ODS 1
Brasileiras podem se tornar ‘Guardiães Mundiais da Biodiversidade’
Apanhadoras de flores sempre-vivas buscam reconhecimento da FAO como patrimônio agrícola importante
(Fotos João Roberto Ripper) – O próximo dia 21 de junho é de importância capital para as comunidades tradicionais de apanhadoras de flores sempre-vivas da Serra do Espinhaço, no Vale do Jequitinhonha (MG). Nessa data, um importante comitê científico da FAO, órgão das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura, estará reunido em Roma para avaliar a candidatura das apanhadoras de flores mineiras com vistas à concessão do selo GIAHS, sigla em inglês para Sistemas Globais de Patrimônio Agrícola Importante.
[g1_quote author_name=”Maria de Fátima Alves” author_description=”Apanhadora de flores” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Quem é da roça sofre muito preconceito e a indicação para esse prêmio é um ganho muito grande para nós; saímos da invisibilidade, trouxe muita esperança
[/g1_quote]O título é um reconhecimento da FAO/ONU a grupos tradicionais que preservam técnicas milenares de manejo da terra e desenvolvem em seu território uma relação sustentável com a natureza. Com isso, qualificam-se a integrar o programa da FAO de reconhecimento de Sistemas Agrícolas Tradicionais de Relevância Global, sendo identificados como “guardiães mundiais da biodiversidade”.
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Graças a seu modo de vida, que engloba técnicas ancestrais de manejo do meio ambiente, as comunidades de apanhadoras de flores, formadas, em sua maioria, por quilombolas (remanescentes de antigos quilombos de escravos), poderão ser aceitas nesse seleto grupo que, em todo o mundo, reúne apenas 50 comunidades de 20 países, a maioria na Ásia.
Para conquistar o selo, porém, as apanhadoras de flores do Jequitinhonha ainda precisam vencer algumas etapas. A primeira ocorreu no ano passado, quando formalizaram sua candidatura ao título, com a entrega de um dossiê ao representante da FAO no Brasil, Alan Bojanic. A solenidade foi durante o I Festival dos Apanhadores e Apanhadoras de Flores Sempre-Vivas, realizado em Diamantina, nos dias 21 e 22 de junho de 2018. A candidatura recebeu o apoio de pesquisadores e acadêmicos de universidades federais e outros órgãos públicos, como a Embrapa, Empresa Brasileira de Pesquisas Agropecuárias, que ajudaram a construir o documento.
A etapa seguinte foi a primeira avaliação pelo comitê científico internacional GIAHS/FAO, em sua sede, em Roma, em novembro de 2018. Agora, a candidatura se submeterá a nova avaliação, em mais um encontro na Capital italiana, dia 21. Em novembro deste ano, o grupo volta a ser avaliado. Se aprovadas em todas essas fases, a candidatura ainda terá que se submeter a uma prova final e decisiva: a visita de um representante do comitê internacional às comunidades, para verificação, in loco, das técnicas e atividades desenvolvidas.
México, Chile e Peru já foram contemplados
Se aprovada, a atividade das apanhadoras de flores do Vale do Jequitinhonha será o quarto sistema agrícola tradicional da América Latina a receber o selo GIAHS e elas serão oficialmente reconhecidas como “guardiães mundiais da biodiversidade”.
Até hoje, deste lado do Planeta, apenas três sistemas foram contemplados com o título: no México, o sistema agrícola Chinampas, um conjunto articulado de ilhas artificiais flutuantes construídas de forma tradicional, com base na transmissão oral da cultura chinampera asteca; no Peru, a agricultura andina, da região de Cusco-Puno, modelo preservado por mais de 5.000 anos; e, no Chile, a agricultura do arquipélago de Chiloé, uma reserva única de muitas espécies, onde se preserva o trabalho milenar de conhecimento indígena, com terraços, sistemas de irrigação local e ferramentas agrícolas tradicionais.
Esses sistemas únicos de agricultura, que sobrevivem em diferentes pontos do globo, fornecem sustentavelmente segurança alimentar e de subsistência para milhões de pequenos agricultores e constituem a base das inovações e tecnologias agrícolas contemporâneas e futuras.
Contudo, estão sob ameaça de fatores como as mudanças climáticas e a crescente competição por recursos naturais, por meio de intervenções predatórias. Sofrem também com a migração de populações tradicionais, compelidas por questões econômicas, o que resulta no abandono de práticas agrícolas ancestrais e perda de espécies endêmicas e raças, conforme explica a pesquisadora da Embrapa Patrícia Goulart Bustamante, representante da América Latina e Caribe no Comitê Científico do GIAHS.
“A candidatura ao selo é uma iniciativa das próprias comunidades. Ao se candidatarem, os Sistemas Agrícolas Tradicionais (SAT) têm que estar ativos e preservando práticas tradicionais milenares, qualidades presentes na comunidade das apanhadoras de flores sempre-vivas”, resume.
Outra pesquisadora que apoia integralmente essa cultura é Fernanda Monteiro, doutoranda em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo (USP). Segundo ela, a atividade das apanhadoras de flores da Serra do Espinhaço não se limita ao extrativismo vegetal. Alcança também a produção de alimentos por meio de roças em que são usadas técnicas tradicionais, além da criação de gado.
Ela destaca “a capacidade de desenvolvimento dessas práticas em condições adversas, em altitudes elevadas, acima de 800 metros, um conhecimento carregado de ancestralidade, envolvendo as três principais matrizes do povo brasileiro – as raízes lusa, africana e indígena”. Ressalta ainda o protagonismo das mulheres nessas atividades e o esforço da comunidade para garantir seu sustento sem abrir mão das técnicas tradicionais.
Para isso, além das casas que ocupam nas partes baixas, mais ou menos a 600 metros de altitude, as famílias também mantêm moradia nas partes altas, em geral adaptando grutas e cavernas, chegando a até 1.400 metros de altitude, num processo tecnicamente conhecido como “transumância”, que se caracteriza pelo deslocamento de grupos humanos e se diferencia da atividade nômade.
Ao contrário dos nômades, a prática da transumância pressupõe uma moradia fixa à qual os grupos retornam após concluídas as atividades que motivaram o deslocamento.
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Ligia Coelho
É jornalista há mais de 40 anos. Entre outros veículos, passou pelo jornal Última Hora, TV Manchete e assessorias de imprensa. Trabalhou como jornalista concursada da Assembleia Legislativa de Minas Gerais, de onde se aposentou após dez anos. Em 2002, venceu o Concurso de Monografias Giovanni Falcone, na categoria jornalista, promovido pela Associação de Magistrados do Estado do Rio de Janeiro (Amaerj), sobre o tema “Direito à privacidade e liberdade de expressão”.