O Rio de Janeiro ganhou um 11 de Setembro para chamar de seu, exatamente um ano depois do atentado às torres do World Trade Center, em Nova York. Num conflito entre facções criminosas em Bangu 1, o traficante Ernaldo Pinto de Medeiros, o Uê, teve o corpo carbonizado após ser assassinado, por ordem de Fernandinho Beira-Mar. Vários outros detentos morreram, num banho de sangue que materializou feriado não-oficial –obedecido respeitosamente na cidade inteira – para a população acompanhar paralisada o desenrolar dos acontecimentos no presídio.
Num apartamento da Zona Sul, uma diarista, moradora de Padre Miguel, conversava com o rádio, sobre outro inquilino vip da unidade: Celsinho da Vila Vintém, que, inimigo do grupo de Beira-Mar, seria morto a qualquer momento, segundo informavam os repórteres. “Vai nada. Não adianta, ele tem corpo fechado. Lá em cima todo mundo sabe”, decretava, referindo-se à comunidade nos confins da Zona Oeste carioca, a um Brasil de distância em termos de desigualdade.
Celsinho efetivamente sobreviveu – até hoje quando, ainda preso, aos 56 anos, manda nas mesmas comunidades. No conflito, ele adotou a doutrina PMDB (para ficar no clima cadeia) e trocou de lado. Traiu os antigos parceiros, aderiu ao grupo que atacava e terminou poupado. “Não falei? Tem corpo fechado, o tiro não pega nele”, insistiu a diarista, entre vitoriosa e conformada, na semana seguinte.
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Veja o que já enviamosDécada e meia antes, o proclamado rei do comércio de drogas nesta terra ensolarada e leniente era Cy de Acari. Num tempo pré-celular, a mídia especializada, alimentada pelas melhores fontes do ramo, garantia: o homem ligava para Pablo Escobar do orelhão comunitário da favela. Sim, DDI para Medellín. Seria Cy o responsável por distribuir a cocaína Rio de Janeiro afora – e por viabilizar transações envolvendo câmbio de moedas, no tempo da hiperinflação, de um telefone público paleolítico, daqueles que demoravam para dar linha.
Um dia, Cy foi preso – e a polícia apresentou com ares de vitória um brasileiro como milhões de outros, maltrapilho, de bermuda e chinelos, a cara da pobreza. O personagem superpoderoso, executivo multinacional do crime, morrera na ficção do noticiário. O comércio de drogas e o poder armado seguiram sua escalada, cevados pela corrupção e o desprezo dos governantes às comunidades populares.
Décadas se passaram – #sóquenão – até a prisão de Rogério 157, o inimigo público número 1 versão 2017. O terror da cidade, sequestrador da Rocinha, pesadelo dos estudantes da PUC e dos moradores da Gávea, foi preso desarmado, de cueca, embrulhado num cobertor debaixo da cama de um barraco do Parque Arará, a favela vizinha ao presídio de Benfica onde Sérgio Cabral, Jorge Picciani, Paulo Melo e Sergio Côrtes, entre outros criminosos, veem o sol nascer quadrado.
A diferença do alvo atual para seus antecessores estava no traje da apresentação à imprensa – Rogério 157 vestia camiseta preta com a inscrição “wild spirit” (“espírito selvagem”) no peito, e calça jeans, como manda a moda mais casual. De novo, não se avista na imagem o arquiteto de tamanho terror para a vida carioca. O exagero histórico se desmanchou novamente.
Mas a construção do personagem poderoso e invencível contou, dessa vez, com a risonha colaboração policial. Homens e mulheres da lei emolduraram o traficante, em selfies permissivas, num contentamento despropositado. “A gente tem que compreender a euforia e reprovar qualquer tipo de atitude que possa glamourizar esses criminosos”, arriscou o secretário de Segurança, Roberto Sá.
Aqui, mora um perigo terrível e nada combatido pelos meganhas no Rio. Como Celsinho e Cy, Rogério 157 ganhou preciosa contribuição para ingressar no olimpo dos mutantes do crime. Leonardo Sakamoto observou à perfeição em seu blog: “Os policiais tornaram-se eles próprios, com seu ato, troféus de Rogério 157, glamourizado pela selfie, transformado por eles em celebridade”. No imaginário da sociedade – em especial da parte abandonada à própria sorte nas favelas -, consolida-se, com as selfies, a ideia de mais um poderoso acima da lei. Os representantes do Estado encenaram papel venenoso para a lógica do poder nas ruas.
E o Rio cristaliza a triste imagem de uma das cidades sobre a Terra que valoriza as pessoas erradas. No caso, com a ajuda de quem deveria apenas combatê-las – para usar expressão do dialeto carioca, sem fanfarronice.