O país do boi

Presença do gado no Brasil supera limites da economia, como cultura que vai das roupas a festas populares, disputas e autos dramáticos

Por Luiz Antonio Simas | ArtigoODS 13ODS 15ODS 9 • Publicada em 27 de junho de 2019 - 08:00 • Atualizada em 7 de julho de 2023 - 11:55

O boi Garantido no bumbódromo do Festival de Parintins: adiamento. Foto de Bianca Paiva (Agência Brasil)

A economia colonial brasileira baseou-se no tripé formado pela monocultura, pelo latifúndio e pelo trabalho compulsório dos escravizados. Apesar disso, atividades econômicas secundárias foram se desenvolvendo e acabaram adquirindo importância significativa na colônia. Uma delas é a pecuária.

As primeiras reses foram introduzidas no Brasil para atender as necessidades da empresa açucareira, com o uso de tração animal nos engenhos, para alimentação e transporte de cargas. O aumento do número de bovinos, todavia, acabou gerando problemas – o gado ocupou espaços destinados à produção de açúcar, algodão, tabaco, etc. A Coroa, em virtude disso, proibiu no século XVII a criação de gado em áreas litorâneas. A pecuária voltou-se, então, para o interior, sendo responsável pelo alargamento do território e a extensão da fronteira. Áreas como o sertão nordestino, parte do Norte, o Vale do Rio São Francisco e as campinas do Sul foram ocupadas assim.

De tão importante e extensa (hoje, há mais bois do que humanos), a presença do gado no Brasil ultrapassou os limites da economia. Há toda uma cultura do boi e do couro que se expressa nas vestimentas dos vaqueiros do sertão e dos gaúchos do pampa; a culinária baseada na carne de boi é riquíssima e diversa, indo do charque ao churrasco. Na cultura popular, autos dramáticos e folguedos ligados ao ciclo do boi apresentam-se em praticamente todas as regiões do país, com características comuns e peculiaridades regionais.

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O auto dramático do Bumba-Meu-Boi é diverso, ganhando conteúdo variável conforme a região em que é representado. Guarda, provavelmente, influências do Boi-de-Canastra, uma tradição portuguesa. Não há dúvida, todavia, da forte influência indígena e africana para o folguedo popular adquirir no Brasil os contornos que o caracterizam até hoje.

É isso que se expressa, por exemplo, no Boi Bumbá da Amazônia, representado com enorme impacto no Festival de Parintins, quando os bois Caprichoso e Garantido se enfrentam – em 2019, a festa vai de 28 a 30 de junho. O Boi Janeiro baiano; o Boi-Calemba pernambucano; o Boi-de-Mamão de Santa Catarina; o Boi-de-Jacá do interior paulista; o Boi-de-Reis do Espírito Santo; o Boi Pintadinho do Norte do Rio de Janeiro; o Boi Surubim do Ceará; são outras manifestações marcadas pelo drama do boi encantado.

Na versão mais famosa, a do folguedo maranhense, um escravizado, o Pai Francisco, rouba o boi para saciar o desejo da esposa, Catirina, que estava grávida e desejosa de comer a língua do bicho. O boi adoece e fica à beira da morte. O fazendeiro castiga Pai Francisco e chama pajés e curandeiros indígenas que conseguem, após várias tentativas, curar o boi, que então dança para a alegria de todos. Em outra variante, o boi morre e sua carne é repartida entre a comunidade.

Há também, na vasta tradição da literatura oral do ciclo do gado, as cantorias de vaquejada, louvando as valentias do animal. Era comum que no sertão nordestino os bois fossem criados soltos. As boiadas eram separadas e identificadas pelas marcas feitas a ferro em brasa nos animais. Alguns bois mais ariscos fugiam e eram perseguidos pelos vaqueiros mais destemidos das caatingas, que buscavam trazer de volta o fujão, anunciando o feito ao grito do aboio.

O boi que escapasse mais de uma vez passava a ser visto como um animal lendário, acabava sendo morto e tinha a carne repartida. O Conto do Boi Mandingueiro, folheto clássico da literatura de cordel, fala disso.

