ODS 1
O amor como porta da inclusão
Chácara de classe média é escola para deficientes em área rural perto de Brasília
Há 30 anos, o administrador de empresas Valdemar Vasconcelos Filho passava um fim de semana com amigos na chácara da família em Luziânia, Goiás, cidade a 50 minutos do centro de Brasília, quando teve uma ideia: “A gente tem que dar uma finalidade social a este lugar”, disse, segundo quem estava por ali naquele dia.
O terreno de 15 mil m² poderia ser até hoje apenas mais uma das centenas de chácaras que pertencem à classe média da capital do país, mas, cinco anos depois, se transformou na Escola Maria Teixeira, a única na zona rural de Luziânia. O município é reduto da Família Roriz, que mandou e desmandou na política do Distrito Federal e de parte de Goiás durante quase três décadas.
[g1_quote author_name=”Francisca Tertuliano” author_description=”Professora que alfabetizou a própria mãe” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Eu costumo dizer que é um presente. Eu olho pra ela e vejo que tô podendo fazer algo que eu não fiz antes, porque antes eu não tinha o conhecimento, a pedagogia, as formas de ajudar
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Veja o que já enviamosMas ser apenas uma escola ainda era pouco para o que queria aquele grupo de jovens idealistas que frequentava a chácara, e a Maria Teixeira virou uma escola de inclusão, totalmente gratuita, para as famílias de agricultores da região. A irmã de Valdemar, Silvana Vasconcelos, hoje com 54 anos e 28 de magistério, tomou a frente do projeto. Na época, início dos anos 1990, ela já era experiente na educação de alunos surdos na rede pública do Distrito Federal.
“Quando surgiu a ideia, a Silvana deu uma volta nos arredores e percebeu que tinha muita gente que ‘tava fora da escola porque tinha algum tipo de deficiência ou física ou mental’”, lembra Ana Morelli, amiga da família e testemunha da ideia do irmão mais velho de Silvana. Ela se lembra de um menino com deficiência mental, de uns 10 anos, e que vivia acorrentado porque os pais não sabiam lidar com a situação. “Esse menino virou aluno da escola, se socializou, aprendeu regras de convivência, a não agredir os colegas e deixou de viver acorrentado”, completa.
A vivência de Silvana com alunos surdos levou a linguagem dos sinais automaticamente para dentro da Maria Teixeira. “Libras é a 2ª língua da escola, é matéria obrigatória”, informa a diretora, mas não só por causa dos deficientes auditivos. “Ela (Libras) trabalha muito o lado psicomotor, de lateralidade, de espacialidade. Então, para a criança que está sendo alfabetizada é extremamente importante”, enfatiza Silvana, que ainda destaca o benefício da linguagem para quem tem dificuldades motoras. “Uma pessoa com paralisia cerebral que afetou a fala, por exemplo. Ela ouve, mas não fala e ela aprende Libras com essa finalidade”, e emenda com o caso do aluno José Neres, hoje com 18 anos, que chegou à escola sem conseguir se comunicar. “A partir do momento que esse menino começou a aprender Libras, o pensamento dele desabrochou e agora ele interage, conta até histórias”.
Encravada no meio de uma boa faixa de cerrado ainda preservada, a Maria Teixeira é a única escola perto para os filhos de agricultores. Quando pensamos nas crianças com deficiência, aí então é que ela se torna mesmo a única opção. “Se não fosse a escola, esses alunos maiores de 15 anos provavelmente estariam em casa”, admite Silvana.
Pelo o que diz a família, é o caso de Paulo Sérgio Gomes de Oliveira, de 38 anos, portador de síndrome de down, 2º aluno da escola, há 25 anos. “Não tenho a mínima ideia de qual seria o colégio em que ele iria estudar, não teria disponibilidade para levá-lo”, conta o irmão, Mario César. De acordo com os irmãos, Paulo Sérgio também era agressivo em casa, até entrar para a escola. “Hoje ajuda a limpar a casa, a fazer comida, se tem roupa no varal, ele tira, dobra, guarda”, conta a irmã, Luíza, para quem “nem muito especial ele não tá mais, já tá normal, igual a gente”.
“Eu era gago, não fazia amizades porque tinha vergonha, não conseguia falar direito. Aí não entendia a matéria, tinha vergonha de perguntar e ficava na minha. Aqui eu fiz amigos”, é assim que Danilo Guimarães, de 21 anos, resume os quatro anos em que foi aluno do lugar. Ele não se adaptou em outras escolas por causa da dificuldade de aprendizagem. Então, por que se adaptou à Maria Teixeira? “Porque aqui é muito diferente de outras escolas, tipo o respeito, o modo de ensinar, entendeu? A atenção com a pessoa também”, define com simplicidade.
