ODS 1
O milagre da multiplicação numa favela do Rio
Técnica de enfermagem cria programa que transforma um litro de óleo de cozinha usado em 30 litros de sabão líquido
A simplicidade, na maioria das vezes, é a casa do sucesso. Há, na história do mundo, diversos exemplos em que ninguém acreditava que ideias simples vingassem. No Santa Marta, a técnica de enfermagem Joana Almeida, 32, é uma prova viva de que basta um pouco de empatia com os vizinhos, arregaçar as mangas e ir à luta para colher os frutos. Preocupada com o desemprego na favela de Botafogo desde o início da pandemia e também com os idosos, que continuam com dificuldades de se manter em casa mesmo no atual período de flexibilização, ela criou um programa que transforma óleo de cozinha usado em sabão líquido. Um verdadeiro milagre da multiplicação, que pôs a roda da economia local para girar e ocupou corações e mentes dos moradores.
[g1_quote author_name=”Joana Almeida” author_description=”Técnica de enfermagem” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Estamos distribuindo na favela, para que as pessoas vejam como o nosso sabão é bom e assim tragam mais óleo de cozinha para produzirmos mais
[/g1_quote]É sustentabilidade na veia. “O objetivo é dar a vara e ensinar a favela a pescar. Tanto pode ser para uso pessoal quanto para gerar sua própria renda”, diz José Mário Hilário, presidente da Associação de Moradores do Santa Marta, um entusiasta do projeto. “Eu não aguentava vendo os idosos sem terem como ficar em casa, ainda mais com a queda da renda, e amigos preocupados porque precisavam de renda para pagar seus aluguéis. Daí pensei em reciclar o óleo, pesquisei a fórmula e vi que era barato e fácil”, complementa Joana. “A pandemia aflorou o lado humano das pessoas e facilitou a onda de solidariedade. Tem um lado bom nisso sim”.
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Veja o que já enviamosO primeiro grupo que recebeu as noções de produção – suas ‘cobaias’ – é formado pela família de dois amigos, os pedreiros Diego e José Francisco, que perderam toda a renda com a paralisação das atividades. Sem nada guardado, eles pediram ajuda e deram partida ao projeto, que, no final de setembro, reuniu a primeira turma presencial na sede da Associação – com direito a ambiente ventilado, máscaras obrigatórias e muito álcool em gel. Aliás, é a bela sede da associação que oferece a logística para receber e armazenar o óleo em galões, além de ser também o local onde a produção será estocada após a formatura da primeira turma. É o famoso “nós por nós”, frase cada vez mais ouvida nas favelas da cidade.
O principal atrativo do projeto é o custo baixo e a margem de lucro – além, é claro, da sua incrível capacidade de ser sustentável. Com dois litros de óleo saturado, Joana faz 60 de sabão líquido, gastando R$ 50,00 em produtos químicos para materializar o milagre. Dessa forma, cada litro de sabão que se usa para limpar a louça, o chão de casa ou mesmo os vasos e pias de banheiros sai a incríveis R$ 0,83 – o litro de um sabão líquido de marca não sai por menos de R$ 5,00, seis vezes mais caro. “E a qualidade é boa. Por isso, estamos distribuindo na favela, para que as pessoas vejam como o nosso sabão é bom e assim tragam mais óleo de cozinha para produzirmos mais. Ele rende bastante, é um produto de ótima qualidade”, garante.
O apelo e o sucesso, já verificado pelas famílias de Diego e José Francisco, amplificaram a ideia. Diversos comerciantes da comunidade, que antes dispensavam óleo na rede de esgoto, hoje acumulam a gordura saturada para entregar a ela e demais voluntários do Pespc – Projeto de Educação Social e Pensamento Consciente. E a reciclagem no morro, que deveria servir de exemplo no asfalto e não encontra respaldo em programas oficiais, seja do governo seja dos fabricantes, não para por aí. Joana e o Pespc também transformam sabão em pedra em sabão pastoso para limpar panelas. A ‘sacada’ veio com a observação de que o sabão em barra doado nas cestas básicas quase sempre ficava no canto do armário.
Segundo Joana, hoje em dia quase todos na favela têm máquina de lavar e apenas os mais velhos ainda utilizam o sabão em pedra para lavar roupas. Daí para fazer outro ‘milagre’ foi um pulo. A cada 400 gramas, ela faz 2,4 quilos de pasta. A mistura leva mais 400 gramas de açúcar e 180 ml de álcool líquido misturado com o sabão ralado. Uma bênção que une preservação de meio ambiente e geração de renda – exatamente o que o planeta mais precisa, afogado que está em lixo, fome, queimadas e destruição. “Nossa ideia é ramificar o projeto para outras favelas, mas antes temos de nos estruturar aqui”, emenda Zé Mário, também presidente da União Comunitária, que reúne outras associações de moradores de favelas.
A natureza, obviamente, agradece. Afinal, ao contrário do que parece ser o senso comum, não é de quem tem mais que vem a solução para a questão ambiental: como Joana e o Pespc demonstram na prática, é de quem tem menos.
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André Balocco é jornalista e já passou pelas redações de O Globo, Jornal do Brasil e O Dia, onde foi de repórter a editor executivo. Passou também pela Presidência da República e Secretaria Municipal de Cultura do Rio. Vencedor em equipe do Prêmio Embratel de jornalismo de 2014, com a série '50 anos de Golpe', atualmente comanda o projeto 'Papo com Favela', no Instagram, em que entrevista lideranças de favelas
Amei o post 🙂