Os anos que não acabaram

Exposição em Londres conecta a época da revolta e da utopia à realidade de hoje

Por Claudia Sarmento | ODS 9 • Publicada em 23 de setembro de 2016 - 17:03 • Atualizada em 23 de setembro de 2016 - 21:08

A apresentação de John Sebastian no Festival de Woodstock, em agosto de 1969. Image by © Henry Diltz/Corbis
A apresentação de John Sebastian no Festival de Woodstock, em agosto de 1969. Image by © Henry Diltz/Corbis
A apresentação de John Sebastian no Festival de Woodstock, em agosto de 1969. Image by © Henry Diltz/Corbis

Num curto espaço de tempo, entre 1966 e 1970, o mundo viu o nascimento da minissaia, a chegada do homem à Lua, as barricadas do Maio de 68 em Paris, o mergulho dos Beatles no psicodelismo, a liberdade de Woodstock, a revolta de Stonewall, a explosão do movimento hippie e dos protestos contra a guerra do Vietnã, o pacifismo de John Lennon e Yoko Ono numa cama, a Revolução Cultural na China e o assassinato de Martin Luther King, entre muitos outros episódios históricos que deixaram o planeta tonto. E mudado para sempre. Qual a influência desse frenético período de transformações e, principalmente, de contestação, nos dias de hoje? É essa a pergunta que move uma das mais interessantes exposições do ano em Londres: ‘You Say You Want a Revolution?’ (Você diz que quer uma revolução?), em cartaz até outubro no Victoria & Albert Museum. Cinquenta anos se passaram, mas os efeitos daqueles anos conturbados, de revolta e utopia, continuam sendo sentidos em diferentes áreas, da moda à geopolítica. Feminismo, democracia, ambientalismo, veganismo, multiculturalismo, direitos LGBT, vida alternativa. Todas essas bandeiras foram abraçadas por jovens que queriam mudar o mundo e que lançaram, naqueles 1.826 dias, as sementes de brigas ainda não totalmente vencidas.

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O legado da imprensa underground vive no Wikileaks; agora há uma preocupação internacional com o aquecimento global; direitos da comunidade LGBT estão sendo reconhecidos; yoga e comida orgânica entraram no nosso dia-a-dia e muitos membros daquelas bandas dos anos 60 continuam fazendo shows. Mas o mais importante, a contracultura trouxe uma saudável desconfiança do establishment que persiste até hoje.

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A contracultura do final dos anos 60 já foi exaustivamente dissecada, mas ainda há o que contar, como aposta o museu britânico, que tirou o título da exposição da música “Revolution”, dos Beatles. A vanguarda de Londres tem enorme destaque na mostra e facilita essa viagem no tempo. É preciso lembrar que em 1965 o Reino Unido ainda era um país onde aborto e homossexualidade eram ilegais; só mulheres casadas tinham direito à pílula anticoncepcional; divórcio era tabu; a pena de morte por enforcamento continuava em vigor e discriminação racial era a norma. Nessa atmosfera opressiva, a geração crescida no pós-guerra, os baby-boomers, se uniram sob um estado de anarquia social, musical e fashion para questionar não apenas o que seus pais entendiam como normalidade, mas todo o establishment.

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Capa do disco "Revolution", dos Beatles, 1966. Alan Aldridge © Iconic Images
Capa do disco “Revolution”, dos Beatles, 1966. Alan Aldridge © Iconic Images

Em vez de admirar a alta-costura de Paris, a juventude londrina queria a criatividade das boutiques de Carnaby Street e da King’s Roads, áreas centrais de Londres onde designers como Mary Quant encurtavam as saias e as vendas aconteciam em galerias de arte. O visual que definia Londres era o estilo andrógino de Twiggy, a modelo-símbolo daquela era. Nos clubs, o LSD era livre (pelo menos até 1967), enquanto a cena underground produzia rádios-pirata, revistas inovadoras, quadrinhos subversivos, pôsteres icônicos e, claro, rock. A fotografia e o design gráfico ganharam, finalmente, status de arte.

Em junho de 1967, John, Paul, George e Ringo lançaram o álbum “Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band”, redefinindo os rumos da maior banda de todos os tempos. A apresentação da música “All you need is love”, nos estúdios de Abbey Road, foi assistida na TV por 400 milhões de pessoas. No UFO club, música ao vivo se misturava a show de luzes e o cardápio oferecia algo inédito até então: comida macrobiótica. A banda da casa? Pink Floyd.

A retrospectiva do V&A, que reúne 350 objetos, promove um reencontro com a época através de uma reconstrução da Carnaby Street, um dos epicentros da revolução cultural do período. Figurinos de rua que definiram uma geração, as letras escritas a mão de “Lucy in the sky with diamonds” e “Strawberry fields forever”, as míticas fardas coloridas usadas por Lennon e Harrison na capa de “Sgt. Pepper’s” e cenas do filme “Blow-up”, de Michelangelo Antonioni, ilustram a efervescência do momento, sob uma trilha sonora arrepiante.

Um vestido com as famosas latas de sopa Campbell, de Andy Warhol. Foto de Kerry Taylor/Auctions
Um vestido com as famosas latas de sopa Campbell, de Andy Warhol. Foto de Kerry Taylor/Auctions

Mas Londres não é a única cidade focada. São Francisco, hoje tão cultuada por abrigar o Vale do Silício, também já era revolucionária naqueles tempos de rebeldia. Foi na costa Oeste dos EUA que nasceu a revista alternativa “Whole Earth Catalogue”, uma publicação para comunidades sustentáveis. Estamos falando de 1968. Mas as páginas criadas por um ex-estudante de biologia de Stanford e ex-soldado convertido em hippie, Stewart Brand, já sugeriam maneiras de driblar o consumismo crescente e ensinavam os leitores a “construir suas próprias ferramentas”. Era um catálogo que não vendia nada. Apenas ensinava os leitores a acharem os produtos que precisavam para suas próprias criações e os conectava, publicando sugestões do público, ou seja, estabelecendo redes de interesse comum. Entre os leitores da revista bianual estava um certo jovem chamado Steve Jobs. Muitos anos mais tarde, o fundador da Apple, cujo primeiro computador também pode ser visto na exposição, declarou: “Era como o Google em formato de papel, 35 anos antes do Google surgir: era idealista e transbordava de novas ferramentas e grandes conceitos”. Quando ele e o amigo Steve Wozniak começaram a construir computadores na garagem da casa dos Jobs, aplicaram as ideias do “Whole Earth Catalogue”.

As comunidades hippies da região viviam num universo paralelo, nômade, de liberação sexual e apologia às drogas. Mas o que a mostra destaca é como eles, com seu radicalismo, já se preocupavam com a destruição ambiental e pregavam a filosofia da ‘volta à terra’. No início da década de 70, 750 mil pessoas haviam abandonado os centros urbanos americanos para viver coletivamente no campo, construindo suas próprias casas, rejeitando o militarismo de Washington e tocando em guitarras elétricas artesanais. Havia misticismo e delírio, mas também, entre uma boa parte desses revolucionários, uma convicção de que a tecnologia poderia melhorar o mundo e não apenas ser usada para beneficiar a indústria armamentista. O lema do “faça amor não, faça a guerra” não durou muito, e as comunidades que resistiram acabaram se transformando em seitas religiosas ou em clãs que apenas reproduziam valores autoritários que os hippies um dia tentaram combater.

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É preciso lembrar que em 1965 o Reino Unido ainda era um país onde aborto e homossexualidade eram ilegais; só mulheres casadas tinham direito à pílula anticoncepcional; divórcio era tabu; a pena de morte por enforcamento continuava em vigor e discriminação racial era a norma.

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A exposição não é revisionista e tem a função de estabelecer conexões ideológicas com a realidade que vivemos hoje. Algumas delas são bem claras. O ativismo gay, a emancipação feminina, a luta pelos direitos dos negros nos EUA, a busca por formas de informação alternativas e o movimento ecológico foram algumas das manifestações que ganharam força naqueles cinco anos. “O legado da imprensa underground vive no Wikileaks; agora há uma preocupação internacional com o aquecimento global; direitos da comunidade LGBT estão sendo reconhecidos; yoga e comida orgânica entraram no nosso dia-a-dia e muitos membros daquelas bandas dos anos 60 continuam fazendo shows. Mas o mais importante, a contracultura trouxe uma saudável desconfiança do establishment que persiste até hoje”, resumiu o escritor Barry Miles, um especialista na geração Beat e co-fundador do “The International Times”, o primeiro jornal underground da Europa, cujas capas estão reunidas na mostra.

Mas mesmo quem for à exposição do V&A sem disposição para ligar os pontos entre o passado e lutas que sobrevivem, vale a pena se estirar nos almofadões (mais hippie impossível!) espalhados na sala dedicada aos festivais. As imagens de Woodstock, o mais legendário deles, cobrem um telão gigante, mostrando cenas do encontro que reuniu 400 mil pessoas em agosto de 1969 para ouvir gente como Jimi Hendrix e Janis Joplin, que tiveram suas curtas vidas encerradas por overdose. Enquanto o mundo se afogava na tensão da Guerra Fria, os jovens de Woodstock, cabeludos e metidos em camisetas tie-dye, sonhavam com paz e amor. A viagem utópica só durou quatro dias. Mas meio século depois o idealismo e o otimismo da época ainda são inspiradores.

Em 1967, em frente ao Pentagono, nos EUA, um ativista põe flores no cano das armas. Foto de Bernie Boston/The Washington Post/via Getty Images
Em 1967, em frente ao Pentagono, nos EUA, um ativista põe flores no cano das armas. Foto de Bernie Boston/The Washington Post/via Getty Images

Claudia Sarmento

Jornalista, PhD em Mídia e Comunicação pela Universidade de Westminster e professora visitante do Departamento de Humanidades Digitais do King's College de Londres.

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