‘O último azul’ e a vida plena das mulheres após os 60

Ambientado em futuro distópico no qual os velhos são retirados do convívio social, filme de Gabriel Mascaro reflete Brasil que precisa mudar

Por Adriana Amâncio | ODS 3
Publicada em 27 de novembro de 2025 - 08:14  -  Atualizada em 27 de novembro de 2025 - 11:33
Tempo de leitura: 12 min

Jo Viajando, no Rio Ganges na Índia: projeto de revolucionário de vida. Reprodução Facebook

O Brasil velho é feminino. Segundo o IBGE, as mulheres são maioria em todas as faixas de idade a partir dos 60 e até os 100 anos. Entre os 60 e 64 anos, a população feminina possui 3.496 habitantes a mais do que a masculina. É por isso que o longa “O último azul”, de Gabriel Mascaro, vencedor do Urso de Ouro de Berlim, gera tanta identificação. Para quem ainda não viu, na trama os velhos são encaminhados à uma colônia para não atrapalhar os filhos, jovens e ainda produtivos. 

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A personagem principal, Tereza, de 77 anos, interpretada por Denise Weinberg, foge do agentes do governo e empreende uma saga para viver os sonhos que considera ter direito, mesmo na velhice. Geriatra e ativista dos direitos da pessoa idosa, Carla Giacomin observa que “o fato do filme ganhar o Urso de Ouro mostra o quanto sua história é universal. A diferença é que no Brasil a desigualdade social marca a vida em diversas etapas, inclusive na velhice”.

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Assim como a personagem criada por Mascaro, as mulheres que vivenciam projetos de vida plena na velhice o fazem com experiências pessoais, desbravando preconceitos, tabus e desafios. Como Ana Lúcia de Albuquerque, 81 anos, do Rio de Janeiro. Ela tinha o sonho de ser pianista, mas conta que foi tolhida pelo marido, que acreditava que a carreira atrapalharia os cuidados com a casa e os quatro filhos do casal. Aos 52 anos, Ana Lúcia estufou o peito de coragem e pediu o divórcio. “Estar casada com ele não era o que eu queria para a velhice”, resume. Aos 65 anos, ela conheceu um empresário do ramo de navegação comercial, iniciou uma sociedade e tornou-se a primeira mulher operadora de cabotagem no Brasil. Ela trabalha com transporte e logística de cargas por via marítima. 

Ana Lúcia teve conflitos com o marido na vida pessoal e nos negócios. Resolveu pedir o divórcio e vender sua parte na empresa. “Fiz todo o distrato, mas ele não quitou o pagamento e passou as propriedades dele para o nome de outras pessoas. Então, fiquei com uma mão na frente e a outra atrás”. 

Foi aí que ela pôs em prática o sonho adiado por décadas. Com o incentivo da neta, inscreveu-se em um Concurso de Piano em Viena e ficou entre as 20 melhores do mundo. Depois disso, engatou um concurso atrás do outro e conseguiu reaver as economias. Agora, vai participar de mais um concurso, em Paris. “Você pode ir em busca dos seus sonhos, não importa a idade”, aconselha.

Ana Lúcia e o piano: ‘Você pode ir em busca dos seus sonhos, não importa a idade’ (Foto: acervo pessoal)

A velhice delas

Carla Giacomin frisa que, mesmo na velhice, mulheres e homens são alvos de expectativas diferentes. “Elas são cuidadoras a vida inteira, seguem exercendo maior parte do trabalho de cuidado. A velhice não é uma etapa da vida, mas um valor”, explica. A sobrecarga com os trabalhos de cuidado e a cobrança de um padrão de beleza que recaem sobre as mulheres, mesmo na velhice, revelam como as desigualdades de gênero persistem ao longo de toda a vida.

A assistente social carcerária Joselita Feitosa, 65 anos, natural de Juazeiro do Norte, mãe de três filhos, conta que viveu um dilema até realizar o projeto de vida que escolheu para a velhice. Após décadas atuando com a população carcerária, diz ter compreendido que a liberdade é o maior bem. A consciência resgatou uma memória afetiva da infância. “Sonhava em ser passageira, achava que era uma profissão. O meu maior prazer era ir para a estação ver o trem chegar e partir”, recorda. Tudo isso despertou o desejo de viver como nômade até o último suspiro. Para realizar esse desejo, era preciso vencer as expectativas dos próprios filhos e da sociedade que a imaginavam como uma “avó que deveria cuidar dos netos”. 

