Vidas ainda secas no Semiárido

Com 350 mil famílias vivendo com sede na região, recursos para irrigar o programa Um milhão de Cisternas são desidratados no governo Bolsonaro

Por Liana Melo | ODS 6 • Publicada em 28 de abril de 2019 - 08:00 • Atualizada em 7 de abril de 2020 - 11:22

Elzita, a filha Maria Meire e uma das netas. Foto de Mirian Fichtner

Elzita, a filha Maria Meire e uma das netas. Foto de Mirian Fichtner

Com 350 mil famílias vivendo com sede na região, recursos para irrigar o programa Um milhão de Cisternas são desidratados no governo Bolsonaro

Por Liana Melo | ODS 6 • Publicada em 28 de abril de 2019 - 08:00 • Atualizada em 7 de abril de 2020 - 11:22

(Fotos: Mirian Fichtner) Os olhos de Maria Elzita Alves ficam marejados todas as vezes que ela se lembra do dia em que um dos seus 11 filhos pediu um copo d´água. O menino tinha ido dormir sem tomar banho e, durante a noite, acordou com sede. O calor era escaldante dentro do casebre. Do lado de fora da casa, a seca era severa. Como não tinha o que fazer, lembra que respondeu simplesmente: “vai dormir meu filho, porque não tem água!” A filharada cresceu. O primogênito tem mais de 30 anos e o caçula é ainda um adolescente, de 17 anos, mas o sofrimento continua o mesmo. A diferença está nos personagens envolvidos: hoje, quem pede água são alguns dos seus 34 netos, muitos dos quais vivem com a avó, ou moram perto dela, na vizinhança. O martírio da seca nunca deu trégua à família Alves, que vive numa casa de taipa, na comunidade de Vaca Morta, zona rural de Canápolis, no oeste da Bahia, sem água de boa qualidade para beber, para cozinhar, para plantar… Maria Elzita é um dos 1,7 milhão de brasileiros que enfrentam problemas seculares de escassez de água.

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Elzita, a filha Maria Meire e uma das netas. Foto de Mirian Fichtner
Elzita, a filha Maria Meire e uma das netas (Foto de Mirian Fichtner)

A fragilidade hídrica de Canápolis, onde a família Alves mora na zona rural da cidade, vem se agravando. As nascentes estão secando: dez delas já desapareceram completamente, e outras 11 estão seguindo o mesmo caminho. Apenas três olhos d´água estão resistindo à “sede” do agronegócio na região. A cidade é circundada por fazendas de soja, algodão, gado e eucalipto, que demandam cada vez mais água para irrigar seus grandes negócios no campo. O #Colabora esteve no oeste da Bahia, em fevereiro, no período chuvoso, para conversar com sertanejos, que, como Maria Elzita, vivem em bolsões de miséria e são as principais vítimas da disputa pela água, e consequentemente pela terra, que vem se travando na região.

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Fazendas de gado e eucalipto disputam água e terra no Cerrado, que vem diminuindo à medida que o agronegócio cresce no oeste da Bahia  (Foto: Mirian Fichtner)

“Se tivesse água, plantaria um pé de remédio”, conta Maria Elzita, com sua voz cadenciada, referindo-se às plantas medicinais, que sonha, um dia, ter no quintal de casa. Suas frases são curtas, mas certeiras. Em poucas palavras, essa baiana de 56 anos, estatura mediana, olhos claros e pele curtida de sol, diz verdades constrangedoras: “A sede é doída”!

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A volta do velho paradigma da indústria da seca está rondando

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Maria Elzita sabe muito bem que viver sob estresse hídrico é duro, mas admite que mais penoso é saber que a situação está longe de ser resolvida. Ela sonha com uma cisterna no quintal de casa. O objeto de desejo da sertaneja está mais para uma miragem provocada pelo excesso de calor. “A volta do velho paradigma da indústria da seca, que era alimentada pelo toma-lá-dá-cá da política regional nordestina, está rondando”, analisa Cícero Félix, da coordenação executiva da Articulação Semiárido Brasileiro (ASA), pela Bahia, explicando que o projeto de universalizar o acesso à água na região está cada vez mais distante, especialmente depois da última eleição.

