ODS 1
A reinvenção do parafuso
A arte de transformar o vil metal em um negócio sustentável
“Vil Metal” era o nome de uma pequena loja de parafusos escondida num centro comercial de Copacabana. O dono, Seu Manuel, dividia o balcão de fórmica com o único empregado, Raimundo, que sonhava há décadas com um aumento de salário. Cansado das negativas do patrão, que sempre culpava a crise, ele sugeriu uma reinvenção. Seu Manuel, tão analógico quanto o produto que vendia, demorou para entender. Procura no Facebook, seu Manuel, dizem que lá o pessoal tem solução pra tudo, aconselhou Raimundo
Bastou uma semana nas redes para que o Seu Manuel descobrisse como a banda toca. Seu Manuel tinha métodos analógicos mas esperteza digital.
[g1_quote author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”solid” template=”01″]Finalmente a “The Green Screw” inaugurou a primeira filial, no Village Mall, toda dedicada a nova criação do Seu Manuel, os parafusos de madeira. Para quem estranhava esse novo material, ele explicava: os parafusos são frágeis e de pouca utilidade mas são talhados em madeira certificada de Roraima por indios da tribo Ye’Kuana, embalados um a um por mulheres ribeirinhas empoderadas
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Veja o que já enviamosPrimeiro mudou o nome da loja. O “Vil Metal” passou a se chamar “The Green Screw”. Só de incluir verde no nome, ainda mais em inglês, o movimento aumentou em vinte por cento. As pessoas fazem qualquer coisa pela natureza, constatou Seu Manuel, que dobrou o preço dos seus parafusos.
Depois de consultar o Twitter e seus trending topics, ele também mudou o letreiro. Ficou “THE GREEN SCREW- PARAFUSOS ECOLÓGICOS”. Não se pode dizer que Seu Manuel estivesse mentindo, afinal o parafuso é de aço, o aço pode ser reciclado então não deixa de ser ecológico. Com a menção à ecologia o movimento aumentou mais trinta por cento. Seu Manuel descobriu que as pessoas ficam muito mais satisfeitas comprando o parafuso ecológico do que o normal, mesmo que eles sejam iguais. Vamos salvar o mundo, Seu Manuel, exultavam os novos clientes cheios de parafusos nas mãos, agora custando três vezes mais. A loja se mudou para Ipanema.
Seu Manuel começou a tomar gosto pela coisa.
Ele trocou as sacolinhas de papel onde embalava os parafusos por outras de papel reciclado e anunciou nas redes socias que a “The Green Screw” era cem por cento verde até nas embalagens. As vendas aumentaram mais cinquenta por cento e o preço do parafuso também. A sacolinha anterior também era reciclável, como quase todo papel, mas era cinza e lisa e não parda e tosca como essa e se o papel não é pardo e tosco ninguém leva fé na origem, confessou o maroto Seu Manuel, já procurando um novo espaço no Leblon.
Por ordem do Seu Manuel, Raimundo trocou o nome para Rai’mun-wá e seu novo uniforme passou a ser chinelo de dedo com short adidas sem camisa, tudo para invocar uma suposta anscestralidade de uma tribo perdida no Pará, o que fez com que a “The Green Screw” fosse premiada, com grande estardalhaço, pela inclusão dos povos indígenas. Seu Manuel começou a aparecer nos programas de economia da Globonews, nos de ecologia do Canal Futura e nas matérias do Projeto #Colabora.
As ideias não param de surgir para Seu Manuel.
Sua tia-avó, Dona Maria, que morava em Manaus e era sustentada pelos familiares, serviu para a nova ação de marketing da loja: “The Green Screw”, apoiando a sustentabilidade na Amazônia. Seu Manuel não mentia. Logo a ação virou anúncio, que virou meme, que viralizou. O sucesso era cada vez maior.
Finalmente a “The Green Screw” inaugurou a primeira filial, no Village Mall, toda dedicada a nova criação do Seu Manuel, os parafusos de madeira. Para quem estranhava esse novo material, ele explicava: os parafusos são frágeis e de pouca utilidade mas são talhados em madeira certificada de Roraima por indios da tribo Ye’Kuana, embalados um a um por mulheres ribeirinhas empoderadas, transportados de Roraima ao Rio em barcos a vela de algodão orgânico e finalmente trazidos do porto para a loja no lombo de mulas órfãs, por isso custa mil reais cada um. Ao colocar um parafuso desses na sua parede você está contribuindo para a economia local e o meio ambiente global. É a sua chance de contribuir para um mundo melhor.
Seu Manuel sabe das coisas.
Vendo tanto progresso, Raimundo, ou melhor, Rai’mun-wá, pediu outra vez um aumento. Que mais uma vez lhe foi negado. Dinheiro é da época do “Vil Metal”, explicou seu Manuel, apoiado no novo balcão de mármore carrara, você agora é acionista, recebe bônus, participação nos lucros.
Rai’mun-wá recebeu o seu primeiro lote de ações: uma sacola de papel pardo e tosco com um parafuso de madeira dentro. Ao tentar trocá-lo por um Big Mac na praça de alimentação foi expulso do shopping pelos seguranças, que não acreditam que aquele homem de short adidas sem camisa é de alguma tribo que não a dos miseráveis.
Rai’mun-wá foi resgatado pelo generoso patrão, que anunciou a sua nova função: agora ele voltaria a ser Raimundo, ou melhor a Raimundo. Os índios já não estão dando muito prestígio, explicou o neo conectado Seu Manuel, precisamos é de funcionários trans para bombar nas redes.
É preciso se reinventar, pensou a Raimundo, enquanto ajeitava o vestido de cânhamo costurado por homens de gênero fluido e mulheres não–binárias.
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Leo Aversa fotografa profissionalmente desde 1988, tendo ganho alguns prêmios e perdido vários outros. É formado em jornalismo pela ECO/UFRJ mas não faz ideia de onde guardou o diploma. Sua especialidade em fotografia é o retrato, onde pode exercer seu particular talento como domador de leões e encantador de serpentes, mas também gosta de fotografar viagens, especialmente lugares exóticos e perigosos como Somália, Coreia do Norte e Beto Carrero World. É tricolor, hipocondríaco e pai do Martín.