Vale ainda ressaltar que o Bumba-Meu-Boi é devedor das influências ibéricas, indígenas e africanas. Cada uma delas aparece com mais ou menos intensidade nos instrumentos, vestimentas, danças e ritmos que caracterizam o chamado “sotaque” do grupo.

Bumba meu boi: patrimônio cultural que tem influência indígena e africana. Foto de Edgar Rocha (Iphan)
Bumba meu boi: patrimônio cultural que tem influência indígena e africana. Foto de Edgar Rocha (Iphan)

Os Bois de Matraca são marcadamente influenciados pelos indígenas, com a presença do maracá, da matraca e do tambor-onça, tipo de cuíca que imita um urro de onça ou boi. O Boi de Zabumba é caracterizado pela força dos instrumentos de percussão, como o tamborinho (tambor pequeno de couro), a zabumba, o bumbo e o tambor de fogo, feito de uma tora de madeira ocada a fogo e coberto por couro de boi. O Boi de Orquestra se caracteriza pela presença de instrumentos de sopro como saxofones, clarinetas, trombones e pistões.

O carnaval do Rio de Janeiro já apresentou diversos enredos ligados ao ciclo do gado: do drama dos bois e homens vitimados pela seca (Tupy de Brás de Pina, 1961), passando pelo boi na literatura de cordel (Em Cima da Hora, 1973), pelo Festival de Parintins (Salgueiro, 1998), pelo Boi Voador de Maurício de Nassau (São Clemente, 2004), e chegando a saga de Mansinho, o boi que pertenceu ao padre Cícero e ganhou fama de fazer milagres no sertão do Crato (Paraíso do Tuiuti, 2016), as avenidas foram tomadas pela força cultural, econômica e social da criação de gado na história brasileira.

Mas há o desencanto. No século XXI, a pecuária está no centro de enorme polêmica vinculada à força que o agronegócio tem mostrado. O desmatamento gerado pelas necessidades da criação, a perda da biodiversidade, a redução dos nutrientes do solo, a compactação estimulada pelo deslocamento de rebanhos, a liberação de gás metano expelido na digestão dos animais como componente acelerador do aquecimento global, o uso de rações hormonais e antibióticos na alimentação do gado, o consumo elevadíssimo de água para a produção de carne bovina e suína, os problemas éticos causados pelo confinamento dos animais para o abate; são apenas algumas questões levantadas por diversos ambientalistas e estudiosos da questão.

O boi fujão, que entrou no mar de Salvador e acabou morrendo: sucesso nas redes sociais
O boi fujão, que entrou no mar de Salvador e acabou morrendo: sucesso nas redes sociais. Foto de Douglas Pedrosa (Divulgação)

Em novembro passado, um caso envolvendo um boi de raça chamou a atenção na mídia e nas redes sociais. No final de 2018, o boi transportado de uma fazenda de Teodoro Sampaio (BA) para ser exibido na 31ª Feira Internacional de Agropecuária de Salvador, fugiu quando estava sendo descarregado. Depois de alguns dias desaparecido, o animal entrou no mar em Stella Maris para fugir da força policial que o caçava, morrendo por afogamento.

Boi encantado dos autos e folguedos populares, boi valente e misterioso dos cordéis, boi fantasma, boi desencantado, confinado, preparado para o abate em condições cruéis, boi voador. O animal em fuga que preferiu as águas do mar imenso ao confinamento em um curral de exposição, enredo digno de folguedos e encantarias, parece confirmar a máxima do poeta Torquato Neto: “Leve um homem e um boi ao matadouro. O que berrar mais na hora do perigo é o homem, nem que seja o boi”.

Quem é o boi e quem é o homem nos nossos dias?

Luiz Antonio Simas

É historiador, professor e escritor. Foi colunista do jornal O Dia e jurado do Estandarte de Ouro, prêmio carnavalesco do jornal O Globo. Tem diversos livros lançados sobre cultura popular, carnaval, samba e Rio de Janeiro. Recebeu, pelo Dicionário da História Social do Samba, escrito com Nei Lopes, o Prêmio Jabuti de Livro do Ano de Não Ficção/2016.

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