[g1_quote author_name=”Antônia Rocha” author_description=”Professora” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]A motivação do professor é essencial. A partir do momento em que o professor ama a sua profissão e ama o local de trabalho, é fácil dar aula, porque a gente tem amor maior pelo aluno. Ele (aluno) rende mais porque a professora ama o aluno e isso faz toda diferença no aprendizado dele
[/g1_quote]Sobre a mesa de Silvana, há dezenas de pedidos de matrículas. Com dó, ela diz que não há como receber mais alunos do que os 260 atuais, divididos entre a educação infantil, a especial e 1ª a 5ª séries, além da estimulação precoce (para 17 crianças pequenas com deficiência) e da alfabetização de adultos, que à tarde tem 16 alunos de 45 a 77 anos. Um deles é Gilson Ribeiro Alvez da Silva, de 54 anos, caseiro da escola. “Tenho que tirar habilitação (CNH) e fica difícil, né? Tem que ser rápido na leitura pra ler a placas”, argumenta, contando feliz que não precisa mais de ninguém para dizer qual é o banheiro dos homens quando na porta não há o bonequinho com figura masculina. “Imagina isso! Um caseiro que não sabe ler, dentro da escola!”, exclama Silvana, falando sobre o caso de Gilson e lembrando que os avós e os pais matriculavam as crianças tendo que usar a digital para assinar. “Não dava pra ‘dormir com esse barulho’“, e a diretora revela o que levou a Maria Teixeira a alfabetizar adultos.
A iniciativa propiciou experiência inusitada à professora Francisca Tertuliano, de 44 anos: alfabetizar a própria mãe. “Eu costumo dizer que é um presente. Eu olho pra ela e vejo que tô podendo fazer algo que eu não fiz antes, porque antes eu não tinha o conhecimento, a pedagogia, as formas de ajudar”, conta, emocionada, Francisca, que tem apenas sete anos de magistério.
Independentemente da série que cursa e da idade do aluno, a Maria Teixeira trabalha com todos uma ideia central: solidariedade e respeito pelo próximo, pelas diferenças e pela certeza de que todo mundo é capaz de ajudar. E na escola, a gente percebe que não há como ser de outro jeito. “Nós temos aqui crianças surdas, cegas, com paralisia cerebral, com deficiência mental, síndrome de down, cadeirantes, autistas e com dificuldades de aprendizagem”, enumera Silvana.
Essa preocupação com o semelhante foi parar no currículo. Ética do Amor é outra disciplina obrigatória na Maria Teixeira, tanto quanto as tradicionais português e matemática. “As crianças aprendem, como disciplina, a serem solidárias, a respeitar as diferenças, que todo mundo pode ajudar mesmo com a limitação física, que todo mundo precisa de ajuda. E que fazer o bem faz bem”, e a diretora ilustra com um exemplo o efeito prático da matéria. “Tem um aluno aqui com paralisia cerebral que quer empurrar a cadeira de rodas de outro. E eu vou falar pra ele que ele não pode? Ele vai!”. Além de Ética do Amor e de Libras, Respeito à Natureza é mais uma matéria obrigatória no currículo e que não possui o perfil do ensino tradicional. Ela permeia todas as outras disciplinas e atividades dos alunos, ou seja, é aplicada o tempo inteiro, sendo na economia de água ou na reciclagem de material.
Sem ajuda financeira da Prefeitura – a secretaria de Educação dá apenas o transporte dos alunos – Silvana fecha a contabilidade todos os meses com um déficit de R$ 20 mil. Para manter funcionando a escola que leva o nome de sua mãe, a diretora conta com a ajuda mensal de cerca de 200 colaboradores – pessoas físicas – que contribuem em média com R$ 100, sendo que algumas doações chegam a R$ 1,5 mil (Para colaborar, acesse www.escolamariateixeira.com). No fim do ano, precisou fazer campanha de arrecadação para pagar o 13º salário dos funcionários (na contramão dos tempos atuais, todos na escola têm carteira assinada). Há também quem colabore com doação de material ou trabalho voluntário. No dia em que estivemos na escola, uma equipe de oftalmologistas planejava montar um mutirão de exame de vista para os alunos.
Parte do gasto mensal de R$ 60 mil da escola é paga com a receita de uma pequena fábrica de pão de queijo inaugurada em 2017, no próprio terreno. “Eu estava fazendo exame em um laboratório de Brasília que dá pão de queijo de café da manhã para os pacientes e tive a ideia de fazer pão de queijo para ajudar na receita da escola”, conta Silvana. Ela e a equipe pensaram a fábrica e acabaram vencendo um edital para projetos sociais da Embaixada da Austrália. Agora, a diretora espera resposta da Embaixada da Suíça e do Banco do Brasil para conseguir R$ 40 mil e comprar uma câmara fria, equipamento que ela espera permitir dobrar a produção diária de 900 quilos de pão de queijo e cobrir o buraco de R$ 20 mil nas contas.
Os depoimentos colhidos na Escola Maria Teixeira destoam do que no geral se ouve sobre educação em áreas carentes no Brasil. “A motivação do professor é essencial. A partir do momento em que o professor ama a sua profissão e ama o local de trabalho, é fácil dar aula, porque a gente tem amor maior pelo aluno. Ele (aluno) rende mais porque a professora ama o aluno e isso faz toda diferença no aprendizado dele”, discorre sorridente Antônia Rocha, 31 anos, professora há nove e salário que não chega a R$ 3 mil. “Eu amo a escola, a escola é a minha segunda casa. É aqui que a gente aprende a ser uma pessoa melhor. Embora seja meu local de trabalho, eu me torno uma pessoa melhor aqui”, responde sem titubear a professora quando perguntada se gosta da escola.
Na escola Maria Teixeira, o amor acaba fechando a contabilidade.
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Jornalista com 30 anos de experiência. Já foi repórter, apresentador e chefe de redação no Sistema Globo de Rádio e no Grupo Bandeirantes de Comunicação. É pós-graduado em Gestão da Comunicação das Organizações pelo UniCeub. É carioca e mora em Brasília há 20 anos. Também é escritor e mantém site e blog em www.andregiusti.com.br