Nobel reafirma influência de africanos na luta pela paz

O momento do anúncio do Prêmio Nobel da Paz de 2019 para o primeiro-ministro da Etiópia, Abiy Ahmed Ali. Foto Stian Lysberg Solum/NTB Scanpix/AFP

Abiy Ahmed, vencedor do Nobel da Paz de 2019, foi o responsável pelo fim de vinte anos de conflitos com país vizinho

Por Alexandre dos Santos | ODS 16ODS 8 • Publicada em 8 de junho de 2019 - 08:25 • Atualizada em 11 de outubro de 2019 - 17:47

O momento do anúncio do Prêmio Nobel da Paz de 2019 para o primeiro-ministro da Etiópia, Abiy Ahmed Ali. Foto Stian Lysberg Solum/NTB Scanpix/AFP
O momento do anúncio do Prêmio Nobel da Paz de 2019 para o primeiro-ministro da Etiópia, Abiy Ahmed Ali. Foto Stian Lysberg Solum/NTB Scanpix/AFP
O momento do anúncio do Prêmio Nobel da Paz de 2019 para o primeiro-ministro da Etiópia, Abiy Ahmed Ali. Foto Stian Lysberg Solum/NTB Scanpix/AFP

O anúncio do Prêmio Nobel da Paz de 2019 não deixava dúvida: o primeiro-ministro da Etiópia, Abiy Ahmed, foi escolhido por “seus esforços em alcançar a paz e a cooperação internacional e em particular por sua iniciativa decisiva para resolver o conflito com a vizinha Eritreia”. A resposta, humilde e emocionada, veio em uma ligação telefônica: “Me senti tão pequeno e emocionado quando ouvi a notícia”, disse Abiy.

Antes da premiação de hoje, Abiy Ahmed já havia sindo incluído na lista das 100 personalidades mais influentes do planeta, escolhidas por uma junta de notáveis e publicada pela revista Time (ela própria uma das 100 publicações mais respeitadas e influentes do mundo). Junto com o primeiro-ministro estavam a meio-fundista sul-africana Caster Semenya, o empreendedor de Gana Fred Swaniker, o atacante do Liverpool, Mohamed Salah, e o presidente sul-africano, Cyril Ramaphosa. Todos indicados, não apenas por suas atividades profissionais, mas pela luta por um mundo mais inclusivo, justo e pacífico.

Fazer parte da lista da Time, para muitos, é uma honraria, mas nem sempre quem aparece nela esta ali pelas virtudes, mas pela capacidade intrínseca de influenciar outras pessoas e governos para o bem e para o mal. Afinal as listas contêm pessoas de várias atividades e espectros políticos como Osama Bin-Laden, Kim Jong-Un, Recep Tayyip Erdogan, Omar al-Bashir, Vladimir Putin, Benjamin Netanyahu, Donald Trump, Barack Obama, Dilma Roussef e Jair Bolsonaro.

A lista da TIME foi publicada pela primeira vez em 1999, num esforço dos jornalistas da revista e de um grupo de intelectuais, que se reuniram para escolher as 100 maiores personalidades do século XX.  Como conhecemos hoje, a listagem só começou mesmo a ser publicada em 2004. E os nomes que fazem parte dela são de escolha exclusiva dos editores da revista, com as indicações de ex-jornalistas, ex-colaboradores e toda a equipe da revista. Desde então, os escolhidos são divididos basicamente em cinco categorias: líderes, artistas, ícones, pioneiros e titãs.

Logo na primeira, de 2004, estavam lá dois políticos africanos e um sul-americano: os presidentes Nelson Mandela e Luiz Inácio Lula da Silva e a então primeira-ministra de Moçambique, Luisa Diogo, a primeira mulher a ocupar esse cargo no continente africano. De lá até 2019, a personalidade que mais apareceu na lista foi Barack Obama.  Hillary Clinton e Oprah Winfrey são as mulheres que mais vezes apareceram na lista, sendo escolhidas dez vezes.

Conheça um pouco melhor os cinco africanos da lista da Time. Eles retratam a escolha pela diversidade e pela representatividade no continente. Pessoas com um poder de influenciar de maneira positiva suas comunidades, seus países e (por isso foram escolhidos) todo o mundo. São:

  • Caster Semenya com sua medalha de ouro olímpica no Rio: ‘Durante uma década a IAAF quis me frear, mas isso na verdade me fortaleceu’ (Foto Eric Feferberg/AFP)

