Filme da Netflix acende o debate errado sobre a sexualidade de meninas

Histeria de conservadores contra Cuties acaba escondendo problemas do longa francês, dominado por um olhar masculino em sua perspectiva de gênero

Por The Conversation | ODS 16ODS 5 • Publicada em 28 de setembro de 2020 - 12:21 • Atualizada em 30 de setembro de 2020 - 19:43

As meninas protagonistas de Cuties, filme da Netflix sob ataque conservador: debate necessário sob sexualidade ofuscado por histeria contra o longa (Foto: Divulgação)

Rebecca Sullivan*

A indignação com Cuties, o longa-metragem de estreia da cineasta franco-senegalesa Maïmouna Doucouré, em cartaz na Netflix, diz muito sobre como discutimos mal a sexualidade juvenil. O filme, originalmente chamado de Mignonnes em francês, pretende ser uma crítica à sexualização das meninas pelo entretenimento e pelas redes sociais. Em vez disso, o filme se tornou um alvo de ataques por conservadores, alimentados por teorias conspiratórias violentas – inspirados pelos seguidores do QAnon, grupo de direita adepto de teorias da conspiração – de tráfico sexual infantil desenfreado.

(No Brasil, o secretário nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, Maurício José da Silva Cunha, do ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, comandado pela pastora Damares Alves, pediu para a coordenadora da Comissão Permanente da Infância e Juventude, Denise Villela, que entre com medidas judiciais para suspender a oferta do filme Cuties aos assinantes da Neltflix Brasil. Além da retirada imediata, a pasta pede apuração de responsabilidade pela oferta e distribuição de conteúdo pornográfico envolvendo crianças – nota do tradutor).

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Diante de tal histeria infundada, o impulso entre muitos é ridicularizar os críticos e elogiar Cuties (Lindinhas, na tradução da Netflix para o português). Isso não chega a ser melhor porque o filme tem muitos problemas que devem ser examinados. No entanto, gritar “sexualização” não nos ajuda a chegar a um lugar onde, nas palavras de Doucouré, “políticos, artistas, pais e educadores poderiam trabalhar juntos para fazer uma mudança que beneficiará as crianças das gerações vindouras”.

O filme segue Amy (Fathia Youssouf), uma imigrante senegalesa de 11 anos que viveu nos empobrecidos banlieues (subúrbios) de Paris. Cercada por mulheres muçulmanas mais velhas obcecadas pela pureza e zangada com o casamento polígamo iminente de seu pai, ela se torna amiga de Angélica (Médina El Aidi-Azouni) e se junta à sua turma de dança. As atitudes sexuais de suas novas amigas a confundem tanto quanto a comunidade conservadora à qual sua mãe se dedica.

No mês passado, a Netflix lançou uma campanha publicitária para o filme que muitos – incluindo a própria diretora  Maïmouna Doucouré – consideraram, acertadamente, questionável. O anúncio apresentava quatro garotas pré-púberes em calças justas de spandex (tipo de lycra) e tops curtos fazendo poses de dança explícitas. Políticos, líderes religiosos e agências de defesa da mídia infantil exigiram que o Departamento de Justiça dos EUA investigasse a produção do filme. #CancelNetflix começou a ser uma tendência nas redes sociais.

Os problemas centrais de Cuties são as sequências de dança. E há motivos para se preocupar. Para ajudar a entender por que, o trabalho da estudiosa do cinema feminista Laura Mulvey e o seu conceito do “olhar masculino” (male gaze) podem ajudar.

A cineasta franco-senegalesa Maïmouna Doucouré no Festival de Sundance: intenção de fazer filme crítico tropeça em problemas (Foto: Divulgação)
A cineasta franco-senegalesa Maïmouna Doucouré no Festival de Sundance: intenção de fazer filme crítico tropeça em problemas (Foto: Divulgação)

O olhar masculino de Mulney descreve como o cinema distingue entre o protagonista masculino, que conduz o enredo, e o “espetáculo feminino”, cujo valor para o filme é mais por seu apelo visual do que por suas contribuições para a trama. O olhar masculino não é apenas para homens na plateia. Ele define como o filme é construído para que todos o vejam através de sua perspectiva de gênero. Técnicas cinematográficas, desde iluminação até edição e trabalho de câmera, induzem esse olhar voyeurístico e até sádico na atriz.

Quando as garotas dançam em Cuties, a câmera viaja lentamente por seus corpos, demorando-se na barriga e virilhas. Há cortes rápidos em close-ups de pernas abertas e traseiros girando. As meninas não são desajeitadas ou desagradáveis, intensificando o olhar masculino com um espetáculo deslumbrantemente impecável. Há muito o que criticar aqui – mas culpar a sexualização torna as coisas piores.

