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Empregadas domésticas e lições que ninguém ensina a esquecer

Engana-se quem achar que só os de direita ou conservadores sejam capazes de maltratar funcionários

ODS 10 • Publicada em 7 de junho de 2024 - 09:48 • Atualizada em 10 de junho de 2024 - 09:15

“Ou ele ou eu”, ouviu minha mãe de sua patroa, durante a guerra entre civis e armados em 2006, quando pediu liberação para retornar ao lar e ficar comigo durante um período de tensão na Rocinha. Não teve saída: minha mãe me escolheu.

Eu tinha sete anos, mas a partir daquela situação, começava a entender, de maneira mais rápida e objetiva, como funcionava a dinâmica entre quem minha mãe chamava de “dona” ou “doutor”. Achava até estranho, já que ela dizia que, mesmo não fazendo medicina, era importante fazer esse tratamento a quem lhe pagava o salário. Era “respeito”.

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Das lembranças mais diretas, pensar que, enquanto desejava minha mãe – seja sob uma sinfonia de tiros na minha cabeça ou mesmo pela vontade de ter um carinho materno -, das mãos daquela mulher saíam lautos jantares, servidos em casas que estavam nos condomínios mais caros da cidade e, talvez, do país.

Momentos, que mesmo não tendo vivido, jamais esqueci. Como quando minha mãe deixou passar o ponto do filé. Ela chegou com vontade de chorar, mas segurou até como – e onde – pôde. “Ficou um pouco tostado, ele disse que eu tinha que comprar outro”. Ela trocou de roupa, foi até o mercado, pegou uma nova peça de carne, e fez. O jantar foi salvo a partir de seu dinheiro, por obrigação.

Essas são só algumas das coisas que ouvi ao longo da vida, sendo eu filho de uma cozinheira doméstica. Fragmentos de uma profissão que segue sofrendo em 2024, pouco mais de uma década da promulgação da PEC das Domésticas, criada para regularizar o ofício a todos os empregados “do lar”. E que, ainda assim, tanto tempo depois (em termos), é desrespeitada a torto e a direito.

Na TV, inúmeras novelas, tendo o Leblon como cenário, exprimiram à sociedade o tratamento dado para quem era “da família”, mas que a qualquer “erro”, passava a não ser. Mulheres, na maioria, negras, como aponta o Instituto Brasileiro de Geografia, o IBGE. Ao todo, 65%.

Nos últimos anos, notícias relacionando processos judiciais de empregados contra patrões famosos vieram à tona, revelando um pouco das relações ao público. Na real, acusações de assédio moral, o que em outras linhas quer dizer outra coisa: que a dinâmica Casa Branca x Escravizados jamais deixou de existir. De que na receita, poder, submissão, doação e até carinho (acredite) estão envolvidos como ingredientes que tornam os casos complexos e nada fáceis.

Ao fim das contas, até mesmo quem se diz menos preconceituoso ou mais progressista, tende a ser o mais violento dentro dessas ações. Engana-se quem achar que só os de direita ou conservadores sejam capazes de maltratar empregados, não pagar seus benefícios e demiti-los.

Enquanto a comida não estiver pronta e o café da manhã não for posto à mesa, todo mundo solta a mão de todo mundo.

“Acorda, menina”.

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