Após um incêndio destruir o Museu Nacional, a instituição científica mais antiga do país, que fica na zona norte do Rio de Janeiro, na noite de domingo, a comunidade científica se pergunta: qual é o próximo patrimônio histórico brasileiro em risco de extinção? Há boas chances de a resposta ser: as pinturas rupestres do Parque Nacional Serra da Capivara, cuja sede fica no município de São Raimundo Nonato, no Piauí.
Assim como o palácio que já foi residência da família real e abrigou a 1ª Assembleia Constituinte do Brasil, a Serra da Capivara sofre com a falta de recursos para manutenção de seus tesouros históricos. Em cerca de 130 mil hectares, o parque possui mais de 1.354 sítios arqueológicos (183 preparados para a visitação) e, em 1991, foi declarado pela Unesco (Organização das Nações Unidas para a educação, a ciência e a cultura) Patrimônio Cultural da Humanidade. O conjunto de chapadas e vales abriga pinturas e gravuras rupestres, além de outros vestígios do cotidiano pré-histórico. Artefatos mostram presença humana no local há 50 mil anos. São os mais antigos registros na América.
[g1_quote author_name=”Niède Guidon ” author_description=”Arqueóloga” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Está impossível administrar. Simplesmente não temos uma verba fixa. Dependemos de ações judiciais para conseguir liberação dos repasses do governo federal, que tem a obrigação de cuidar desse patrimônio nacional. Nossa situação vem piorando ano a ano, e eu não vejo perspectiva de melhora. Estou a ponto de desistir
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Veja o que já enviamosPorém, sem uma verba fixa de conservação, as ricas descobertas correm perigo. Responsável pela manutenção de apenas 13 guaritas que garantem a segurança dos tesouros históricos dia e noite — contra vandalismo, caçadores e até mesmo incêndios —, a Fundação Museu do Homem Americano (FUMDHAM), a partir do mês que vem, poderá manter apenas quatro em funcionamento, caso não receba o repasse prometido pela União, de acordo com a arqueóloga Niède Guidon, presidente da FUMDHAM, fundação responsável por garantir a preservação do patrimônio cultural do parque nacional.
Em julho, mais de 50 funcionários foram demitidos. A previsão é que mais uma parte dos 30 trabalhadores que restam tenha que ser dispensada ainda este mês. “E teremos que vender os carros utilizados pelo parque para pagas as indenizações aos trabalhadores”, conta Niède, que desde a década de 1970 dedica-se a estudar os achados da Serra da Capivara. Aos 85 anos e com a saúde debilitada, a pesquisadora lembra que o parque já chegou a operar com mais de 270 funcionários.
“Está impossível administrar. Simplesmente não temos uma verba fixa. Dependemos de ações judiciais para conseguir liberação dos repasses do governo federal, que tem a obrigação de cuidar desse patrimônio nacional. Nossa situação vem piorando ano a ano, e eu não vejo perspectiva de melhora. Estou a ponto de desistir”, diz a pioneira da arqueologia, que, em dezembro, se afastará do cargo.
Segundo a diretora, falta dinheiro, em especial, para manter os funcionários que preservam as pinturas rupestres. É preciso que os sítios sejam constantemente monitorados para prevenir ações de vândalos, para retiradas de colmeias ou ninhos de animais próximos às pinturas rupestres, galhos que possam causar incêndios ou lixo deixado por turistas. “Se não conseguirmos manter um mínimo de pessoal, nosso destino será o mesmo do Museu Nacional”, alerta Niède.
A tragédia que acometeu o museu de 200 anos não vive distante do parque nacional. Em outubro do ano passado, um incêndio atingiu a Serra Vermelha, ao lado da área histórica do Piauí. A FUMDHAM diz que chegou a emprestar brigadistas e guarda-parques para ajudar no controle das chamas, que foram extintas com o auxílio de uma aeronave do governo do Maranhão, cedida para pulverizar água, e de um helicóptero. “Temos brigadistas de plantão 24 horas, então acredito que, atualmente, estamos protegidos contra incêndios”, acredita Niède.
Serra da Capivara ‘passará a contar com mais investimentos’
O Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), que gere as 335 Unidades de Conservação Federais no Brasil, informou que mantém, no Parque Nacional da Serra da Capivara, 42 funcionários fixos, além de 16 brigadistas contratados anualmente no período da seca (de junho a dezembro).
A conservação do patrimônio histórico, no entanto, compete à FUMDHAM, que sofre, com recursos insuficientes. “O ICMBio se encarrega da parte ambiental, e a FUMDHAM, da manutenção dos sítios arqueológicos. Nossos funcionários, por exemplo, retiram toda a matéria morta em torno dos sítios. Se você deixar um galho seco sequer, a planta pode pegar fogo, porque essa época do ano é muito seca. Em questão de minutos, as pinturas rupestres podem queimar”, explica uma funcionária da fundação.
O ICMBio declara que, entre 2010 e 2017, aplicou R$ 11 milhões no parque nacional, que tem modelo de gestão compartilhada, além de R$ 5,6 milhões repassados à FUMDHAM no mesmo período.