Definições de sexualidade estreitas e racistas

O conceito “sexualização” foi introduzido em 1975 pelo psicólogo Graham B. Spanier para definir o desenvolvimento da identidade de gênero e atitudes sexuais. Trinta anos depois, a American Psychological Association (APA) ajudou a tornar este conceito a estrutura dominante para qualquer discussão sobre o desenvolvimento sexual de adolescentes por meio de sua Força-Tarefa sobre a Sexualização de Meninas. A APA estabeleceu uma relação de oposição entre sexualização e “sexualidade saudável, [que] promove a intimidade, o vínculo e o prazer compartilhado, e envolve o respeito mútuo entre parceiros consentidos”.

Embora isso possa parecer bom à primeira vista, este conceito de sexualização depende da aceitação inquestionável da heteronormatividade monogâmica e romântica como o único modelo de sexualidade “saudável”. Além disso, enfatiza demais a influência negativa da mídia, ao mesmo tempo que ignora os discursos sexuais negativos em sistemas sociais religiosos, educacionais, médicos ou familiares. Deixa de considerar, por exemplo, o moralismo da pureza religiosa ou programas de educação sexual que enfocam o perigo em vez do prazer e marginalizam as identidades LGBTQ+. Não aborda práticas médicas patriarcais, nem pais que não querem ou são incapazes de falar sobre sexo com seus filhos.

A sexualização também tem tendências de racismo. Privilegia ideais de feminilidade branca. Um alvo regular dos críticos é a dance music urbana, em particular as lendárias garotas de vídeo do hip hop, os dançarinos de apoio conhecidos por seus trajes reveladores e coreografia explícita. As gatas mais conhecidas desses vídeos são mulheres negras ou racializadas.

O medo de que as meninas estejam estimulando uma sexualidade feminina distintamente negra está enraizado na angústia racista de que as mulheres negras são sedutoras demais para os homens brancos resistirem e, portanto, ameaçam a pureza de uma raça supremacista branca.

Mulheres negras que afirmam seu direito de ser sexual enfrentam ataques não apenas de abusadores racistas, mas também daqueles que as culpam por não se comportarem “de maneira respeitosa”. Quando Cuties usa a capacidade de chocar das letras de música dançante e das coreografias inspiradas em videoclipes sensuais, ele acaba, sem querer, alinhando-se com o mesmo pânico social conservador que está tentando cancelar o filme.

Cena com as jovens protagonistas de Cuties: crítica feminista às sequências de dança com olhar masculino (Foto: Divulgação)
Cena com as jovens protagonistas de Cuties: crítica feminista às sequências de dança com olhar masculino (Foto: Divulgação)

Atenção para spoilers abaixo

Preso à sua própria tese contraditória sobre sexualização, o filme não consegue encontrar uma conclusão satisfatória para a trama. No meio de uma competição de dança, repentinamente chocada e envergonhada com seu comportamento, Amy foge do palco e volta para casa, onde a mãe está se preparando para o segundo casamento de seu marido.

Eles se reconciliam enquanto a mãe parte para o casamento em seu traje senegalês mais glorioso. Amy fica para trás e, agora vestida com jeans e camiseta, ela se junta a um jogo de pular corda no pátio do prédio. Devemos acreditar que ela, de alguma forma, se libertou da sexualidade opressiva e excessiva ao adotar a moda básica.

A resolução perfeita do filme capitula à política de respeitabilidade ocidental e neoliberal. Parece sugerir que Amy é a causa e o alívio de sua confusão sexual. Essa é a marca registrada da sexualização: reduzir formas complexas e interconectadas de opressão social e sexual a uma patologia psicológica.

A sexualização desvia a atenção da confluência de estruturas sociais que impõem expectativas conflitantes sobre as mulheres jovens, transforma questões sociais em problemas de personalidade individual, estigmatiza o prazer sexual feminino e ignora as próprias ansiedades de homens e meninos sobre os padrões sexuais igualmente abusivos exigidos deles. Na academia, feministas permanecem céticas em relação à sexualização porque ela ofusca a discussão muito mais importante do sexismo.

O desmantelamento do patriarcado e da heteronormatividade para abrir caminho para escolhas sexuais diversificadas, positivas e baseadas no consentimento para as mulheres jovens é urgentemente necessário. Sem isso, o estigma e a vergonha – as ferramentas contundentes da sexualização – persistirão e as mulheres jovens continuarão a ser culpadas pelo assédio e agressão sexual sistêmica que devem aprender a suportar desde muito jovens.

*Rebecca Sullivan é professora de Estudos da Mulher da Universidade de Calgary

(Tradução: Oscar Valporto)

 

The Conversation

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