ODS 1
As cadernetas que dão poder às mulheres
Ao contabilizarem produção para consumo, doação, troca ou pequenas vendas, mulheres ganham autonomia nos lares
Ao contabilizarem produção para consumo, doação, troca ou pequenas vendas, mulheres ganham autonomia nos lares
Quando chegava do trabalho, o marido de Maria da Conceição Caetano, conhecida por todos como Dona Lia, sentava e esticava as pernas, esperando que ela tirasse o seu sapato. Hoje, ela mesma enxerga no ato corriqueiro uma demonstração do patriarcado arraigado, principalmente nos costumes das famílias do campo como a dela, moradora da cidade de Acaiaca, um município mineiro com menos de 4 mil habitantes. A mudança na postura do casal veio com o tempo, especialmente depois que Dona Lia pôde mensurar e mostrar para todos o quanto ela contribuía para o orçamento e para a segurança alimentar da família mesmo sem sair de casa. E isso foi possível por meio das Cadernetas Agroecológicas, um caderninho distribuído pelo Centro de Tecnologias Alternativas da Zona da Mata (CTA-ZM) no qual ela passou a anotar tudo o que produzia em seu quintal: o que foi consumido, o que foi doado, o que foi trocado e o que foi vendido. Assim como a dona de casa, outras mulheres do país vêm se empoderando e ganhando reconhecimento e autoestima por meio desse mecanismo simples, que funciona em 20 estados e já foi até exportado para a Itália.
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Veja o que já enviamosNo fim do dia, eu estava cansada e não sabia o que tinha feito
[/g1_quote]Além de cuidar da casa e dos filhos, Dona Lia produzia em seu quintal frutas, verduras, legumes e ervas que não só alimentavam a sua família, como eram distribuídos para os vizinhos e até para a escola das crianças. Praticamente sozinha, ela cultivava 180 espécies de plantas – uma biodiversidade que impressiona -, mas achava que não fazia nada:
“A gente trabalha tanto e não sabe o que faz. No fim do dia, eu estava cansada e não sabia o que tinha feito. Quando a gente vê na caderneta, no fim do mês, a produção, temos a dimensão do nosso trabalho”.
[g1_quote author_name=”Dona Lia” author_description=”Agricultora” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Se eu tivesse que comprar as verduras e tudo mais que tenho no quintal, não tinha condições de alimentar a família toda
[/g1_quote]E isso é possível quando ela calcula, em reais, o que produziu. Todo fim de mês, Dona Lia avalia o valor de mercado do seu trabalho ao comparar o que colheu no seu quintal com os preços dos quilos praticados no comércio da região. Então, é possível mensurar a renda não monetária da família.
“Se eu tivesse que comprar as verduras e tudo mais que tenho no quintal, não tinha condições de alimentar a família toda. Somos 17 pessoas, e eu só ganhava R$ 250 de bolsa família, que não ganho mais”, conta ela, emendando num discurso consciente: “Hoje, eu tenho como provar para o meu marido que eu trabalho. A igualdade de gênero tem que existir, e as mulheres precisam lutar por isso”
Ao tabular as anotações de 264 cadernetas de 16 estados, os responsáveis pelo projeto viram que a renda produzida por essas mulheres somou o equivalente a R$ 1.688.091,13 ao longo de um ano (entre 2017 e 2018). Individualmente, a média nacional de produção teve mínima de R$ 638, em setembro, e máxima de R$ 940, em março, de 2017. De tudo o que saía dos quintais, 51% era destinado para consumo da própria família, 19% para doação, 3% para troca e 27% para venda.
Antes da tecnologia, embora muitas vezes anotassem o que acabavam vendendo, as mulheres não registravam o que produziam para autoconsumo e para troca, algo muito comum no campo por conta do excedente. É nesse sentido que a metodologia das Cadernetas é inovadora:
“Ninguém planta a quantidade de laranja que sua família vai consumir. Você planta um pé de laranja. O que sobrar, você vai doar para os seus vizinhos, para os seus parentes. E isso também têm valor”, afirma Beth Cardoso, coordenadora do Programa Mulheres e Agroecologia do CTA-ZM.
