A recomendação do padre guatemalteco Domingos, na cidade de Trinidad de Arre, não se refere unicamente às setas amarelas pintadas em pedras, árvores e chão que guiam os 45 mil peregrinos que farão o trajeto este mês. Não é preciso ter mapas nem guias para trilhar a Espanha inteira, de Navarra à Galícia – basta ter os olhos bem abertos para as marcações.
– Falo de outros sinais. Estarás sozinho a maior parte do tempo. Converse consigo, dialogue com Deus. Terás todo tempo do mundo para essa missão. Sairás dela melhor do que entrou – ensina Domingos, sem batina na manhã calorenta, mas com a camisa da seleção alemã.
[g1_quote author_name=”Sabrina” author_description=”Peregrina italiana, de Veneza” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Tenho meu ritmo, minha amiga o dela. Saímos juntas do albergue, andamos separadas e nos encontramos numa cidade. Simples assim, como deveria ser a vida.
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Veja o que já enviamosDe fato, o Caminho mexe com o corpo – e como! – mas principalmente com a alma. A pergunta mais comum, na convivência dos albergues, não importa a língua, é: por que você está aqui?
– Trinta dias comigo, sozinha, sem estresse, sem correria. O Caminho é um prêmio, uma chance rara de olhar para si de verdade e com profundidade – filosofa Amy, de apenas 21 anos, de Nova York, nos Estados Unidos.
Há 20 anos à beira do Caminho, o espanhol Marcelino usa trajes medievais para oferecer bananas e laranjas aos peregrinos que deixam Logroño. Assim como o jovem Nicollás, que distribui limonadas em Obaños. A cada um que passa e para, palavras de incentivo.
– Retribuo tudo o que o Caminho fez por mim. Sou uma pessoa melhor e só tenho um objetivo na vida: ajudar o próximo. Siga em frente. O Caminho é a nossa vida: nada de ficar olhando para trás.
No verão, o peregrino terá o sol sempre às suas costas. De manhã, a sombra do corpo vai se estender à sua frente por dez, vinte, trinta metros no chão.
– Isso me fascina todos os dias. É como um sinal: aos olhos de Deus, sou grande, sou gigante – diz a brasileira Charlenne, há seis anos vivendo na Irlanda.
Normalmente se caminha sozinho. Mesmo casais ou grupos se dispersam nas trilhas em busca de dar liberdade aos pensamentos.
– Tenho passado a vida a limpo aqui. Estou com 31 anos apenas, mas queria essa rotina do Caminho para refletir, pensar no futuro, avaliar meus erros – resume Cristina, espanhola de Valência. – A cada passo me sinto melhor. O corpo dói, mas o espírito está sempre elevado.
Ao longo do Caminho, milhares de pessoas deixam bilhetes presos sob pedras, com agradecimentos, reflexões, desafios, pedidos. “Pai, o Caminho tem mostrado meus erros. Te amo. Ao chegar de volta em casa, a primeira coisa que farei é lhe pedir perdão”, escreveu Ravena, da Itália. “Agora sei que te amo”, completa.
A leveza do espírito se contrapõe às dores físicas do Caminho. É preciso respeitar os limites, não ter pressa. Não há lugar para competitividade.
– Tenho meu ritmo, minha amiga o dela. Saímos juntas do albergue, andamos separadas e nos encontramos numa cidade. Simples assim, como deveria ser a vida – conta Sabrina, italiana de Veneza.
Já Carla, a amiga, aproveita a caminhada solitária para um recall na vida.
– Penso em quem sou todo o tempo. Sei que posso ser melhor. E o Caminho tem mexido comigo. Quanto mais o corpo cansa, mais o espírito se eleva.
Na Rioja, a região do melhor vinho espanhol, a paisagem ajuda na reflexão: em três dias, só o verde das uvas e o amarelo dos trigos. A mente agradece.
O maior inimigo dos peregrinos é a bolha nos pés, a parte mais sacrificada do corpo. Elas são quase inevitáveis.
– Chego a cuidar dos pés de dez peregrinos por dia – conta a freira Ilma, em Carrión de los Condes. – Mas há como evitá-las.
Mas as bolhas, e as dores do físicas em geral, ficam para sexta-feira. Buen Camino!