedade alheia (pública ou particular) e estando dispostas, em geral, de forma desordenada e densa. Podem se enquadrar, observados os critérios de padrões de urbanização e/ou de precariedade de serviços públicos essenciais, nas seguintes categorias: invasão, loteamento irregular ou clandestino, e áreas invadidas e loteamentos irregulares e clandestinos regularizados em período recente”.

Apesar do crescimento econômico e da transferência de renda que vivemos nos últimos anos, os dados do Censo 2010 do IBGE mostram que no Brasil ainda temos mais de 11 milhões de pessoas morando nestas áreas irregulares, sendo que os Estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Pará, Bahia e Pernambuco concentram as maiores populações nessa situação. Somente esses 5 estados respondem por quase 8 milhões dos brasileiros vivendo em aglomerados subnormais (cerca de 70% do total). Em 2010, das 20 cidades com maior quantidade de domicílios nessas áreas, 12 apresentavam um predomínio das grandes áreas irregulares, com 1.000 ou mais domicílios, como é o caso de Belém onde 88,6% desses aglomerados são áreas extensas. Já nos dois municípios onde ocorrem as maiores concentrações de domicílios em áreas irregulares, Rio de Janeiro e São Paulo, os padrões são opostos: no Rio de Janeiro, 57,8% dos domicílios estão localizados em áreas com 1.000 ou mais domicílios e situados praticamente dentro da área central da cidade, enquanto que em São Paulo há o predomínio de áreas menores, com menos de 1.000 domicílios (69,5% do total) e mais afastadas do centro.

Gostando do conteúdo? Nossas notícias também podem chegar no seu e-mail.

Veja o que já enviamos

grafico (saneamento)

Estudo lançado nesta semana pelo Instituto Trata Brasil em parceria com o Ministério Público de São Paulo e Coordenação de Saneamento da OAB, e intitulado “Saneamento Básico em Áreas Irregulares do Estado de São Paulo”, mostrou que o número de assentamentos irregulares em 12 de 13 grandes municípios de SP que aderiram à pesquisa foi de 2.838 áreas irregulares (Gráfico abaixo), com população estimada de 2.578.711 pessoas. Essa população residente em assentamentos desses municípios representa 14,5% da população. Apenas 492 dos 2.838 assentamentos são atendidos por rede de abastecimento regular de água, ou seja, apenas 17,3% dos assentamentos e no caso do esgotamento sanitário, apenas 232 assentamentos são atendidos (8,2%).

O estudo estimou que seriam necessárias 800.842 ligações de água para atingir a universalização dos serviços nos assentamentos irregulares informados. Foi relatada a existência de 110.549 ligações ativas de água, então há um déficit de quase 700 mil ligações nos 12 municípios que aderiram à pesquisa. O consumo de água nessas áreas foi de 151 milhões m³/ano (60 mil piscinas olímpicas por ano). No que se refere ao esgoto, foram gerados 121 milhões m³/ano nessas áreas irregulares, o que corresponde a 48 mil piscinas olímpicas por ano de esgotos. Se todo esse serviço de água e esgotos fosse prestado, o ganho de receita seria de R$ 560 milhões por ano.

O estudo mostrou que, independentemente do tamanho da área irregular e de onde ela esteja, é evidente que os moradores têm algum acesso à água (tratada ou não) e que, portanto, geram esgotos. Embora essa constatação seja evidente, bem como os impactos ambientais e sociais de comunidades inteiras não terem acesso à infraestrutura mais básica como os serviços regulares de água e esgotos, muito pouco se avançou nas últimas décadas para que tenhamos uma solução definitiva dessa situação. O mais comum é o lançamento dos esgotos em fossas rudimentares, na rede de água de chuva, nos rios e riachos ou em valas a céu aberto. Por serem, muitas vezes, áreas fortemente adensadas, esta população está mais exposta a surtos das doenças dos esgotos, principalmente as crianças menores e os idosos.

Olhando a crise da água, a falta de decisão sobre o que fazer com as áreas irregulares também nos impõe outros desafios. Quando estas áreas estão ao lado de reservatórios de água, como é o caso das ocupações às margens das represas Billings e Guarapiranga, por exemplo, há um claro comprometimento do uso dessas águas para abastecimento humano. O tema é muito grave, mas as soluções muito lentas. Sabe-se bem das restrições e o que não se pode fazer nessas áreas, mas pouco se discute sobre o que seria possível fazer para que esses serviços básicos chegassem a essas pessoas.

Mais de 35 milhões de brasileiros não têm acesso à água tratada
Mais de 35 milhões de brasileiros não têm acesso à água tratada

Como as crises geram oportunidades, talvez esse momento de escassez hídrica, que traz sofrimento à sociedade e o desafio de usar melhor a água disponível, seja também o momento de as autoridades mostrarem mais coragem para discutir temas espinhosos. O caso das áreas irregulares certamente é um desses temas difíceis e que, por envolver visões díspares em muitos casos, em outras épocas acabam no silêncio. Governadores, prefeitos, Ministério Público, Defensorias, órgãos ambientais, empresas de água e esgotos, sociedade civil, todos precisam sentar para discutir soluções para esse problema. Talvez um bom exemplo seja o encontrado em Porto Alegre, onde um entendimento desses atores conseguiu trazer avanços concretos na questão da água. Lá comunidades em processo de regularização estão recebendo redes provisórias de água tratada e, assim, abandonando hábitos ancestrais, como “gatos” e outras ligações clandestinas. Uma solução simples e que ajuda a todos: diminui os casos de doenças, reduz as perdas de água potável, melhora os recursos para que as empresas operadoras possam ampliar os serviços. Ainda falta a solução para os esgotos, mas já é uma esperança. Na Grande São Paulo, no entanto, temos comunidades que habitam em áreas há mais de 30 ou 40 anos que continuam sendo irregulares, com restrições à infraestrutura mais elementar.

Não se trata aqui de sermos lenientes com invasões, ocupações ilegais ou arbitrariedades do tipo, mas sim de se tomar uma decisão sobre o que fazer. Se não fomos competentes o suficiente para fiscalizar o território de forma a que isso não aconteça, temos que ser humildes o bastante para aceitar a realidade e buscar soluções. Precisamos parar com a hipocrisia de olhar esses problemas como se eles não existissem. A falta de chuvas mudou o paradigma e temos que ter uma nova escala de prioridades. Crise deve ser momento de mobilização, mas, principalmente, de ação!

Edison Carlos

É Presidente Executivo do Instituto Trata Brasil. Químico industrial de formação, por muitos anos atuou em áreas ligadas à Comunicação e Relações Institucionais nos setores químico e petroquímico. Além de formado em Química pelas Faculdades Oswaldo Cruz, o executivo é pós-graduado em Comunicação Estratégica, já tendo atuado nas áreas de tratamento de águas e efluentes. Atuou por quase 20 anos em várias posições no Grupo Solvay, sendo que nos últimos anos foi responsável pela área de Comunicação e Assuntos Corporativos da Solvay Indupa. Em 2012, Édison Carlos recebeu o prêmio “Faz Diferença – Personalidade do Ano” do Jornal O Globo – categoria “Revista Amanhã” que premia quem mais se destacou na área da Sustentabilidade em todo o país.

Newsletter do #Colabora

A ansiedade climática e a busca por informação te fizeram chegar até aqui? Receba nossa newsletter e siga por dentro de tudo sobre sustentabilidade e direitos humanos. É de graça.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *