O poder do ‘comunitarismo’

Num mundo paralisado por conflitos, impasses e perplexidades, ações locais são as grandes responsáveis pelas mudanças

Por Gilberto Scofield | ArtigoODS 15Vida Sustentável • Publicada em 30 de outubro de 2015 - 18:58 • Atualizada em 2 de setembro de 2017 - 23:55

A ‘Horta da General’ reúne moradores de Laranjeiras em torno de um projeto comum. As regras de convivência estão publicadas nas redes sociais
A 'Horta da General' reúne moradores de Laranjeiras em torno de um projeto comum. As regras de convivência estão publicadas nas redes sociais
A ‘Horta da General’ reúne moradores em torno de um projeto comum

De quinze em quinze dias, a pracinha da Rua General Glicério, em Laranjeiras, ganha um happy hour com direito a comidinhas, pula-pula para crianças, food trucks, bebidas, cachorro-quente podrão, tudo embalado pela banda Dr. Swing, que toca um misto de jazz e músicas com levada de grandes orquestras dos anos 50. Ali, os moradores da região se confraternizam e conversam animadamente sobre a vida e assuntos do bairro, num evento que é promovido pela Mash Up Store que funciona em frente à praça. O evento se junta à roda de chorinho que acontece todo o sábado ao meio-dia quando a feirinha da rua Professor Ortiz Monteiro, ao lado, vai chegando ao fim. E à feira de produtos orgânicos que rola toda a terça-feira de manhã no mesmo lugar.

Cerveja vai, cerveja vem, desses encontros informais derivam conversas sobre os problemas da região – de segurança a trânsito – e fomentam outros moradores a criar iniciativas de ação local para a solução desses problemas, como mobilizar a PM para que reforce o policiamento ou decidir aproveitar melhor espaços urbanos abandonados ou degradados. Um bom exemplo disso é a chamada Horta da General (que na verdade fica na Rua Cristóvão Barcelos, no fim da Glicério). Moradores e gente que participa da feira de produtos orgânicos decidiram se reunir e usar produtivamente o imenso terreno baldio que une a Barcelos à Rua Belisário Távora, já no pé do Maciço do Dona Marta.

No grande temporal de 1967, por conta de lixo acumulado na encosta do morro atravessado pelas duas ruas, uma rocha deslocou-se e a avalanche derrubou dois prédios e uma casa no local, provocando mais de 100 mortes, acredita-se. Como nem todos os corpos foram encontrados, muita gente fala em ouvir vozes e gritos no lugar, dando ao terreno a fama de mal assombrado (obs: eu morei quase um ano na Belisário Távora e descia a escada ao lado do terreno em diferentes horários do dia, inclusive tarde da noite, e nunca ouvi nada que não fosse o canto dos passarinhos ou os barulhos do micos). Como felizmente nem todo mundo acredita em lenda urbana e vozes do além, um grupo de pragmáticos defensores dos alimentos orgânicos decidiu fazer ali uma horta com a participação ativa dos moradores, que todos os sábados de manhã se dedicam a cuidar de hortaliças e legumes, cujas propriedades são devidamente explicadas na página do Facebook, com direito a sugestões. Grafiteiros aproveitaram a mobilização e espalharam arte urbana nas paredes do entorno. Voilá: o terreno assombrado virou horta comunitária e palco para arte urbana.

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Rede social é perfeita para aproximar quem está longe e afastar quem está do lado

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E é exatamente essa pegada comunitária que me fascina no entorno da Glicério. Curiosamente, vivemos tempos globalizados e conectados onde nunca as ações locais e comunitárias foram tão importantes. Tenho um amigo que diz: “Rede social é perfeita para aproximar quem está longe e afastar quem está do lado”. Não vou tão longe e não sou daqueles que criticam o ativismo de internet. Informação é coisa poderosa e transformadora. O mundo digital é para onde caminham as pessoas, as corporações e os governos. Mas é difícil achar comparação com quem efetivamente tira o traseiro da cadeira é vai à luta pelos seus interesses e de seus grupos em busca de melhores condições de vida. E o que ocorre na Glicério é um exemplo típico de mobilização comunitária em prol dos moradores da região.

Se um país inteiro está parado por conta de um impasse político ou uma crise econômica, há quem enxergue ali um apelo para que cada um faça a sua parte para empoderar ao menos o que está à sua volta: sua família, sua rua, seu bairro, sua cidade. É a tal lógica: não há como apontar o dedo para o corrupto da vez se as pequenas corrupções diárias são cultivadas por todos: do carro que fecha o cruzamento ao sujeito que dá dinheiro ao guarda que parou o filho embriagado. Da bicicleta que desrespeita o sinal de pedestres à empresa que reduz a embalagem e mantém o preço. Do dono do cão que não recolhe o cocô de seu bichinho na rua ao vizinho que acham normalíssimo ouvir funk aos berros no domingo de manhã “porque já passou das 8h”. Os exemplos são muitos e todo mundo tem uma história – horrorosa – dessas para contar.