Em 2017, um termo de parceria entre as duas instituições permitiu um repasse de R$ 1.270,000 para a fundação, entre janeiro e fevereiro de 2018, segundo o instituto de conservação ambiental. “Também foram repassados à fundação recursos do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e do governo do Estado do Piauí em 2018 para ações de manejo do parque”, informa o ICMBio em nota.
O órgão de conservação da biodiversidade ainda afirma que o Parque Nacional da Serra da Capivara “passará a contar com mais investimentos públicos, sendo que a parceria com a FUMDHAM, continuará a ser relevante para o engrandecimento da conservação do patrimônio arqueológico inserido no território do parque”.
16 mil visitantes em 2017
O baixo número de turistas também não colabora para a manutenção das atividades. O local recebeu apenas 16 mil visitantes em 2017, de acordo com a diretora. A critério de comparação, o Museu Nacional, no Rio, registrou 192 mil visitantes em 2017 — um número baixo, considerando que, no mesmo período, 289 mil brasileiros passaram pelo Louvre, em Paris, na França, segundo registros do próprio museu.
A pesquisadora acredita que a falta de estrutura na região do sul do Piauí é o que mais dificulta o crescimento da Serra da Capivara como destino turístico. “O Aeroporto da Serra da Capivara, inaugurado em novembro de 2015, é precário, não funciona. O aeroporto mais próximo, portanto, é o de Petrolina (PE), a 300 quilômetros de distância. Além disso, as estradas de acesso são ruins. E não há incentivo para que o turista conheça as riquezas históricas do nordeste”, declara.
Batalha judicial por repasse
Segundo o assessor jurídico da FUMDHAM, Wilson José Ferreira Neto, a fundação aguarda, desde o início do ano, a liberação pela Justiça de uma parte dos recursos destinados à manutenção e ao pagamento dos funcionários — cerca de R$ 1 milhão, previstos para um ano de trabalho.
Sem um repasse regular do governo federal, a fundação afirma que depende de batalhas judiciais constantes para conseguir manter o parque de pé.
Uma última ação, iniciada pela Ordem dos Advogados do Brasil, Secção Piauí, e Ministério Público Federal (MPF), resultou no bloqueio de mais de R$ 3 milhões de contas da União, que seriam destinados ao parque. Do montante, a Justiça Federal determinou a liberação de R$ 782.485, em caráter emergencial. “Essa verba, no entanto, já se esgotou, e o MPF, inclusive, aprovou as contas e solicitou a liberação de mais R$ 1 milhão, para o plano de trabalho do próximo ano. Ainda estamos aguardando o recurso. Enquanto isso, os sítios arqueológicos e seus funcionários agonizam”, conta Ferreira Neto, dizendo que os R$ 782.485 foram investidos no pagamento de pessoal, reestruturação de guaritas, reformas das vias e acesso ao parque e combustível para os carros de patrulha.
“Mesmo quando chegar, essa verba será um paliativo. Nós precisamos é de um investimento constante”, afirma a presidente da FUMDHAM.
Por conta da penúria, a administração chegou a criar uma conta para depósitos. Quem quiser contribuir com doações pode acessar o site oficial do Parque Nacional Serra da Capivara para visualizar os dados bancários ou fazer a transferência via PayPal. “Muitas pessoas doam, mas não é o suficiente. Precisamos que os governos deem valor à cultura e à ciência nacional”, pede Niède.
Museu da Natureza será inaugurado em dezembro
Além de garantir a preservação do patrimônio cultural do parque nacional, a FUMDHAM administra o Museu do Homem Americano e o Centro Cultural Sérgio Motta, no qual estão instalados os laboratórios de pesquisas, os escritórios administrativos, o centro de documentação, a biblioteca, o auditório, o anfiteatro e as reservas técnicas.
Em dezembro, será inaugurado no complexo o Museu da Natureza, destinado a mostrar as riquezas da região, como fósseis de animais marinhos e gigantes, além de contar a história da formação das serras dos arredores. Com obras quase finalizadas, a abertura está marcada para 18 de dezembro.
“Ué, mas se há dinheiro para construir um novo museu, porque os sítios arqueológicos agonizam?”, é a pergunta natural a ser feita. Os recursos para financiamento de pesquisas científicas e para os museus são separados daqueles destinados à manutenção do parque arqueológico. “Uma verba de pesquisa não pode ser desviada para a manutenção de outra área, isso seria contra lei”, explica o advogado Ferreira Neto. No caso do Museu da Natureza, a obra foi financiada pelo Banco Nacional de Desenvolvimento (BNDES).
Parabenizo a excelente reportagem feita pela colega Marina Cohen. Enviei mensagem ao presidente Temer pedido que leia essa reportagem. Já entrevistei Niede Guidon há muitos anos e na época ela já passava por grandes dificuldades com invasores do MST. Nieide é uma heroína lutou e luta ´para a preservação do Parque. Os bons jornalistas precisam divulgar e cobrar das autoridades ou pedir apoio de instituições internacionais para a preservação desse tesouro da humanidade.