Santa Maria (RS) – A casca de arroz e o capim-annoni, espécie exótica de gramínea, são dois elementos que participam da degradação ambiental do bioma Pampa. Ao longo dos últimos anos, diferentes pesquisas e projetos têm sido desenvolvidos para encontrar soluções que evitem o avanço da poluição pela casca de arroz e a perda de espécies nativas do Pampa pela proliferação acelerada de capim-annoni. Esses dois objetivos motivaram a criação do “pó valiente”, produto feito com essas duas matérias primas.
Leia mais: Geodiversidade vira selo sustentável e estimula preservação ambiental no Sul
A substância foi desenvolvida a partir de pesquisa feita por José Euclides Rodrigues Beltran, doutor em Engenharia de Materiais pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e criador da startup Fiber. O “pó valiente” é totalmente vegetal e não utiliza produtos químicos em sua composição, assim a sua utilização ou descarte não causa emissão de resíduos poluentes.
Gostando do conteúdo? Nossas notícias também podem chegar no seu e-mail.
Veja o que já enviamosSegundo Beltran, a descoberta e criação do pó se deu quase por acaso, a partir de diferentes testes que fez com casca de arroz e capim-annoni. “Ele (o pó valiente) faz o polimento em ouro, prata, bronze, cobre, em aço inox. Também pode ser utilizado em vidros e materiais cerâmicos, entre outros”, explica o pesquisador. O produto está atualmente em fase de validação pela comunidade e o registro da patente já foi solicitado ao Instituto Nacional da Propriedade Industrial (Inpi).
O projeto desenvolvido por José foi um dos selecionados no Programa Eleva Start, iniciativa da Pulsar, incubadora ligada ao Parque de Inovação, Ciência e Tecnologia (InovaTec), da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Através do programa, o projeto recebeu apoio do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC) e do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae). Agora, José busca um edital e financiamento para iniciar a produção em nível comercial. A expectativa é de que o produto fique disponível a partir do primeiro semestre de 2025.
Capim-annoni ameaça biodiversidade do Pampa
De nome científico Eragrostis plana Ness, o capim-annoni é uma espécie de planta originária da África do Sul e que foi introduzida no Brasil na década de 1950. O avanço dela no sul do Brasil ilustra o que a pesquisadora Anna Lowenhaupt Tsing define no livro “Viver nas Ruínas”, como a escalabilidade das lógicas ferais no Antropoceno, ou seja, uma consequência da interferência humana negativa nos ecossistemas dos territórios.
O capim-annoni se adaptou muito bem ao clima do Rio Grande do Sul e possui baixo valor nutricional, o que torna essa gramínea pouco atrativa para animais, como o gado. Além disso, uma única planta pode produzir cerca de 80.000 sementes por ano, o que facilita sua reprodução.
Essas características fazem com que o capim-annoni se prolifere no lugar da vegetação nativa do Pampa, que perde espaço e corre risco de desaparecer. Estimativas indicam que cerca de 1 milhão de hectares do bioma já tenham sido comprometidos pelo capim-annoni. Estudos da Embrapa Pecuária Sul, por exemplo, trabalham com alternativas para conter o avanço da espécie no bioma.
“Eu achei por bem utilizar o capim, já que ele é um material fibroso e ele também se presta para essa finalidade abrasiva (de desgaste e polimento)”, conta José Beltran. A utilização da planta não representa uma solução direta para a degradação do Pampa, ainda assim aponta mais uma justificativa para sua retirada dos campos nativos.
Impactos ambientais da casca de arroz
O Rio Grande do Sul é o maior produtor de arroz em casca do Brasil, com cerca de 7,6 milhões de toneladas produzidas em 2022, segundo dados disponíveis no Atlas Socioeconômico do RS. A queima da casca de arroz é feita em temperaturas que variam de 80 a 200°C, podendo chegar até 600°C. Esse processo libera grandes quantidades de monóxido e dióxido de carbono, gases responsáveis pelo aumento da temperatura média global e por potencializar as mudanças climáticas.
As cinzas resultantes do processo de beneficiamento de arroz correspondem a cerca de 20% do arroz em casca produzido no Brasil. Esse material não possui um descarte fácil, devido ao tempo que leva para decompor e ao risco de poluir o solo e cursos de água. “Essa cinza não pode ser descartada em nenhum ambiente e custa caro para as empresas levarem essa cinza até um local adequado. Então é aí que eu entro”, complementa José Beltrán.
De acordo com o pesquisador, atualmente a produção do pó valiente é feita de forma quase artesanal, mas assim que tiver um espaço para produção, a expectativa é de que rapidamente seja possível fazer maiores quantidades. José destaca também a vantagem em relação a outros produtos usados para polimentos, em sua maioria feitos com produtos químicos que afetam a saúde e o meio ambiente.
Recepção e outras possibilidades
Como parte do processo de validação com a comunidade, José tem feito a distribuição de pequenos potes com pó valiente. Desde julho de 2023, ele estima ter alcançado cerca de duas mil pessoas. O objetivo é compreender a efetividade no cotidiano, por exemplo, para polir uma bomba de chimarrão. “Também fica um canal aberto para as pessoas darem sugestões e críticas”. Como parte desses retornos, o pesquisador a solicitação de versões do produto em líquido e barras, o que já começou a desenvolver.
Rafael José Martins trabalha como administrador na Pulsar e acompanhou o desenvolvimento do pó valiente durante o Programa Eleva Start. “É um dos projetos que mais tem potencial na nossa visão, inclusive, para futuramente serem incubados e se tornar realmente uma solução global”, avalia. Além disso, Rafael também testou o produto, “tinha um vidro lá em casa que estava um pouco sujo, e ele resolveu bem. Limpa de uma forma seca que também é interessante”.
José também trabalha com outras possibilidades para o uso da casca de arroz e do capim-annoni. Um dos projetos dele é utilizar a gramínea exótica para a produção de uma substância capaz de absorver líquidos, semelhante a um algodão. O próprio pó valiente pode servir para a produção de lixas vegetais e de pisos antiderrapantes, indica ele. “Vai se abrindo um leque de opções que a gente vai estudando e pesquisando para ver quais são todos os potenciais que esse produto tem”.