É possível pacificar o debate político?

Eleitor fotografa urna com sua arma durante o primeiro turno (Foto reprodução internet)

Para antropólogo Luiz Eduardo Soares, discurso de Bolsonaro evoca, convoca, estimula e autoriza a violência

Por Leonardo Pimentel | ODS 8 • Publicada em 11 de outubro de 2018 - 15:34 • Atualizada em 13 de outubro de 2018 - 19:48

Eleitor fotografa urna com sua arma durante o primeiro turno (Foto reprodução internet)
O deputado estadual eleito Rodrigo Amorim (PSL) com a placa quebrada em homenagem a Marielle Franco (Foto: Reprodução)
O deputado estadual eleito Rodrigo Amorim (PSL) com a placa quebrada em homenagem a Marielle Franco (Foto: Reprodução)

Incerteza com o futuro, busca por uma figura de autoridade e crenças que resistem a fatos e argumentos são alguns dos motivos para o sucesso do discurso de Jair Bolsonaro. Essa é a avaliação do antropólogo Luiz Eduardo Soares, ex-secretário Nacional de Segurança Pública, para quem o ódio político hoje contamina todos os setores da sociedade. A solução? Um processo longo e profundo que depende de respeito a valores democráticos.

#COLABORA: A violência que estamos vendo nesta eleição é muito diferente do que acontece em pleitos anteriores?

Luiz Eduardo Soares: A violência em período eleitoral sempre foi muito maior do que se supõe ou do que é percebido. Na Baixada Fluminense, por exemplo, há assassinatos em todas as eleições. Isso se reproduz pelo país afora.

O que há de diferente agora, então?

Luiz Eduardo Soares: A peculiaridade agora decorre do fato de uma das candidaturas presidenciais, a de Bolsonaro, autorizar tacitamente, por uma série de sinais e até intervenções mais explícitas ao longo de anos, essa violência. Evoca, convoca, estimula e autoriza a violência. Isso aconteceu no Acre, quando Bolsonaro simulou o movimento de uma metralhadora e disse que ia “metralhar petistas” . É um gesto teatral, mas aponta numa direção. O gesto do candidato, que virou um símbolo informal da campanha, simula uma arma. As propostas e os discursos são de eliminação física do outro, definido como inimigo, mesmo de forma metafórica.

O candidato Jair Bolsonaro simula duas armas com as mãos. Gesto marcou a sua campanha. Foto Heuleer Andrey/AFP

De onde vem o peso desse discurso?

Luiz Eduardo Soares: Uma parte importante nas nossas vidas é intangível. São as nossas emoções, nossos afetos, nossos medos, nossos valores. Essa parte oculta de nós, por vezes, é mais importante do que aquilo que consideramos objetivo. Quando há uma autorização, mesmo que implícita, à violência por parte de uma liderança importante, aquilo dentro de nós que está represado pode ser estimulado a se explicitar. É o que me parece bastante nítido na campanha de Bolsonaro.

Por que essa mensagem atrai tanto?

Luiz Eduardo Soares: Isso não é específico da sociedade brasileira, embora vivamos esse drama de modo particular. O mundo contemporâneo vive o colapso de uma série de ancoragens, de pilares sobre os quais erguíamos nossa experiência de nós mesmos e do mundo. São os papéis familiares, as relações amorosas e afetivas, as convicções religiosas, as ideologias políticas, as relações de trabalho, etc. Isso forma a previsibilidade quanto ao futuro. No mundo todo, nós estamos vendo mudanças em praticamente todos esses aspectos. São transformações que podem ser até criativas, abrindo novas possibilidades para o ser humano. Mas isso acontece de forma extensa e profunda e, como no caso do Brasil, se associa a uma grave crise econômica, provocando uma insegurança diante da própria vida. Nessa hora, o discurso ultraconservador e dogmático, associado a uma figura de autoridade, quase um Deus do Velho Testamento, acaba funcionando como a reconstituição de alguns desses pilares que estabilizam a experiência existencial conosco e com os outros. A família volta a ser tradicional, as orientações sexuais são rígidas e tudo é regido por uma autoridade que vai eliminar a incerteza e restabelecer uma ordem – que é, evidentemente, imaginária.

