Deputados conservadores e organizações religiosas se unem contra o aborto legal

Parlamentares conservadores e organizações religiosas unidos contra o aborto legal (Arte: AzMina)

Parlamentares usam emendas impositivas e títulos de utilidade pública para fortalecer a fatia da sociedade civil organizada antiaborto

Por Revista AzMina | ODS 3ODS 5 • Publicada em 31 de julho de 2024 - 12:01 • Atualizada em 1 de agosto de 2024 - 12:22

Parlamentares conservadores e organizações religiosas unidos contra o aborto legal (Arte: AzMina)

(Jane Fernandes*) – Os posts nas redes sociais não deixam dúvidas: a Casa Mãe Oásis da Imaculada, em Belo Horizonte, é contra o direito ao aborto. Um dos vídeos no Instagram diz: “Aborto – Cena do demônio sobre o mal do mundo moderno”. Em seu site, a Casa diz que tem como missão “atender e acompanhar as gestantes e puérperas em situação de vulnerabilidade ou risco social”. Mas, no dia a dia, no atendimento por telefone, não fica claro às mulheres que buscam ajuda se a Casa está disposta ou não a auxiliá-las em seu direito ao aborto nos casos garantidos por lei.

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Quando abordada por uma mulher que procura auxílio para uma amiga que engravidou após estupro e deseja abortar, a atendente da organização insistiu em conseguir o contato da vítima, dando a entender que poderia ajudar. Ao ser questionada: “Mas se ela (a gestante) decidir tirar (fazer o aborto), vocês ajudam?”. A atendente respondeu: “Nós ajudamos, sim, mas a gente tem que conversar com ela”.

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A estratégia se repete em outras organizações. Em meio a dezenas de postagens sobre o acolhimento a mulheres que estão vivendo uma gravidez indesejada ou gestantes em situação de vulnerabilidade, algumas deixam explícita sua real vocação: a luta antiaborto.

Várias organizações usam táticas questionáveis para dificultar o acesso de mulheres a seus direitos sexuais e reprodutivos, muitas vezes levando-as a crer que receberão apoio para o aborto legal enquanto, na verdade, tentam dissuadi-la da decisão. E algumas entidades ainda recebem suporte e visibilidade de parlamentares nas esferas federal, estadual e municipal. O apoio ocorre, com frequência, por meio da destinação de emendas ou na facilitação de processos para que elas recebam dinheiro público.

Nikolas Ferreira discursa no plenário da Câmara dos Deputados: emendas para financiar organizações contra o aborto legal (Mário Agra/Câmara dos Deputados - 10/07/2024)
Nikolas Ferreira discursa no plenário da Câmara dos Deputados: emendas para financiar organizações contra o aborto legal (Mário Agra/Câmara dos Deputados – 10/07/2024)

Apoio financeiro para as organizações

O atual deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG) destinou R$ 150 mil à Casa Mãe Oásis da Imaculada (Razão social: Associação Pró Vida Oásis da Imaculada – Centro de Defesa do Nascituro), por meio de emenda impositiva, em 2022, no último ano de mandato dele como vereador em Belo Horizonte. A associação está registrada como Organização da Sociedade Civil sem Fins Lucrativos (OSC).

Emenda impositiva é aquela “que deve ter execução orçamentária (empenho e liquidação) e financeira (pagamento) obrigatórias, exceto nos casos de impedimento de ordem técnica”, segundo glossário do Congresso Nacional. As emendas individuais dos parlamentares são impositivas desde 2015.

O dinheiro foi usado no Projeto “Mamãe Oásis”, de acordo com documentos da Prefeitura de Belo Horizonte. A dispensa de chamamento público informa que o projeto “visa realizar ações coletivas e socioassistenciais, para mulheres em situação de vulnerabilidade e risco social, em decorrência de violência doméstica”. Já no site da organização, o programa é descrito como “educação e promoção da saúde da mulher, a partir da ótica da defesa da vida e da família” – discurso recorrente nas estratégias do lobby antiaborto.

Em 2023, já como deputado no Congresso Nacional, Nikolas direcionou R$76.266 ao Projeto “Casa Mãe” da mesma associação, “para aprimorar a estrutura e a provisão do Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos, garantindo condições de acolhida, funcionamento, atendimento e realização de atividades socioassistenciais coletivas (palestras e oficinas) com mulheres gestantes ou não, puérperas e crianças de 0 a 6 anos”. Em ambos os casos (em 2022 e 2023), o termo de fomento foi celebrado com a Secretaria Municipal de Assistência Social, Segurança Alimentar e Cidadania (SMASAC) de BH.

