Mercado da moda aposta no algodão reciclado para reduzir pegada ambiental

Cuidado, o que você está vestindo pode não ser tão sustentável assim

Por Fernanda Baldioti | ODS 12ODS 15ODS 6 • Publicada em 31 de agosto de 2018 - 11:00 • Atualizada em 31 de agosto de 2018 - 14:58

A Osklen desfilou a coleção mais sustentável da sua história na última São Paulo Fashion Week, em abril (Foto: Marcio Madeira /_Divulgação)
A Osklen desfilou a coleção mais sustentável da sua história na última São Paulo Fashion Week, em abril. Foto: Marcio Madeira /Divulgação)
A Osklen desfilou a coleção mais sustentável da sua história na última São Paulo Fashion Week, em abril. Foto: Marcio Madeira /Divulgação

Muito mais do que tendências de moda para a próxima estação, a Osklen mostrou na última edição da São Paulo Fashion Week (SPFW), realizada em abril, uma coleção com números que impressionam quanto à economia de água, energia e à redução de CO2. E um dos grandes responsáveis por isso foi o uso de uma matéria-prima ainda muito pouco usada pela indústria: o algodão reciclado.

“A cultura do algodão, de forma, geral, é uma vilã da natureza pelo uso de agrotóxicos, e, principalmente, pelo consumo excessivo de água. Basta lembrar do Mar de Aral, o lago que secou por conta da irrigação de plantações de algodão na União Soviética. No Brasil, vivemos uma crise hídrica e ainda não temos a consciência de que esse é um recurso finito”, alerta Nina Braga, diretora do Instituto-e, que, junto com o COPPEAD, da UFRJ, produziu um estudo sobre os impactos positivos do uso do algodão reciclado.

Para se ter uma ideia, de acordo com o relatório Mind Your Step, a produção das sementes de algodão representa 68% do gasto de água necessário durante todo o processo de confecção de uma camisa. Ao utilizar o algodão reciclado, a indústria elimina essa fase. Isso porque ele pode ser feito a partir de retalhos de malhas e tecidos que seriam descartados (algo que gira, em média, em torno de 12% da matéria-prima), de roupas produzidas e não vendidas ou mesmo de peças usadas.

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Estudo mostra a redução do impacto ambiental na última coleção da Osklen / Arte: Divulgação
Estudo mostra a redução do impacto ambiental na última coleção da Osklen / Arte: Divulgação

Depois de serem recolhidos, os resíduos são separados por cor e composição. Além da economia de água, também não há o uso de corantes e produtos químicos, minimizando ainda mais os impactos. Em seguida, o material é cortado e desfibrado. Na sequência, a matéria-prima pode ser fiada, misturada a outras fibras naturais ou sintéticas para melhorar a resistência dos fios. Por fim, os tecidos são levados para o corte e confecção de roupas.

“A cada coleção, as peças obedecem a uma escala de cores pré-definida pelo time de estilo. O algodão reciclado não segue essa lógica. Tudo que a Osklen desfilou na SPFW foi concebido a partir do algodão reciclado disponível no mercado (em geral, produzido no interior de São Paulo e em Santa Catarina). É um processo invertido”, explica Nina.

Em termos gerais, a energia consumida entre recolhimento, separação, venda e transporte dos retalhos para serem reciclados equivale a apenas cerca de 2,6% da energia que seria consumida na produção do algodão natural. Quanto ao consumo de água, estima-se que cerca de 9.900 litros de água são economizados a cada tonelada de algodão virgem substituída por algodão reciclado.

Nina lembra que, além do algodão reciclado, a Osklen também reaproveita roupas de coleções anteriores utilizando técnicas como upcycling, em um trabalho com cooperativas.

Mas todo esse processo de redução de impacto ambiental não se reflete em economia no bolso do consumidor. Nina argumenta que os custos da produção continuam altos, especialmente porque toda a cadeia da Osklen utiliza comércio justo, com condições de trabalho reguladas, e sugere que o consumidor passe também a levar em conta o custo de externalidade:

“Por exemplo, o plantio do algodão tradicional causa doenças aos agricultores, consome recursos hídricos. Isso gera gastos para o Estado. Alguns países nórdicos já colocam na etiqueta números como “este produto consumiu 2 em vez de 8 mil litros de água”.

Coleção_rejeans da Renner (Foto: Breno_da_Matta /_Divulgação)
Coleção rejeans da Renner (Foto: Breno da Matta /Divulgação)

Saindo do mercado de luxo da Osklen, no fast-fashion nacional já é possível encontrar algodão reciclado e pelo mesmo preço que o convencional. Há cerca de um mês, a Renner lançou sua primeira coleção de jeans feita a partir do material. São calças, shorts, blusas e vestidos confeccionados com sobras de jeans da cadeia da própria Renner.

“Na produção da calça jeans, por exemplo, perdemos 20% do tecido. Isso ia para aterros sanitários. Ano passado, quase 400 toneladas foram desfibradas e recolocadas no processo produtivo. Nossa meta é ter 80% de nossos produtos feitos com redução de impacto até 2021″, afirma o gerente de Sustentabilidade das Lojas Renner, Vinícius Malfatti.

Ele explica que todo o processo é feito no Brasil e bem perto das fábricas para minimizar o uso de combustível e de produção de gases envolvidos no transporte. E ressalta o esforço tecnológico para tornar viável comercialmente esse tipo de produto:

“Criamos um laboratório de inovação para desenvolver uma série de matérias-primas. A fibra reciclada, por ser menor, exige mais cuidado no processo de tecelagem, pois o fio pode arrebentar”, diz ele, lembrando que a Renner também utiliza materiais como o Liocel (feito da polpa da madeira e com solventes biodegradáveis) e algodão certificado:

“Ano passado, fizemos 3 milhões de peças que seguem o conceito de redução de impacto. Este ano, devemos passar de 10 milhões”.