É comum entre os bem nascidos o desprezo pela realidade comunitária, como se apenas o cosmopolitismo tivesse valor. Tem,  claro. Todo cosmopolitismo amplia a visão de mundo de qualquer pessoa e as vantagens da globalização vêm por aí. Mas as ações comunitárias são mais poderosas e muito mais inclusivas. Diz o filósofo polonês Zygmunt Bauman em seu livro “Comunidade – a busca por segurança no mundo atual” citando o antropólogo Geoff Dench: “uma parte integrante da ideia de comunidade é a “obrigação fraterna” “de partilhar as vantagens entre seus membros, independentemente do talento ou importância deles”. Esse traço por si só faz do “comunitarismo”” “uma filosofia dos fracos”. E os “fracos”, diga-se, são aqueles indivíduos de jure que não são capazes de praticar a individualidade de fato, e assim são postos de lado se e quando a ideia de que as pessoas merecem o que conseguem obter por seus próprios meios e músculos (e não merecem nada mais que isso) toma o lugar da obrigação de compartilhar”.

Não se faz, aqui, uma esculhambação do conceito de meritocracia, mas do empoderamento de todos através de ações conjuntas, mais inclusivas. É a tal coisa: se o sujeito acha um saco a reunião de condomínio – e elas invariavelmente o são -, depois não reclama quando o prédio caindo aos pedaços não fizer a tão necessária reforma porque a meia dúzia que foi à reunião achou caro e assim deliberou. Por que nossas câmaras de vereadores são de nível tão indigente? Porque os moradores das cidades não participam do debate público e colocam na mão de quem já está no poder  – geralmente em associação com empresários locais poderosos e com os interesses da mídia tradicional – a tarefa de escolher seus representantes locais. Pois o debate público, não nos equivoquemos, começa no debate comunitário, na tal reunião de condomínio.

Pensar globalmente e agir localmente é um consenso já bastante manjado. Mas é preciso agir. Na Glicério, já se fala na criação de uma associação na região para empoderar os moradores diante de um poder público – Prefeitura e governo do estado do Rio – que não dá conta de suas atribuições. A ideia é ótima e pode gerar as lideranças locais que nos inspiram e que deveriam povoar nossas Câmaras de Vereadores. As grandes mudanças começam assim: localmente.

Gilberto Scofield

É jornalista e, atualmente, trabalha como consultor de comunicação da Secretaria de Comunicação da Presidência da República, em Brasília. Além de ser sócio-fundador da empresa Butique Comunicação e marca. Foi editor do jornal O Globo e repórter especial da sucursal de São Paulo após ter passado cinco anos como correspondente em Pequim, na China, e dois anos como correspondente em Washington, nos EUA. retornando ao Brasil em 2010. É colaborador da Globonews, comentarista da rádio CBN e autor do livro "Um brasileiro na China", publicado em 2006. Autor dos blogs "No Império – impressões de um brasileiro na capital dos EUA" e "No Oriente diário de um brasileiro na China“ (Globo Online). Ao longo de sua carreira, escreveu para o Jornal do Commercio, do Rio, Revista Exame, Jornal do Brasil, O Estado de São Paulo, Revista Época, IG Finance, O Globo e Globo Online.

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3 comentários “O poder do ‘comunitarismo’

  1. Gustavo de Almeida disse:

    Excelente artigo, e maravilhosas as iniciativas nas Laranjeiras. Já conheço algumas histórias, e moro num bairro – Urca – que precisava dar um gás nisso. As reuniões da associação são dentro do forte São João e têm um engajamento razoável, mas que não cresce.
    Sobre como o poder público age, uma reflexão: combatem o cachorro-quente do tijucano, famoso, mas deixam o camelódromo cheio de contrabando e produto pirata. Combatem o Uber mas deixam o táxi do Aeroporto. Será que nossa democracia ainda é muito refém de “agrupamentos eleitorais” que não servem à coletividade?

  2. Icaro dos Santos disse:

    Valeu Gilberto! Estamos aí ralando com a horta pra ficar cada vez mais bacana. É um espaço aberto e livre, onde (apesar da localização privilegiada) há o convivío harmônico entre diversas classes sociais e etárias. A horta é um exemplo de micropolítica, como você falou. Mais importante que a colheita, é a criação de um espaço de convivência.

    Aproveito a feliz descoberta deste artigo para avisar que estamos fazendo uma campanha de financiamento coletivo para equipar melhor a horta com poço artesiano e mobiliário adequado para organização de oficinas gratuitas de permacultura e assuntos afins. Para saber mais visite o endereço https://beta.benfeitoria.com/hortadageneral

    Obrigado!

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