    Ícone – Caster Semenya.  Meio-fundista sul-africana, ela vinha quebrando vários recordes de atletismo quando, em 2009, foi obrigada pela Associação Internacional das Federações de Atletismo (Iaaf) a fazer um teste de gênero para comprovar que era mulher mesmo e para checar o uso de drogas. Mesmo que os resultados dos testes nunca tenham sido divulgados, a Iaaf foi acusada de racismo e a própria Associação Atlética Sul-africana também foi denunciada por não apoiar Semenya ou cuidar da imagem e da privacidade dela. Como relata Edwin Moses, bicampeão olímpico estadunidense dos 400 metros e um dos grandes desenvolvedores dos testes antidrogas no atletismo, Semenya tem características dos dois sexos e se identifica como uma mulher, “mas tem níveis de testosterona mais altos que a uma mulher típica. Seu sucesso trouxe controvérsia no esporte de elite, com muitos argumentando que suas características biológicas lhe dariam vantagens injustas na competição com outras mulheres”. Bicampeã olímpica dos 800m em Londres 2012 e no Rio 2016, Semenya usa o próprio exemplo para lutar por uma caracterização menos rígida do que é o “sexo biológico”. Ela acusa a Federação Internacional de discriminação e teve a defesa até do Conselho de Direitos Humanos da ONU que classificou de “desnecessária, humilhante e prejudicial” a decisão da IAAF de criar regras de restrição de níveis de testosterona em corredoras mulheres. “Se for bem-sucedida”, escreveu Moses, “o esforço de Semenya poderá abrir portas para todos os que se identificam como mulheres para competir em eventos de pista sem ter que primeiro reduzir clinicamente os níveis de testosterona abaixo do limite proposto”. Mas a briga de Semenya está longe de terminar. Em maio, o Tribunal Arbitral do Esporte (CAS) – corte máxima do esporte – referendou a determinação da Federação Internacional de Atletismo de que todas as mulheres cujo organismo produza mais testosterona que o considerado “normal” para o gênero feminino sejam proibidas de competir em disputas consideradas rápidas (entre 400 m e 1.500m). A não ser que se submetam ao tratamento de redução de testosterona. Caster Semenya reagiu em nota: “Sempre soube que a IAAF estava me perseguindo com seus regulamentos. Durante uma década a IAAF quis me frear, mas isso, na verdade, me fortaleceu. A decisão do CAS não me deterá. Vou me levantar outra vez”. A polêmica não terminou mesmo. O presidente do Comitê Olímpico Internacional disse que um grupo de trabalho da entidade está debruçado sobre o tema. “Nossos especialistas vão estudar esse caso muito complicado e delicado”, afirmou Thomas Bach.

  • Fred Swaniker em recente palestra na Alemanha: especialista )em desenvolver lideranças jovens na África (Foto: Andreas Gebert/Picture Alliance)

    Pioneiro – Fred Swaniker. O empreendedor do Gana, de 43 anos, se especializou em desenvolver lideranças jovens no continente africano. “Qualquer projeto que inclua a juventude tem potencial de alto impacto na África”, afirma o responsável pela apresentação de Swaniker, o empresário bilionário anglo-sudanês Mo Ibrahim, responsável por uma das mais importantes fundações que medem a governabilidade no continente africano, a Mo Ibrahim Foundation: “Com 60% da população abaixo de 25 anos, a África é o continente mais jovem do mundo. Até 2100, quase metade da juventude mundial deverá ser da África.” Swaniker está à frente de três instituições cujos objetivos são dar protagonismo aos jovens para que eles desenvolvam o caminho que quiserem seguir (a African Leadership Academy, a African Leadership Network e a African Leadership University) e Mo Ibrahim defende a ideia de que essa é a melhor maneira de cerca de três milhões de “líderes do amanhã” sejam despertados hoje.

 

  • O atacante egípcio do Liverpool Mohamed Salah em ação na Liga Inglesa: projetos sociais (Foto: Paul ELLIS/AFP)

    Titãs – Mohamed Salah. É o ator e comediante John Oliver (apresentador do programa Last Week Tonight da HBO, do qual o programa Greg News é um dos filhos) quem apresenta o jogador egípcio que dispensa apresentações: “Mo Salah é um ser humano melhor do que ele é um jogador de futebol. E ele é um dos melhores jogadores de futebol do mundo.” E Oliver também ressalta o fato de que um dos jogadores mais admirados do mundo é muçulmano, uma das religiões que mais sofrem com pré-conceitos neste mundo moderno, “Mo é uma figura icônica para os egípcios e os muçulmanos em todo o mundo. No entanto, ele sempre aparece como um homem humilde, atencioso e engraçado que não leva muito a sério isso.” Além disso, Salah está à frente de um dos mais importantes projetos sociais do Egito, ajudando desde famílias sem posses a veteranos do futebol egípcio. É uma personalidade que usa de maneira positiva, empoderadora e transformadora a evidência que o futebol lhe deu.