Mas, como ela mesmo reconhece, era um trabalho invisível, assim como o trabalho doméstico feito por elas. Beth explica que as cadernetas conseguiram atingir o objetivo inicial que era jogar luz sobre esse trabalho e mudar a relação de poder nas famílias.
“Em geral, a família só percebe que alguém arruma a casa, quando a pessoa não está lá e a casa fica bagunçada. A caderneta é uma metodologia feminista porque consegue melhorar a autoestima de mulheres que, muitas vezes, estavam deprimidas porque eram convencidas de que não serviam para nada”.
O registro sistemático também fez com que muitas mulheres pudessem comprovar junto ao INSS a sua condição de agricultora para ter acesso a direitos sociais como aposentadoria, licença-maternidade.
O programa que surgiu em 2011 na Zona da Mata mineira acabou sendo expandido para um projeto nacional, em parceria com outras redes regionais de mulheres.
Coordenadora de Direito das Mulheres da ONG ActionAid no Brasil (uma das apoiadoras do projeto), Ana Paula Ferreira ressalta que algumas mulheres passaram a começar a emprestar dinheiro para o marido, após organizar o dinheiro da venda dos produtos por meio das cadernetas:
“Elas recebem R$ 2 por uma verdura, R$ 1 por um legume. É um dinheirinho miúdo, que parece não ter importância, mas que só não era contabilizado. Ao ter noção das suas produções, muitas mulheres conseguiram até aumentar a colheita, se dedicaram mais aos quintais e passaram a ser vistas como empreendedoras. As cadernetas partem de um princípio muito simples, mas capaz de uma grande mudança na vida das pessoas”.
[g1_quote author_name=”Ana Paula” author_description=”Coordenadora de Direito das Mulheres da ONG ActionAid no Brasil” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Muita gente imagina o feminismo como algo teórico. Mas não é
[/g1_quote]Dona Lia, por exemplo, além de aderir ao projeto das cadernetas, hoje faz parte da Comissão de Mulheres do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Acaiaca, criada pelas agricultoras para garantir que suas demandas específicas fossem atendidas, como a participação de mulheres nos espaços de formação técnica, o acesso a feiras e a editais de compras de produtos da agricultura familiar e a realização de discussões sobre violência de gênero. Por meio da associação ao sindicato, Dona Lia hoje disponibiliza seus cultivos em feiras locais e vem amadurecendo suas reflexões sobre os direitos das mulheres e a divisão de tarefas entre homens e mulheres dentro de casa. Além da Comissão de Mulheres do Sindicato, Dona Lia faz parte do Movimento de Mulheres da Zona da Mata e Leste de Minas.
“Muita gente imagina o feminismo como algo teórico. Mas não é. A caderneta agroecológica, por exemplo, é um método de valorizar o trabalho das mulheres, de formação e empoderamento. O patriarcado se adequa a qualquer lugar. Mas no meio rural é algo muito forte, que limita até o direito de ir e vir, primeiro pela questão do transporte, e depois porque os homens se colocam no direito de organizar a vida das mulheres, onde elas podem ir. Ao se afirmarem como geradoras de renda, elas passam a poder negociar em casa o que será feito com o dinheiro”, finaliza Ana Paula.
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Jornalista, com mestrado em Comunicação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), trabalhou nos jornais O Globo e Extra e foi estagiária da rádio CBN. Há mais de dez anos trabalha com foco em internet. Foi editora-assistente do site da Revista Ela, d'O Globo, onde se especializou nas áreas de moda, beleza, gastronomia, decoração e comportamento. Também atuou em outras editorias do jornal cobrindo política, economia, esportes e cidade.
Linda reportagem, mostra a força das mulheres em sair de uma condição tão enraizada na sua carne que nem notava sua submissão. Parabéns para toda a equipe .
Muito importante essa ideia de organização, que da visibilidade ao trabalho doméstico e “modesto” que as mulheres fazem, muitas vezes são responsáveis por 60% da renda da família e não percebem, enquanto isso os maridos vão destruindo a autoestima delas!