Apesar do apoio através das emendas, e de estar marcado em diversas postagens da ‘Oásis da Imaculada’ nas redes sociais, Nikolas Ferreira não seguia as páginas da entidade, nem se manifestava nas publicações, no período analisado por AzMina.

O deputado também não interage com as postagens da Associação Servindo e Protegendo (Assep), para a qual ele destinou emenda no valor de R$ 70 mil em 2023. No site, a entidade informa que sua missão “é promover a cidadania com base em valores cristãos”. Um dos projetos de destaque é o Apoio a Mulher – Gravidez Integral (AMGI), para acolher “mulheres vítimas de (…) rejeições, medo, angústia, abusos, gravidez não planejada, entre outras e estão vulneráveis em seu período de gestação”.

Conforme dados da Prefeitura de Belo Horizonte, no ano passado, a Assep recebeu o montante para execução de atividades socioassistenciais no município. O recurso foi repassado em termo de parceria com a SMASAC.

A deputada Chris Tonietto em evento na Câmara: militância contra o aborto e contra o feminismo (Foto: Bruno Spada/Câmara dos Deputados - 18/04/2024)
A deputada Chris Tonietto em evento na Câmara: militância contra o aborto e contra o feminismo (Foto: Bruno Spada/Câmara dos Deputados – 18/04/2024)

Antifeminismo como causa

A deputada federal Chris Tonietto (PL-RJ) é, provavelmente, a campeã nas relações com os grupos autointitulados pró-vida. Ela centra sua plataforma em discursos antifeministas e ataques à autonomia reprodutiva das mulheres. Em 2020, durante seu primeiro mandato, Chris endereçou emendas para a Associação Virgem de Guadalupe e o Centro de Reestruturação para a Vida (Cervi), sediadas em São José dos Campos e São Paulo, respectivamente.

Cada entidade recebeu R$ 100 mil através do Ministério das Mulheres. Conforme documentos do Portal da Transparência, a Virgem de Guadalupe recebeu por um convênio para o projeto Futuras Mães, de assistência a gestantes em vulnerabilidade social. O pagamento do Cervi é atribuído à capacitação de mulheres com oficinas diversas, incluindo terapia comunitária.

A parlamentar segue apenas 212 perfis no Instagram, incluindo as páginas da Virgem de Guadalupe e do Cervi. Ela também marca presença nas redes sociais das entidades, elogiando a presidente da associação na Câmara dos Deputados, e num encontro onde integrantes do Cervi agradecem a destinação da emenda.

Chris Tonietto gravou um chamado à elaboração de moções de repúdio à ação para descriminalizar o aborto até a 12ª semana de gestação (ADPF 442) no Supremo Tribunal Federal (STF), e foi repostada pela Associação Virgem de Guadalupe.

Uma atendente da Virgem de Guadalupe, ao ser questionada por telefone sobre a oferta de ajuda se uma mulher quisesse interromper a gestação, respondeu: “A senhora conversa com ela (a coordenadora), entendeu? Eu não posso dar muito detalhe”.

Outra parlamentar próxima da associação é a deputada estadual Letícia Aguiar (PP), mostrada nas redes sociais em eventos realizados na entidade. Em 2019 e 2020, durante seu primeiro mandato na Assembleia Legislativa de São Paulo, ela propôs emendas ao Projeto de Lei do Orçamento visando remanejar recursos para ações desenvolvidas pela Virgem de Guadalupe.

A deputada estadual Letícia Aguiar discursa na Assembleia Legislativa de São Paulo: declaração de utilidade pública para organizações antiaborto (Foto: Foto: José Antonio Teixeira / Alesp)
A deputada estadual Letícia Aguiar discursa na Assembleia Legislativa de São Paulo: declaração de utilidade pública para organizações antiaborto (Foto: Foto: José Antonio Teixeira / Alesp)

Utilidade pública

A deputada Letícia apresentou dois Projetos de Lei para conferir título de utilidade pública à Virgem de Guadalupe, em 2020 e 2023. A declaração foi concedida no ano passado por meio da proposição apresentada em 2022 pelo então deputado Sérgio Victor (Novo).

Em 2019, a prefeitura de São José dos Campos deu à Virgem de Guadalupe, que tem sede na cidade, a permissão de uso de uma área de domínio municipal com área de 3,2 mil m². No final de 2021, o município autorizou a doação do terreno para a associação.