Alguns moradores de Canápolis, como Adão, contam com a ajuda de um animal para pegar água na nascente mais perto de casa (Foto: Mirian Fichtner)

Dados levantados pela recém-criada Frente Parlamentar em Defesa da Convivência com o Semiárido apontam que seriam necessários investimentos de R$ 5,6 bilhões para zerar o déficit na construção de cisternas até 2031. A cifra é alta, mas diluída ao longo dos anos, representaria menos de R$ 500 milhões ao ano. “Comparado ao valor gasto com a transposição do rio São Francisco, que até hoje não cumpriu a promessa de levar água aos mais pobres, o valor representa menos da metade e com resultados efetivos, comprovados ao longo das duas últimas décadas”, avalia Félix.  Contando com o apoio de 200 deputados e senadores de vários estados e partidos, a entidade foi criada para cobrar do governo Bolsonaro investimentos nas políticas de convivência com o Semiárido, uma tentativa de evitar o risco de um “apagão” de água na região. O déficit atual é de 350 mil cisternas de água para consumo humano e 800 mil cisternas para produção, ou seja, água estocada para resolver a dessedentação animal e irrigar hortas em quintais produtivos.

Em dias de chuva, os moradores de Canápolis costumam armazenar água da chuva (Foto: Mirian Fichtner)

Sem cisterna no quintal de casa, Maria Elzita só conta mesmo com a “água que cai do céu”. Só que, pelas características da região, a chuva é apenas um alento, jamais uma solução. Chove pouco em Canápolis, e a quantidade é ainda mal distribuída. Ainda assim, a chuva representa a fonte de água mais importante para a população local. Não à toa o paradigma da convivência com a seca foi pautado justamente no estoque de água da chuva. Em dias chuvosos, por exemplo, os moradores posicionam baldes pela cidade para armazenar água. Na área rural, a situação é mais dramática. Todos vivem à mercê da seca, que pode durar dias, meses, anos – a última, entre 2012 e 2017, foi histórica, considerada a maior do século e não poupou gente, bicho ou planta. “Não posso deixar nem um pé de fruta para meus netos de herança”, lamenta Maria Elzita.

E o Cerrado secou

Até os anos 1970, Canápolis era uma típica cidade do Cerrado. Por essa época, começaram a chegar as primeiras fazendas de agronegócio, justamente porque a terra na região é plana, o que facilitava a mecanização, e, o mais importante, tinha água em abundância – o bioma é cortado por rios caudalosos, que formam seis das principais bacias hidrográficas brasileiras. Com a dupla vantagem competitiva, nascia uma nova fronteira agrícola no país: Matopiba, um acrônimo formado com as iniciais dos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia. Passados menos de 50 anos, praticamente a metade da mata original do bioma desapareceu, e 30% viraram pasto. De tão seco, o Cerrado foi diminuindo de tamanho, enquanto a região semiárida crescia, engolindo novos municípios, como Canápolis.

Ao ter seu bioma transformado em semiárido, Canápolis deu visibilidade a uma legião de brasileiros que carecem, há muitos anos, de água para o consumo humano. Maria Elzita é uma das protagonistas de um cartão-postal perverso, que combina beleza e miséria. Ela é uma das sem-água do Cerrado – uma população que vive há anos sob estresse hídrico, mas que, até hoje, estava excluída do Programa Um Milhão de Cisternas, que nasceu para atender exclusivamente a população da Região do Semiárido e, o mais importante, quebrou a falsa ideia de que no Semiárido não tem água. Sim, a água é escassa, mas o problema grave é a falta de políticas públicas adequadas às necessidades locais.

Junto com oito localidades do oeste da Bahia, a Canápolis de Maria Elzita entrou para o mapa do Semiárido na última atualização feita pela Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), no final de 2017. À época, 73 novas cidades mudaram de status. O Semiárido cresceu e se espalhou por 1.262 municípios brasileiros em dez estados: Maranhão, Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Bahia e Minas Gerais. Vivem na região 27 milhões de pessoas. É justamente na Bahia onde se concentra o maior número de municípios na Região do Semiárido (278), e só faltam quatro cidades para todo o oeste baiano virar sertão: Correntina, Jaborandi, São Desidério e Luiz Eduardo Magalhães.

