ODS 1
Sonho de brasileiras no exterior se transforma em um pesadelo cotidiano de assédio e medo
Com poucos dias de existência, projeto reúne mais de sete mil seguidores e mais de 70 denúncias de mulheres que lutam por mais respeito
Ao voltar do encontro com a amiga, Denise percebe que está sendo seguida. É o mesmo homem que a olhava a noite toda – será coincidência? – e que começa a chamá-la, mas ela usa como escudo os fones de ouvido que não tocam som algum. Preocupada, acelera o passo, o homem também. Na mão esquerda de Denise, as chaves entre os dedos, na rua, a pouca iluminação e atrás o sujeito, que faz Denise correr como nunca na vida – porém, ainda “acompanhada”. Na rua de casa, o portão não abre, mas o estranho continua buscando-a por todos os lados. Quase como um milagre, ela consegue entrar em casa e, lá dentro, encontra alívio, mas também muito choro e insegurança.
Parece filme de Hollywood, mas não é. A brasileira, de 20 anos, que vive em Lyon, na França, desde 2018, caracteriza o episódio como “o pior assédio que já sofri na minha vida”. Histórias como a de Denise se repetem inúmeras vezes com mulheres que vão tentar a vida fora do Brasil e sofrem com assédio, discriminação e xenofobia. A recente popularização da página no Instagram “Brasileiras não se calam”, que denuncia casos como esse, traz à tona um velho e conhecido problema tupiniquim: a hiperssexualização de mulheres brasileiras para estrangeiros.
Em pouco mais de uma semana de criação, o projeto já conta com mais de sete mil seguidores e mais de 70 denúncias anônimas. A página alega que a iniciativa é necessária porque “infelizmente, o assédio contra mulheres brasileiras no exterior é frequente”.
A integrante e advogada luso-brasileira Marília Moraes, de 25 anos, trabalha em Portugal com Direito Migratório e conta que a equipe está se organizando rapidamente para dar apoio às mulheres que denunciam. “Nosso time ainda é bem pequeno e composto apenas por voluntárias. Elas chamaram uma psicóloga e três advogadas para prestar consultoria quanto ao apoio jurídico necessário em Portugal para a defesa das vítimas de violência, discriminação e xenofobia. Estamos fazendo a divisão do nosso trabalho para ajudar essas mulheres”, relata.
Apesar de trazer histórias de países diversos como Estados Unidos, Espanha e China, a maioria das postagens se refere a Portugal. Tal número não surpreende – é nele que está a primeira maior comunidade brasileira na Europa, segundo o censo consular mais atualizado do Ministério das Relações Exteriores. A estudante de Jornalismo Luiza Lunardi, de 23 anos, que fez intercâmbio na Universidade de Coimbra em 2019, explica que as brasileiras são vistas como “fáceis” por uma parcela dos lusitanos. “Nas festas, eu ouvia os ‘tugas’ comentando entre si que éramos todas p*utas por causa do jeito que dançávamos e por causa da nossa roupa”, conta.
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No entanto, assediar e estereotipar brasileiras não é exclusivo dos europeus. A estudante Alice, de 24 anos, conta que, aos 19, enquanto esperava a mãe em um aeroporto na Colômbia, um homem abaixava o celular e fotograva debaixo de sua saia. “Quem percebeu foi minha mãe. Tivemos que fazer um escândalo para que a polícia o obrigasse a apagar as fotos”, explica. Já a intercambista Milena, de 20 anos, narra um episódio ocorrido ao se envolver amorosamente com um rapaz mexicano nesse ano: “Estávamos um pouco bêbados e fomos para a casa dele. Ele começou a me fotografar e eu pedi para que ele parasse – ele o fez. Mas, depois de termos relação sexual, ele pegou o celular novamente para fotografar o meu corpo, minhas partes íntimas, achando que eu não fosse ligar por estar alterada”.
Em Brisbane, na Austrália, Lorena, de 21 anos, trabalhava como garçonete em um bar, em 2018, quando um homem mais velho a abordou dizendo que ela “precisava casar com alguém como ele para ganhar a cidadania” e depois tentou beijá-la. Em San Diego, nos EUA, Luana, de 22 anos, foi assediada seguidas vezes por um rapaz em seu local de trabalho, dizendo que “como era afro-americano e ela, brasileira, os dois teriam bebês lindos”. No entanto, ela recebeu apoio dos colegas e do chefe, que pediu para o que jovem parasse de importuná-la.