Quando não apoiadas com emendas parlamentares, ou seja, financeiramente, essas organizações recebem suporte de parlamentares interessados em transformá-las em organizações de “utilidade pública”. Cumprir critérios para assinar contratos públicos é uma das vantagens desse ‘título’, comenta Aline Viotto, advogada especialista em terceiro setor. Há ainda a possibilidade dessas entidades obterem benefícios fiscais, mas isso depende da legislação local.

O Lar Preservação da Vida, em Maringá (PR), recebeu declarações de utilidade pública nas esferas municipal, estadual e federal – título que pode favorecer o repasse de dinheiro público sem licitação. A Lei Municipal de Maringá 8548/2009 autoriza o poder executivo a firmar “convênios, acordos, ajustes e termos de cooperação” com uma série de entidades, incluindo o Lar. A declaração de utilidade pública é uma das exigências para possibilitar essas parcerias.

Atualmente em seu segundo mandato no Rio de Janeiro, o deputado estadual Márcio Gualberto (PL) apresentou proposta para conferir o título à Casa da Gestante Pró-Vida São Frei Galvão. A repostagem de publicações do deputado sobre projetos contrários à vacinação contra Covid-19 e o uso do gênero neutro evidenciam o compartilhamento da pauta conservadora. Já a temática do aborto aparece na republicação que ele faz de conteúdos da deputada federal Chris Tonietto.

Na esfera federal, as declarações de utilidade pública foram revogadas pelo Decreto 8726/2016, que regulamentou novas regras para parcerias com organizações da sociedade civil. As variações na legislação dificultam medir os impactos efetivos dessas declarações.

Falso acolhimento

O Lar Preservação da Vida de Maringá (PR) publicou um vídeo do Movimento Brasil Sem Aborto, contrário à interrupção voluntária da gestação em qualquer situação, incluindo os casos autorizados na legislação brasileira.

O vídeo fixado no Instagram da entidade traz imagens de choro, desespero e uma narrativa apelativa. “Se você não teve o amparo que gostaria, agora terá o amparo que você merece”. A promessa de apoio irrestrito e sem julgamentos não se confirma na conversa por telefone com a reportagem.

Quem entra em contato pedindo ajuda para um aborto legal após uma gestação fruto de violência sexual ouve o espanto da atendente: “você quer tirar o bebê?”. A funcionária diz ainda que “o aborto deixa marcas irreversíveis na mulher”.

Aborto é legal no Brasil em três circunstâncias (Arte: AzMina)
Aborto é legal no Brasil em três circunstâncias (Arte: AzMina)

Terror psicológico

Gerar medo de sequelas físicas e psicológicas é uma estratégia comum de grupos antidireitos reprodutivos. A desinformação sobre Síndrome Pós-aborto – suposto conjunto de prejuízos psicológicos pós-abortamento não reconhecido pela comunidade médica – aparece com frequência, mas as evidências científicas mostram o contrário.

Laura Molinari, cofundadora da campanha Nem Presa Nem Morta, ressalta o sofrimento mental identificado nas pessoas impedidas de acessar o aborto. Ela cita o maior estudo já realizado sobre o estado psicológico e a saúde mental de quem interrompe a gravidez – The Turnaway Study. O estudo mostra ainda maior vulnerabilidade econômica das mulheres sem o direito ao procedimento.

“Elas querem interromper a gestação e chegam nesses lugares pedindo esse tipo de apoio. Lá, são convencidas à base de muita desinformação e terrorismo psicológico a não abortar. Isso é muito violento”, afirma Laura. Muitas vezes, a argumentação contrária ao aborto inclui associações infundadas entre o procedimento e infertilidade, e até câncer de mama e do colo do útero.

O uso de desinformação para demover uma pessoa que busca o aborto legal viola direitos fundamentais, a exemplo dos direitos à informação e à saúde, como explica a advogada Letícia Ueda, do Coletivo Feminista Saúde e Sexualidade. “Poderemos até pensar em direito à dignidade, à não exposição dessa pessoa à tortura”.

Em 2023, a Defensoria Pública de São Paulo moveu uma ação contra a ONG Filhos da Luz por assediar uma mulher com autorização judicial para abortar. A vítima não procurou a entidade, mas seus dados pessoais chegaram à equipe, que ligou diversas vezes pressionando para que ela desistisse do procedimento. Os telefonemas começaram no dia seguinte à decisão da Justiça.

Projeção e visibilidade contra direitos

Parlamentares antiaborto ainda ‘presenteiam’ essas organizações com projeção e visibilidade. Em junho de 2024, uma homenagem ao Movimento Pró Vida do Brasil aconteceu na Câmara dos Deputados. A iniciativa foi da deputada federal Chris Tonietto (PL-RJ). Na mesa estava o vice-presidente da Associação Pró Vida de Anápolis (GO), o padre Lodi. Em 2020, ele foi condenado a indenizar uma mulher em R$ 398 mil por impedi-la de acessar o aborto legal.

