ODS 1
O preço justo do gelo e os carros da Zona Sul
Pressionada, prefeitura do Rio preserva estacionamentos e desloca bicicletários
Uma das questões que alçaram o filósofo norte-americano Michael Sandel ao patamar de ídolo pop foi apresentada em sua palestra mais famosa, Justiça, que mais tarde se tornou um dos mais concorridos cursos de Harvard. Sandel apresenta o seguinte problema: “No verão de 2004, o furacão Charley varreu o Golfo do México até a costa da Flórida, alcançando o oceano Atlântico. A tempestade causou 22 mortes e um prejuízo de US$ 11 bilhões em danos, e também deixou em seu rastro um debate sobre a manipulação de preços”.
[g1_quote author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”solid” template=”01″]Derrubar o fetiche pelo carro, símbolo máximo de status do século XX, pode nos levar a dias melhores, mas não apenas no que se refere a uma mobilidade mais sustentável. É preciso criar modos mais sustentáveis de negociar com o coletivo, e isso requer pôr em xeque todo este individualismo.
[/g1_quote]Com medo de perder alimentos e sem energia elétrica, a população precisava de gelo para conservar seus estoques. O pequeno saco plástico com um quilo de gelo, antes vendido por dois dólares, se supervalorizou. Donos de postos de gasolina começaram a vendê-los por dez dólares. Outros produtos que supririam necessidades básicas também dispararam. Nada muito diferente do que vimos por aqui durante a greve dos caminhoneiros: em todo o país, a situação caótica e o peso da lei da oferta e da procura foram os gatilhos de aumentos abusivos, com postos de combustível vendendo o litro da gasolina a oito ou dez reais. Transporte público parando, desabastecimento, reação em cadeia.
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Veja o que já enviamosMas nem todas as notícias são ruins. A bicicleta provou, mais uma vez, que pode nos socorrer diante do caos. No Rio de Janeiro, as bicicletas compartilhadas do sistema Bike Rio tiveram um aumento de uso de 25% em apenas sete dias. Observar situações de crise, como fez Sandel, pode nos ajudar a entender as lógicas que fundamentam a vida em sociedade. Ao mesmo tempo em que a bicicleta prova seu valor como modo de transporte, moradores da Zona Sul do Rio têm feito barulho por conta do reposicionamento das estações do Bike Rio. A empresa operadora do serviço, Tembici, instalou novos equipamentos, que ocupam mais espaço no solo.
O sistema anterior tinha 2.600 bicicletas, 260 estações e 3.000 vagas (docks). Ou seja, 1.15 vaga por bicicleta. O recomendável é que a relação seja de 2.5 vagas por bicicleta, e houve uma mudança positiva neste sentido. Enquanto as estações anteriores eram modulares e tinham entre 12-14 vagas, com a renovação da concessão o sistema permanece com 2.600 bicicletas e 260 estações, mas terá estações maiores, mais ajustadas à demanda, com, em média, 19 vagas, algumas destas chegando a mais de 30 docks. No total, serão oferecidas 4.680 vagas, ou 1.8 vaga por bicicleta. Isto amplia o conforto dos usuários, que não precisam pedalar mais do que o necessário para encontrar uma vaga para devolver a bicicleta. Uma estação com 19 vagas atende, portanto, dezenas de usuários do serviço.
Porém, um fator despertou humores azedos: os novos equipamentos ocupam o equivalente a três vagas de estacionamento. A recente crise poderia ensinar sobre o quão urgente é superar a dependência dos carros, mas a escolha que a Prefeitura tem feito, muitas vezes sem consultar setores técnicos, é de simplesmente reposicionar as novas estações em calçadas ou retirá-las. Não é razoável optar por três carros em detrimento de 19 bicicletas, que podem ser usadas por dezenas de pessoas a cada hora. Lamentavelmente, esta é uma lição que o governo e a sociedade não tem conseguido absorver nem mesmo na pior crise dos últimos tempos, o que nos faz ter certeza de que situações como esta se repetirão.
Derrubar o fetiche pelo carro, símbolo máximo de status do século XX, pode nos levar a dias melhores, mas não apenas no que se refere a uma mobilidade mais sustentável. É preciso criar modos mais sustentáveis de negociar com o coletivo, e isso requer pôr em xeque todo este individualismo. Abrir mão de vagas de estacionamento é um caminho para, um dia, vendermos gelo por um preço justo.
É Diretora do ITDP no Brasil e atua com políticas públicas desde 2001, com experiência no Brasil, Moçambique e Namíbia. É Mestre em Políticas Sociais pela London School of Economics. Entre 2006-2011, foi responsável pela expansão da BEN Namibia, se tornando a maior rede de bicicletas integrada a empreendimentos sociais na África sub-Saariana. Em 2010, foi premiada pela Ashoka no Desafio “Mulheres, Ferramentas e Tecnologia”. Clarisse é uma pessoa que só pensa em como transformar as cidades em lugares de felicidade.
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