ODS 1
Pesquisa mostra que violência afetou a saúde mental de 31% dos moradores da Favela da Maré
Mais de 70% dos entrevistados vivem com medo de que um parente ou amigo seja atingido por arma de fogo
Há quem diga que o ser humano é capaz de se adaptar a qualquer situação. Pode até ser verdade. Mas existe um preço a pagar e, normalmente, ele é alto. No caso dos moradores das 16 favelas que compõem o Complexo da Maré, o preço é altíssimo. Uma pesquisa feita pela organização britânica People’s Palace Projects, em parceria com a Redes da Maré, mostrou que 71% dos entrevistados vivem com medo de que alguém próximo seja atingido por arma de fogo. Cerca de um terço da população adulta da região (31%) disse ter a saúde mental afetada pela violência.
Pudera. Nada menos do que 44% das pessoas ouvidas relataram já ter estado em meio a um tiroteio nos últimos 12 meses. Sendo que, destes, 73% passaram por esta experiência mais de uma vez. Entre os que sofreram esse tipo de exposição direta a situações violentas, o percentual de afetados psicologicamente é ainda maior: 44% acreditam que sua saúde mental foi prejudicada.
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Como vai a saúde mental dos moradores de favelas? Quais os efeitos dos conflitos armados, tão frequentes nestas comunidades, sobre seu equilíbrio e sua saúde física? E quais os recursos e estratégias que ajudam essas pessoas a cuidar da sua segurança e do seu bem-estar? Essas foram algumas das indagações que guiaram a pesquisa Construindo Pontes realizada nas 16 favelas que formam o Complexo da Maré, no Rio de Janeiro. O trabalho foi realizado entre 2018 e 2020 com 1.411 moradores acima de 18 anos e tem como desdobramento a 1ª Semana de Saúde Mental da Maré, a Rema Maré, realizada entre 23 e 28 de agosto de 2021.
Os resultados são contundentes e revelam que os moradores da Maré passam por situações de extrema violência, como estar em meio a tiroteios ou testemunhar assassinatos, com impressionante frequência. Como desdobramento, grande parte dos entrevistados afirma que vive permanentemente com medo: sofrer, testemunhar e temer atos violentos é parte de uma rotina angustiante. A maioria da população (63%) sente medo (sempre ou muitas vezes) de ser alvejada por uma arma de fogo. O temor da violência armada – que muitas vezes incluem equipamentos de guerra como granadas e fuzis – acompanha diariamente a maioria dos moradores.
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Veja o que já enviamosMesmo que não tenha testemunhado um tiroteio, um alto número de moradores (cerca de um quarto dos entrevistados, 25,5%) teve alguém próximo ferido ou assassinado. Quase a mesma quantidade (24%) viu alguém ser espancado ou agredido nos 12 meses antes da pesquisa. Para 15% dos entrevistados, isso aconteceu mais de uma vez.
E nem mesmo dentro de casa os moradores se sentem protegidos: 13% deles tiveram suas casas invadidas nos 12 meses anteriores à pesquisa – percentual que aponta para um total de 13.357 domicílios que passaram por invasões, muitas vezes acompanhadas de violência verbal, extorsão e perdas materiais. Entre esses moradores que tiveram suas residências violadas, 47% passaram por esta situação mais de uma vez. Estas constatações desafiam a ideia de que as populações de favelas se acostumaram com a violência armada em seu cotidiano: 75,5% dos moradores apontam a violência como a principal questão negativa de morar na Maré.
Ansiedade e depressão: consequências diretas
As desordens mentais mais comuns relatadas pelos moradores foram episódios depressivos (26,6%) e ansiedade (25,5%). Das pessoas que estiveram em meio a tiroteios, 12% relatam pensamentos sobre suicídio e 30%, sobre morte. Elas também apresentaram sintomas físicos como dificuldade para dormir (44%); perda de apetite (33%); vontade de vomitar e mal-estar no estômago (28%) e calafrios ou indigestão (21,5%).
“A discussão sobre saúde mental de moradores de favelas e periferias, no contexto da violência a que estes territórios são submetidos, é urgente e fundamental” avalia Eliana Silva, diretora da Redes da Maré. “São situações cotidianas, que restringem a circulação das pessoas, produzem traumas, afetam a saúde física e mental e reduzem a confiança das pessoas nas instituições, já que muitas vezes é a própria polícia a responsável pelas violações de direitos”.
Um dos efeitos mais graves da violência armada nos territórios de favela é a imposição de barreiras para o acesso a serviços e equipamentos públicos, incluindo aqueles que dão suporte aos moradores em relação à saúde mental. Segundo os dados da pesquisa, 54% dos adultos da Maré sofreram alguma limitação no acesso a equipamentos públicos em decorrência de situações de violência.
Esta realidade tão cruel quanto complexa leva a indagações: como tornar a vida suportável quando o medo é companhia constante? Como apostar no futuro quando mortes, situações de abandono e violência tornam os indivíduos descrentes das instituições e do Estado? Como construir resiliência e ter a capacidade de reconhecer e superar dores e eventos traumáticos?
“As dores e os sintomas de saúde mental não são evidentes como os de uma perna quebrada, e não são tratados com um remédio como os que usamos para dores de cabeça”, alerta o diretor teatral e principal pesquisador de Construindo Pontes, Paul Heritage. “Nas intervenções artísticas que preparamos para a campanha Rema Maré, perguntamos se devemos lidar com este problema de forma individual ou coletiva. Como posso melhorar a minha saúde mental e ajudar a cuidar dos que estão próximos a mim?”, questiona.
Texto produzido pelos jornalistas da redação do #Colabora, um portal de notícias independente que aposta numa visão de sustentabilidade muito além do meio ambiente.