Os filhos, que passavam por momento delicado, cobravam sua presença, mas ela decidiu começar as viagens pelo Brasil. Diante do conflito entre iniciar o projeto pessoal e auxiliar os filhos, consultou uma terapeuta, que recomendou que ela tocasse o projeto. “Eu me aposentei no dia 1º de outubro; no dia 15, já tinha passagem só de ida para Belém. Mas tinha medo de me afastar muito e quando viessem a precisar de mim, não poder ajudá-los”, detalha.

No começo das viagens, os filhos ligavam o tempo todo, prossegue Jô. Em seguida, reduziram as ligações e ela passou a se preocupar. Até que uma nova rotina se instalou. “São nove anos aposentada, nove anos de nomadismo. Andei, andei, não voltei mais. Foi aí que descobri que precisava de muito pouco”, atesta.

Joselita passou a ser Jô Viajando. Ela já percorreu 25 estados e mais o Distrito Federal; no Brasil, só falta Roraima. Viajou para 76 países da América, Europa, Ásia e África, a próxima meta é conhecer a Oceania. “Gosto de viajar em janeiro para passar meu aniversário em algum lugar. Sempre que terminam as festas de fim de ano, tenho uma passagem comprada. Este ano, fui do Panamá para Costa Rica, Nicarágua, Honduras, Guatemala, Cuba, República Dominicana e passei o Carnaval na Jamaica”, relata.

Justo na fase da vida em que a cognição costuma falhar, a mente de Jô se expande. Entende que o mundo e as pessoas são muito maiores do que o Ceará. A nova experiência lhe rendeu muitos aprendizados em circunstâncias diversas. Confundida com uma refugiada, foi presa em Mombaça, na África, durante conflito civil. Viveu dias de muita alegria em Bogotá, com uma seguidora que a acolheu em sua casa, a acompanhou em passeios e pagou sua passagem aérea até Medellín. “Foi uma coisa muito linda! Casei com as estradas, casei com o mundo. Quero viver com essa vida por muito tempo ainda”, planeja. 

Segundo Carla Giacomin, “as mulheres vivem de sete a nove anos a mais do que os homens”, fase que pode ser vivida da melhor forma. “Hábitos saudáveis devem ser estimulados ao longo de toda a vida. Não fumar, não beber ou beber pouco, praticar exercício físico e ter amigos. As conexões sociais são super importantes para a velhice”, relaciona. Ela frisa que confiar na genética “só resolve se você criar um ambiente que favoreça o desenvolvimento dessa genética”.

O corpo idoso no cinema

Natural de Recife, Gabriel Mascaro realiza tramas marcadas por críticas sociais ambientadas em um Brasil distópico, mas verossímil. Na sua filmografia estão “Ventos de Agosto”, “Boi Neon” e “Divino Amor”. Para ele, o olhar sobre a velhice, o sonho e a liberdade são elementos que “tornam ‘O último azul’ universal”. O curioso é o fato de a protagonista ser uma mulher velha. “Os gêneros do cinema, tais como fábula, o coming of age (que retrata um jovem saindo da escola rumo à vida adulta) ou a distopia não comportam o corpo idoso. É como se os idosos não tivessem autorização para ser rebelde, para resistir contra o sistema”, questiona.

Em geral, os velhos são retratados no cinema em tramas que focam em um passado que não volta mais, na finitude da morte -, e “O último azul” vai na contramão. “O filme é lírico, põe um corpo idoso em jornada de pulsão de desejo presente. Em países como o Brasil, que é deficitário em políticas da terceira idade, causa identificação, funciona como uma alegoria, provoca um sentimento sincero e real”, sustenta.