Maria Meire, filha e sobrinhos em frente de casa. Foto de Mirian Fichtner

Pouco mais de 16 anos depois da instalação da primeira cisterna no Semiárido brasileiro, Maria Elzita acreditou que entraria para o Programa Um Milhão de Cisternas. A tecnologia interrompeu um ciclo de miséria endêmica no sertão nordestino. No lugar de uma terra seca e rachada, crianças subnutridas e carcaça de gado morto, as cisternas espalhadas pela região ajudaram a população a conviver com a seca. Ao virar política pública, o Programa Um Milhão de Cisternas decretou a falência da “indústria da seca”, quando a água era trocada pelo voto.

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É sofrido olhar para comida na lata e não poder cozinhar, porque não tem água

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“Na seca, temos que escolher entre cozinhar ou beber água”, conta Maria Elzita. “É sofrido olhar para comida na lata e não poder cozinhar, porque não tem água”. Ela chora, coça os olhos, e pede a Deus para chegar o dia que será beneficiada com uma cisterna. A próxima seca se aproxima – os piores meses costumam ser agosto e setembro – e seu sofrimento está longe de terminar. As cisternas não parecem estar nos planos do Ministério do Desenvolvimento Regional. Ao falar sobre o Plano Nacional de Segurança Hídrica, o ministro Gustavo Canuto anunciou investimentos de R$ 25 bilhões para garantir o abastecimento até 2035. Das 114 obras anunciadas em abril, quando o governo completou 100 dias, nenhuma palavra sobre o Programa Um Milhão de Cisternas,  e muitos elogios a Israel e sua tecnologia de dessalinização.

Maria Meire lavando roupa, no sumidouro, acompanhada de filhos e sobrinhos (Foto Mirian Fichtner)

O drama de Maria Elzita comprova a tese, defendida por Euclides da Cunha, para quem “o sertanejo é, antes de tudo, um forte”. Ela passou a vida buscando água sob o sol escaldante. O peso do balde cheio na cabeça deixou marcas profundas no seu corpo: “sofro com dores no espinhaço”. Hoje, é a filha Maria Meire, de 23 anos, mãe de dois meninos, quem caminha todos os dias, por cerca de meia hora, para enxaguar a roupa suja, no sumidouro, no período das chuvas. A cena se repete cotidianamente, até que a seca recomece e toda a água evapore, levando embora uma das poucas diversões da criançada. O sumidouro é, ao mesmo tempo, uma grande lavanderia a céu aberto e a praia do lugar. Indo e voltando do sumidouro, rodeada de filhos e sobrinhos, a jovem Meire reproduz no seu dia a dia a miséria que herdou dos pais. E entre as muitas mazelas herdadas, as dores na coluna, que já começaram a se manifestar precocemente.

Liana Melo

Formada em Jornalismo pela Escola de Comunicação da UFRJ. Especializada em Economia e Meio Ambiente, trabalhou nos jornais “Folha de S.Paulo”, “O Globo”, “Jornal do Brasil”, “O Dia” e na revista “IstoÉ”. Ganhou o 5º Prêmio Imprensa Embratel com a série de reportagens “Máfia dos fiscais”, publicada pela “IstoÉ”. Tem MBA em Responsabilidade Social e Terceiro Setor pela Faculdade de Economia da UFRJ. Foi editora do “Blog Verde”, sobre notícias ambientais no jornal “O Globo”, e da revista “Amanhã”, no mesmo jornal – uma publicação semanal sobre sustentabilidade. Atualmente é repórter e editora do Projeto #Colabora.

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Um comentário em “Vidas ainda secas no Semiárido

  1. Edu Chaves disse:

    Excelente a série de reportagens sobre as perversas causas de escassez hídrica na região oeste da Bahia, onde a fartura de águas superficiais e subterrâneas, se bem distribuída e preservada, poderia ser motor de desenvolvimento econômico e regional, incluindo as comunidades tradicionais que tanto dependem desta água para dar continuidade à sua existência. Parabéns!!!

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