Além das peças recicladas, a C&A criou uma camiseta biodegradável: o primeiro produto de moda que, em contato com a terra por 12 semanas vira adubo (Foto: Divulgação)
Além das peças recicladas, a C&A criou uma camiseta biodegradável: o primeiro produto de moda que, em contato com a terra por 12 semanas vira adubo (Foto: Divulgação)

A C&A é outra grande varejista que vem investindo no algodão reciclado, e lançou, em março deste ano, dois modelos de calça e dois modelos de jaquetas feitas com a matéria-prima, em uma parceria com a Vicunha. Além disso, em setembro do ano passado, a empresa lançou o Movimento ReCiclo, que está implementado em 39 lojas. Por meio dele, os clientes levam peças de roupas usadas, que passam por uma triagem para serem doadas para o Centro Social Carisma ou para serem enviadas para a Retalhar, que faz o desfibramento e a reinserção do material na construção civil, em mantas acústicas ou na indústria automobilística.

“Até agora, foram arrecadadas mais de 150kg de peças para serem doadas e mais de 45kg para reciclagem”, conta Rozália Del Gaudio, gerente de Comunicação, Sustentabilidade e Relações Sindicais da C&A Brasil.

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Existe o plano nacional da agroecologia, mas o algodão não está contemplado

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Mas o investimento da gigante do varejo no algodão reciclado como matéria-prima ainda é pequeno. A aposta da C&A é no algodão orgânico, que, diferentemente do reciclado, é plantado, consome muita água, mas tem uma produção mais sustentável ambientalmente e socialmente se comparado ao algodão tradicional.

“Temos um compromisso global de até 2020 trabalhar apenas com a fibra proveniente de cultivos orgânicos ou sustentáveis . Mas cada país tem autonomia para desenhar como essa meta será desdobrada localmente. No caso do Brasil, cerca de 40% dos nossos produtos de algodão já são feitos com material mais sustentável”, afirma Rozália.

Segundo ela, a C&A é a maior consumidora de algodão orgânico no mundo, entretanto, o volume dessa matéria-prima produzida não é suficiente para suprir a demanda.  Dados da própria C&A mostram que esse tipo representa apenas 1% do total de algodão produzido globalmente.

A coleção da Osklen recebeu o nome de ASAP (As Sustainable As Possible), uma brincadeira com o termo as soon as possible e uma referência à urgência em adotar medidas nesse sentido (Foto: Marcio Madeira_/ Divulgação)
A coleção da Osklen recebeu o nome de ASAP (As Sustainable As Possible), uma brincadeira com o termo as soon as possible e uma referência à urgência em adotar medidas nesse sentido (Foto: Marcio Madeira_/ Divulgação)

No Brasil esse percentual é ainda menor: 0,1%. Segundo o pesquisador da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) Fábio Aquino de Albuquerque, existe uma expectativa de 30% de crescimento anual da produção de algodão orgânico no nosso país:

“Mas como boa parte da produção está no Nordeste, a irregularidade climática acaba por comprometer esse alcance”, afirma ele, citando Paraíba, Piauí, Rio Grande do Norte, Pernambuco e Ceará como os estados que mais produzem algodão orgânico no Brasil.

Outro problema é o pouco incentivo governamental para essa produção:

“Existe o plano nacional da agroecologia, mas o algodão não está contemplado. Os produtores contam basicamente com o apoio indireto das organizações governamentais que trabalham com pesquisa e extensão rural”.

Embora alguns estudos contestem a sustentabilidade do algodão orgânico, muito em função de seu rendimento (variedades convencionais podem produzir mais fibra do que orgânicas), Fábio lembra que, além do custo-benefício do roçado para o produtor ser melhor, há, entre os algodões orgânicos, variedades coloridas, que dispensam o uso de corantes:

“Não usar tinta na produção é algo muito importante para o tratamento de efluentes das fábricas. Com isso, reduz-se a pegada hídrica e o risco de contaminação ambiental”.

Mesmo as marcas que usam tinta já procuram soluções para reduzir os danos do processo. A Hering, por exemplo, utiliza nos jeans da linha Eco Edition uma tecnologia de ponta, com uma seleção de químicos que contribuem para a redução de 80% do consumo da água comparados ao processo tradicional. Segundo a empresa, praticamente 100% do corante índigo é absorvido e fixado na fibra, evitando o uso da água e energia para aquecimento em banhos subsequentes, necessários para a eliminação do excesso. Além disso, 100% da água utilizada na produção da linha é tratada e 70% reutilizada.

Seja com roupas recicladas ou com o uso de materiais que agridem menos o menos ambiente, a indústria têxtil, uma das maiores poluidoras do planeta, ainda tem muito o que fazer para reduzir o impacto da sua produção. Mas é evidente que, para além do discurso marqueteiro, essa moda sustentável veio para ficar e não é apenas mais uma tendência de passarela. Ainda bem.

Fernanda Baldioti

Jornalista, com mestrado em Comunicação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), trabalhou nos jornais O Globo e Extra e foi estagiária da rádio CBN. Há mais de dez anos trabalha com foco em internet. Foi editora-assistente do site da Revista Ela, d'O Globo, onde se especializou nas áreas de moda, beleza, gastronomia, decoração e comportamento. Também atuou em outras editorias do jornal cobrindo política, economia, esportes e cidade.

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