Descronologizar 

Neide Brandão, 74 anos, moradora de Guaíba, na Grande Porto Alegre, resume a forma como vivencia as experiências de vida. Aos 50 anos, ela concluiu a graduação em Direito pela Universidade Luterana do Brasil (Ulbra). “Quando passei no exame da OAB, tinha uma fila de clientes esperando”, recorda, orgulhosa de seguir advogando até hoje. 

Sobre frequentar a universidade aos 50, garante que nunca ligou para o preconceito. “O preconceito não é meu, é das pessoas. Não sou árvore, sou água, não tenho raiz, tenho asas”, crava, em tom poético. Orgulha-se de ter ganhado uma causa em defesa de uma criança de 8 anos, vítima de negligência hospitalar e que teve a perna amputada acima do joelho ao adquirir superbactéria em uma clínica particular, onde buscou tratamento para uma escoriação causada por acidente de bicicleta. 

Neide conta que travou uma batalha judicial até provar que a criança adquiriu a bactéria no primeiro hospital onde foi atendida. “A humilhação veio para cima da mãe, dizendo que ela não cuidou. Todas, todas as mulheres são culpadas de alguma desgraça e isso inclui a sua própria filha. Como é fácil ser homem“, critica. O juiz reconheceu a negligência e a família da criança foi indenizada pela clínica. 

Recentemente, ela aderiu ao muay thai, esporte que considera “libertador”, explicando por que ainda busca novas experiências aos 74 anos. “Eu acredito que nasci para fazer tudo tarde. É tarde para a régua dos outros, para mim, é a hora certa”, arremata.

Rodrigo Santoro e Denise Weinberg em ‘O último azul’: filme sobre a velhice num futuro distópico premiado em Berlim (Foto: divulgação)

Neide, aos 14 anos, passava roupa das vizinhas em troca de dinheiro para comprar discos de Noel Rosa, Pixinguinha, Chuck Barry, Louis Armstrong. Quando criança, vivia no Morro do Querosene, ao lado do Instituto Butantã, para onde ia nadar na piscina olímpica. “Fui criada assim, na rua, com escola pública, e com todas as atividades possíveis”.

Formou-se em Letras, na Universidade de São Paulo (USP), mudou-se para o Rio Grande do Sul e trabalhou traduzindo manuais de multinacionais. “Eu me dedicava aos filhos e à casa, enquanto traduzia os materiais. Ganhei grana pesada na época”, recorda. Mais tarde, criou, do zero, uma empresa de administração de condomínio. “Comprei livros de administração, gestão, e com um ano e meio a empresa começou a andar. Batia na porta do cliente”, orgulha-se.

A experiência de Neide caiu como uma luva no conceito defendido pela geriatra Carla Giacomin de que é “preciso descronologizar a vida”. Na prática, significa eliminar a ideia de idade certa para namorar, estudar, casar e realizar os desejos na hora que desejar. “A gente está acostumado a pensar nas pessoas que envelhecem escalando montanhas como vencedoras e naquelas que precisam de cuidados como perdedoras. Ambas são vencedoras, porque envelheceram apesar da falta de acesso a direitos”, observa. “O que a gente precisa mais é recuperar a nossa coesão social, que trabalhe intergeracionalidade, quer dizer nós somos todos participantes de uma sociedade múltipla, diversa, onde cabe todo mundo”, defende.

Ela tem um recado especial para quem ainda vai assistir ao longa de Mascaro. “Vamos pensar o quanto demandamos pouco dos nossos direitos e o quanto temos sido muito mais consumidores do que cidadãos. Gostaria de ver que a população na rua para defender direitos fundamentais, direito à saúde, direito ao trabalho, direito à educação, direito à previdência”, projeta.

Adriana Amâncio

Jornalista, nordestina do Recife. Tem experiência na cobertura de pautas investigativas, nas áreas de Direitos Humanos, segurança alimentar, meio ambiente e gênero. Foi assessora de comunicação de parlamentares na Câmara Municipal do Recife e na Assembleia Legislativa de Pernambuco. Foi assessora da Articulação Semiárido Brasileiro (ASA) e, como freelancer, contribuiu com veículos como O Joio e O Trigo, Gênero e Número, Marco Zero Conteúdo e The Brazilian Report.

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