 

  • Abiy Ahmed, primeiro-ministro da Etiópia na cerimônia do Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, organizada pela Unesco: esperança de democracia em um dos países mais pobres do mundo (Foto Eduardo Soteras/AFP)

    Líderes – Abiy Ahmed. A Etiópia vive hoje uma “abiymania”, uma lua-de-mel com seu primeiro-ministro. Afinal, desde a deposição do imperador Haile Selassie em 1974, nenhum líder político representou tanto os anseios dos povos etíopes (a Etiópia é formada por mais de 10 etnias diferentes) ou injetou tanta esperança na população quanto ele. O que se reflete no texto escrito pelo maratonista e medalhista olímpico Feyisa Lilesa, da etnia majoritária oromo. Em 2016, quando ganhou a medalha de prata nas Olimpíadas do Rio, Lilesa cruzou os braços acima da cabeça em protesto contra o massacre da sua etnia pelas tropas leais ao então primeiro-ministro Hailemariam Desalegn. Foi considerado persona non grata em seu próprio país. Chegou a pedir asilo político ao Brasil, mas foi viver em Miami. “Em 2016, a situação na Etiópia era muito ruim. Pessoas estavam sendo mortas e muitas estavam na cadeia, e eu queria que o mundo soubesse o que o governo estava fazendo. É por isso que, durante a maratona de 2016 nas Olimpíadas do Rio, cruzei meus pulsos na linha de chegada – para simbolizar que o povo etíope queria impedir o assassinato e impedir a prisão. Nós não queríamos uma ditadura”, escreve Lilesa. Foram quase dois anos de exílio até poder voltar pra casa. “Em março passado, enquanto eu estava treinando no Quênia, ouvi que o dr. Abiy Ahmed seria o próximo primeiro-ministro. Na história da Etiópia, nunca vimos um líder como ele. Ele é uma pessoa educada que fala sobre unidade. Ele libertou milhares de pessoas da cadeia. Ele trouxe a paz entre a Etiópia e a Eritréia após 20 anos de guerra”. Num país em que 80% da população vivem em áreas rurais, a paz garante que haja investimentos em saúde básica (incluindo atendimento pré-natal a parturientes que nunca foram a um posto de saúde) e em Educação (apenas 39% dos etíopes são alfabetizados, o oitavo pior índice do mundo). No fim de seu texto, Lilesa resume a alegria (mesmo que com certa desconfiança) dos etíopes com seu atual líder: “Sim, as pessoas ainda estão protestando. Mas agora, quando eles protestam, eles não vão para a cadeia. Para mim, isso é democracia. Isso é esperança.”

 

  • O presidente reeleito da África do Sul, Cyril Ramaphosa, também presidente do Congresso Nacional Africano, no poder há 25 anos: paciência para vencer a corrupção (Foto Rodger Bosch/AFP)

    Líderes – Cyril Ramaphosa. A veterana correspondente Vivienne Walt é quem assina o texto de do presidente sul-africano eleito em maio de 2019 (com 57,5%), que se destaca em sua cruzada contra a corrupção. Walt destaca a paciência como uma das maiores virtudes de Ramaphosa, que estava interinamente na presidência desde fevereiro de 2018, quando assumiu no lugar de Jacob Zuma, deposto após um processo de impeachment, o primeiro do país. Ramaphosa era um dos homens mais próximos de Mandela no Congresso Nacional Africano (ANC) durante o período de luta contra o apartheid e continuou próximo durante a presidência dele (1994 a 1998). Era um dos nomes fortes para a sucessão de Madiba, mas foi traído pelos seus companheiros, que escolheram Thabo Mbeki. Desiludido com a política, Ciryl “deu um tempo” e se tornou um empresário astuto e promissor, já que era profundo conhecedor do jogo político. “Fez uma grande fortuna nos negócios, enquanto seus rivais afundaram o país em disfunção e nepotismo. Ramaphosa, ou Cyril, como é conhecido pelos sul-africanos, tem a chance de acabar com a corrupção e pôr em marcha uma economia paralisada. Além disso, precisa dar resposta rápida aos milhões de sul-africanos miseráveis e com altas taxas de desemprego”, resume Walt. Porém a maior dificuldade do presidente, após ser reconduzido ao cargo, será domar o fogo-amigo dentro do próprio partido, já que muitos políticos do quadro do CNA estão afundando vagarosamente no lamaçal de processos que se multiplicam nas costas do ex-presidente Jacob Zuma.

Alexandre dos Santos

Jornalista formado pela Uerj em 1996 e mestre em Relações Internacionais pela PUC-Rio. Trabalhou como repórter em jornal impresso e em TV. É professor de História da África no curso de Relações Internacionais da PUC-Rio. Carioca de muitas ascendências: camaronesa, angolana, portuguesa e espanhola. E-mail: alexandredossantos@me.com. Instagram: @alsantos72

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