A decisão contra o religioso foi tomada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) e confirmada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), em resposta à ação de Tatielle Gomes e José Ricardo Dias. Exames mostraram que uma anomalia impediria a vida do feto fora do útero, e o casal buscou autorização judicial para realizar o aborto. Mas o procedimento foi interrompido por um habeas corpus obtido pelo padre Lodi.

Durante a pandemia da Covid-19, o religioso fez lives no canal da entidade no YouTube. Em uma delas, padre Lodi, que é bacharel em Direito, nega a existência do aborto legal no Brasil, argumentando que a legislação apenas preveria escusas absolutórias (razões para não punição).

Com esse discurso, as entidades e movimentos antidireitos reprodutivos reforçam o estigma em torno do aborto legal. “O que a gente tem no Código Penal é uma possibilidade autorizativa de realização”, explica a advogada Letícia Ueda. Legalmente, a interrupção da gestação não pode ser criminalizada nas hipóteses previstas no artigo 128 do Código, nem naquela caracterizada pela ADPF 54.

E a vida da criança estuprada?

O pânico moral e religioso foi usado pela associação de Anápolis (GO) na conversa com a nossa reportagem. “O que o inimigo (demônio) põe na nossa cabeça é que não tem jeito: ‘a única saída que eu encontro é matar o meu filho, é o aborto’”, disse, explicando que “compreendia” o desespero da mulher estuprada.

A atendente contou ter recebido uma mulher que não percebeu todos os símbolos religiosos presentes na sede da associação: “Entrou uma senhora aqui, tão cega, tão cega para matar o filho dela, que ela não viu nada disso”.

Mesmo em caso de crianças violentadas sexualmente, as entidades “pró-vida” defendem que as gestações devem continuar, colocando em xeque o próprio discurso, pois os riscos à saúde e à vida da menina são ignorados.

As chances de rompimento precoce da bolsa e pré-eclâmpsia são aumentadas em crianças e adolescentes. “Há maior risco de hemorragia pós-parto porque o útero ainda não está com a formação adequada para reprodução”, ressalta a ginecologista Halana Faria, mestre em Ciências pela Universidade de São Paulo. Aí, sim, existem riscos de infertilidade permanente.

Além dos impactos físicos, a saúde mental tende a ser abalada, com elevação das taxas de ansiedade e depressão. Halana enfatiza o agravamento do problema quando a gravidez é resultado de estupro, com aumento da ocorrência de transtorno do estresse pós-traumático (TEPT).

A dimensão do problema deixado de lado pelas entidades antidireitos reprodutivos é evidenciada pelos dados do último Anuário Brasileiro de Segurança Pública: mais de 51 mil crianças de 0 a 13 anos foram estupradas em 2023.

Conforme o Código Penal, relação sexual com menor de 14 anos é estupro de vulnerável. Em caso de gravidez, a lei garante o direito ao aborto legal, mas o acesso nos serviços de saúde é restrito e difícil, incluindo aqui as tentativas de obstrução por grupos autointitulados “pró-vida”. Entre 2015 e 2023, o DataSUS, do Governo Federal, registrou em média 1.900 procedimentos de aborto legal por ano, enquanto cerca de 19 mil meninas de até 14 anos tiveram filhos.

*Jane Fernandes, editora assistente da Revista AZMina, é jornalista formada pela Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia (Facom-UFBA) e pós-graduada em Marketing pela Unifacs. Na mídia impressa, atuou como repórter, chefe de reportagem e editora, dividindo sua trajetória entre os jornais A Tarde e Correio* 

**Esta reportagem foi realizada com apoio do International Women’s Media Foundation (IWMF) e do Women’s Equality Center (WEC) através do programa Saúde reprodutiva, direitos e justiça nas Américas.

***Os Direitos Sexuais e Reprodutivos na Revista AzMina são uma pauta transversal. Essa matéria faz parte de uma série de reportagens especiais sobre o Lobby Antiaborto no Brasil.

**** A jornalista d’AzMina entrou em contato com as entidades mencionadas, por telefone, pedindo auxílio para uma amiga grávida após estupro ou se apresentando como uma gestante nesta situação. O desejo de realizar um aborto, que se enquadrava nos critérios para aborto legal, foi explicitado em todas as conversas. Os diálogos estão gravados.

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