O filme “Suprema” (“On the Basis of Sex”), que estreia em março no Brasil, conta a história de Ruth Bader Ginsburg, 85 anos, ministra da Suprema Corte dos EUA, que na década de 60 convenceu juizes de um tribunal de apelação que seu cliente estava sendo discriminado por não ser do sexo feminino.
(Atualização: a juíza Ruth Bader Ginsburg morreu em 18/09/2020)
“Suprema” não recebeu boas críticas nos Estados Unidos, mas alguns especialistas estão apostando que Felicity Jones, como Ginsburg, estará entre as candidatas ao Oscar de melhor atriz em 2019. O filme é uma biografia do início da carreira da ministra que vale mais pela história de como ela chegou à estratégia, considerada brilhante, de defender homens em casos de discriminação, com a intenção de derrubar uma por uma as leis que negavam às mulheres os mesmos direitos dos homens.
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Veja o que já enviamosNão peço nenhum favor para o meu sexo. Só peço aos meus irmãos que tirem os pés do nosso pescoço
[/g1_quote]Embora austera e reservada, a ministra transformou-se em ícone da cultura pop nos EUA e é popularmente conhecida como Notória R.B.G., um trocadilho com o nome do músico de rap Notório B.I.G.. “Nós temos algumas coisas em comum; ambos nascemos no Brooklyn”, respondeu ela gentilmente sobre o que achava do trocadilho. Ela virou um ídolo dos jovens nesta década, quando chamou a atenção da estudante de Direito Shana Knishnik com suas opiniões contundentes, divergindo da decisão da corte americana. A mídia social amplificou o alcance dessas opiniões que expressavam um descontentamento com o status quo. Knishnik criou um blog para informar sobre as opiniões inspiradoras da ministra, que viralizou. Hoje, Ginsburg é meme significando força e resistência e o jabô que usa toda vez que vai discordar da decisão do tribunal- a loja de roupas Banana República criou um colar igual a esse jabô – jovens usam camisetas e até fazem tatuagens com seu retrato e a expressão “I dissent” (“Eu discordo”). Ela passou a representar a frustração dessa geração. O que ela acha disso? “Eu gosto das camisetas e do blog, mas das tatuagens não, porque são permanentes”, disse Ginsburg, cujo legado jurídico é justamente sua influência na mudança das leis vigentes para se adaptarem ao mundo em que vivemos.
Ruth Bader Ginsburg é líder na defesa dos direitos das mulheres na história da Justiça americana, como advogada e juíza. Ela ganhou cinco dos seis casos que defendeu perante à Suprema Corte americana nos anos 70 argumentando com base no sexo. Ela foi capaz de mudar a jurisprudência que resultou na legislação existente hoje nos Estados Unidos, extendendo às mulheres os direitos que até então só os homens tinham. Mesmo nunca tendo participado do movimento feminista, de manifestações e protestos em defesa das mulheres, ou colocado os pés em uma passeata pelos direitos da mulher, ela foi responsável pelas ações que tiveram mais consequências concretas e práticas para o feminismo. “Pra mim ela é o que mais se assemelha a um super-herói”, disse Gloria Steinem, um dos ícones do movimento feminista na década de 70 nos EUA.
Sua estratégia não parecia fazer muito sentido, mas é considerada genial e muito perspicaz. Defendendo homens prejudicados por discriminação em casos de litígio, ela sensibilizou os juízes, na época quase todos homens. “A discriminação com base no sexo prejudica todos mas mais frequentemente as mulheres”, disse Ginsburg ao defender um homen acusado de tentar burlar o código fiscal por descontar no imposto de renda o valor pago à cuidadora de sua mãe, com quem morava, para as horas em que ele estava no trabalho. Esse desconto foi criado exclusivamente para as mulheres que trabalhavam fora, já que a tarefa de cuidar da família era delas e portanto precisavam contratar ajuda para poder trabalhar. Ela demonstrou a diferença de tratamento, apresentando no seu argumento de defesa leis que explicitamente distinguiam o gênero de seus beneficiários, o que achava ser inconstitucional. O artigo 14⍛ da Constituição americana diz que é proibido negar a qualquer pessoa a mesma proteção da lei, portanto nenhuma lei pode ser escrita para um gênero só.
A ministra, enquanto advogada, convenceu a Suprema Corte de que a percepção dos ministros de que existia igualdade de direitos devia-se ao fato de terem internalizado o papel social de cada sexo e assumiam que a mulher não precisava de direitos iguais aos dos homens e vice-versa. Eles não conseguiam conceber porque a mulher militar deveria receber auxílio moradia como seus colegas homens, se o responsável por sustentar a família era o marido. Ou porque um homem viúvo com um filho para criar deveria ganhar pensão da previdência social para a qual a mulher, professora, contribuiu, se o papel do homem não é o de ficar em casa para cuidar do filho. Os juízes, e certamente os legisladores, não entendiam como um homem optaria por cuidar do filho em vez de ser profissional.
O caso mais importante para o movimento feminista, porque colocou as mulheres no mesmo plano dos homens, foi o julgamento, em 1996, da causa de uma mulher a quem foi negada matrícula no Instituto Militar da Virgínia, uma escola pública de ensino superior que não admitia mulheres. Ginsburg, já ministra da Suprema Corte, foi a relatora da decisão deste que foi o primeiro caso sobre igualdade de gênero diante da Suprema Corte dos EUA. Os casos que defendeu como advogada reviam regulamentações que prejudicava um gênero. O argumento, que ganhou por 7 a 1 no tribunal, foi simples e óbvio: se a candidata é capaz de participar de todas as atividades da escola nos parâmetros exigidos, o instituto não pode recusar sua matrícula porque viola o artigo 14⍛ da Constituição. Com essa decisão a Suprema Corte tornou inconstitucional as leis que tratam as mulheres de forma diferente dos homens. Tinha-se atingido a desejada igualdade, perante a lei. Quando reflete sobre o feminismo, a ministra gosta de citar uma frase da escritora abolicionista e sufragista no fim do século 18, Sarah Grimké, “Não peço nenhum favor para o meu sexo. Só peço aos meus irmãos que tirem os pés do nosso pescoço”.
Ginsburg é uma pessoa reservada, introspectiva, quase tímida. Ela fez direito em Harvard, mas formou-se, com distinção, pela Universidade de Columbia, em primeiro lugar da sua turma, nos anos 50. Depois de formada, não conseguiu emprego em nenhuma firma de advocacia de Nova York por ser mulher. “Não contratamos mulheres”, foi o que ela ouviu, depois de uma entrevista em que demonstrou capacidade e competência como advogada. Teve que se contentar com um emprego de professora de direito. Foi trabalhando para a União Americana pelas Liberdades Civis que ganhou experiência em litígio como advogada, e recebeu apoio da organização para advogar em casos de discriminação, tornando-se a patrona da igualdade de direitos. Todos são iguais perante a lei.