Como as chamadas fake news entram nesse cenário?

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Cria-se uma campanha que evita o debate. O candidato deve ser blindado para que não diga nada. Vale apenas a fabulação

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Luiz Eduardo Soares: Numa campanha de ultradireita, nós temos a afirmação de convicções que não dependem de argumentações racionais ou até de fatos. Elas se constroem mitologicamente em narrativas delirantes. O que temos visto na Internet são histórias literalmente incríveis. Não dá para imaginar que uma pessoa minimamente sensata acredite, por exemplo, que as crianças vão ser retiradas das famílias aos cinco anos para serem pervertidas sexualmente. Eu recebi um vídeo de uma senhora que trabalhou para minha família e mora em Rio das Pedras (comunidade na Zona Oeste do Rio). A gravação foi feita na igreja. No meio de um exorcismo, o pastor conversava com o “demônio” e este, entre gargalhadas, dizia para não votarem em Bolsonaro, pois se não ele seria varrido da face da Terra e não poderia impor seu reino no Brasil e no mundo. Era um teatro de péssima qualidade, mas as pessoas, inclusive a senhora que enviou, acreditavam. É um nível de fabulação que explora a crendice e resiste a qualquer tentativa de argumentação racional.

Esse fenômeno não é só brasileiro, certo?

Luiz Eduardo Soares: Não. Isso está sendo promovido com base em táticas internacionais com recursos multimilionários. Essa tecnologia está sendo experimentada também junto à ultradireita na Europa, foi em parte usada na campanha de Trump. Cria-se uma campanha que evita o debate. O candidato deve ser blindado para que não diga nada. Vale apenas a fabulação. O Brasil está sendo palco de uma experimentação digna de Orwell.

No caso da moça atacada em Porto Alegre, o delegado minimizou a agressão dizendo que a suástica entalhada nela não um símbolo nazista. Há leniência das autoridades com a violência política de direita?

Luiz Eduardo Soares: Certamente. Essa patologia contamina a sociedade em todas as camadas. Ela está presente em segmentos do Judiciário, da administração pública, das forças de seguranças, da mídia e de tudo mais.

Há quem acuse a esquerda de ter insuflado o discurso de “nós contra eles” e estimulado a polarização radical. Isso é verdade?

Luiz Eduardo Soares: Discurso de “nós contra eles” está presente desde que existe o embate político. A política supõe identidades em contraste e tensionamento da disputa. O que estamos vendo é outra coisa. A mídia conservadora trabalhou para construir um foco do Mal atribuído ao PT, resultado no antipetismo como um veneno que intoxica o debate. Não se diz que pessoas dentro do partido se corromperam e passaram a agir como os outros sempre agiram, o que seria uma crítica pertinente. É dito que ali foi identificada a fonte do Mal, que a grande corrupção foi inaugurada ali. E aí vão se juntando perversões imaginárias como Ursal e kit gay.

Como pacificar o debate político?

Luiz Eduardo Soares: Sinceramente eu não sei. Implicaria reconhecer os motivos do que está acontecendo e passar a limpo os últimos anos numa revisão profunda da sociedade. Isso exige que se firme a estabilidade democrática e a inviolabilidade da Constituição. Mas é um processo longo, profundo e multidimensional, que depende de um governo comprometido com a democracia.

Leonardo Pimentel

É jornalista freelancer. Foi editor da hompage do jornal O Globo, assessor de imprensa do TRE-RJ nas eleições de 2008, editor-executivo da revista "Nossa História" e editor de noticiário do no.com, a primeira revista virtual do Brasil. É autor de "Som no PC" (2006).

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