Na Índia, a analista de Estratégia Business Development Maria, de 29 anos, morou de 2018 até esse ano, quando voltou ao Brasil por conta da pandemia. Solitária em Mumbai, ela começou a usar um aplicativo de relacionamento. Algum tempo depois, um rapaz mandou mensagem em seu Instagram, alegando ter dado “match” com ela no aplicativo, fato do qual Maria não se lembrava. Após uma troca de mensagens e demonstração de rejeição da parte dela, o rapaz indiano alegou que descobriu nas redes o local onde ela trabalhava e que morava no mesmo apartamento. A história durou do início de dezembro de 2019 até fevereiro desse ano, quando Maria o bloqueou definitivamente.
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As estudantes Lorena e Luana em San Diego e Brisbane, respectivamente. Foto: Arquivo pessoal
O Ministério das Relações Exteriores disponibiliza orientações quanto aos perigos que corre uma mulher fora do país, mencionando tópicos como a violência doméstica, os crimes sexuais, os casamentos forçados e o tráfico de pessoas. O relatório de 2019 da Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180 mostra que o canal está disponível em 16 países, como Portugal, EUA, Argentina e Guiana Francesa. No entanto, o documento também aponta que o número foi pouco discado em países estrangeiros. Foram 35 chamadas no total, sendo o maior número nos Estados Unidos e em Portugal (7). Em 2018, foram 36 ligações.
Em visita ao Espaço da Mulher Brasileira (Emub) em Boston em julho de 2019, a ministra da Mulher, Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, afirmou que pretende levar o serviço para outros países. “Queremos que todas tenham onde buscar ajuda em solo estrangeiro. O governo brasileiro tem essa responsabilidade”, afirmou a ministra.
Apesar dos esforços, o Governo Federal parece falhar também “dentro de casa”. No estudo produzido em 2019 pela entidade Asher & Lyrics, que reúne dados da Forbes, CNN, National Geographic e outros veículos, o Brasil é apontado como o segundo país mais perigoso para mulheres que viajam sozinhas. O documento chama atenção para os perigos de andar sozinha à noite, violência nas relações íntimas e alto índice de desigualdade de gênero.
Confira mais depoimentos de mulheres brasileiras vítimas de assédio no exterior:
“Ele era um amigo da família durante a minha adolescência, que passei em Berlim. Quando voltei para lá com meu irmão, fui a um café, ele viu no meu Instagram e esperou do lado de fora. Falou que eu era ‘muito sexy’ e que adorava o tom da minha pele. Quando ameacei ir embora, ele agarrou meu braço e me beijou. Nunca contei para ninguém, nem para a minha irmã.” – Juliana, 27 anos, professora, morou na Alemanha com a família quando adolescente.
“Um menino viu que meu amigo homem me mandava mensagens de madrugada e me repreendeu, pois aquilo significava sexo fácil. Eu nem o conhecia. Depois, pediu meu número e disse que era para que ‘poder transar com uma brasileira também’” – Lara, 22 anos, jornalista, fez intercâmbio na Espanha em 2020.
“Colocaram bilhetinhos em francês nas portas dos meninos do alojamento em meu nome, dizendo ‘preciso das suas camisinhas’, seguido de um coração e o número do meu quarto. Uma noite, um menino irlandês bateu na minha porta querendo me forçar a transar com ele” – Joana, 22 anos, estudante, fez intercâmbio na França em 2020.
“Fiquei com um colombiano em uma festa. Ele me levou para um canto escondido e mostrou o pênis para mim” – Jaqueline, 21 anos, estudante, fez intercâmbio na Alemanha em 2019.
Todas as mulheres dessa reportagem tiveram seus nomes protegidos.
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Repórter freelancer no Rio. Trabalha no coletivo de mídia livre Voz da Baixada, produzindo matérias de denúncia social na Baixada Fluminense. Já trabalhou na Câmara Municipal do Rio e na Embaixada Britânica no Brasil. Interessada por temas como diversidade, inclusão e políticas públicas, utiliza o Jornalismo como instrumento para combater desigualdades sociais.
É assustador esses relatos. E gera um sentimento de revolta e impotência. Mas, é gratificante ver projetos como esse surgindo. Que muitos outros sejam criados e que as brasileiras sintam-se acolhidas no exterior.
Quando as pessoas entenderão que temos que nos unir e não ficar um contra o outro? Isso é simplesmente insano. E esse bullying está em toda parte – online e offline. Para muitas pessoas, é mais importante saber como rackear facebook.com e acessar as mensagens ou dados de alguém do que ajudar quem precisa.
muito bacana a reportagem, Anelise! Adorei seu texto! Uma pena que tantas mulheres brasileiras ainda sofram com estereótipos, xenofobia, machismo, abusos físicos e psicológicos, entre outros absurdos. através desse tipo de página no instagram e de reportagens que evidenciem essas situações que podemos começar uma conscientização da população.