Foi somente às 15h que Ygor Carvalho de Souza, 40 anos, conseguiu uma pausa para descansar. Sentado sobre um resto de entulho, mantinha olhar vazio, mirando o lixo espalhado por todos os lugares, formando pilhas compactadas e úmidas pelo chorume. O homem teve logo que se levantar: um caminhão se aproximou trazendo tesouros a serem disputados com outros 30 catadores. É dali, nessa rotina, que Ygor consegue dinheiro para sustentar os dois filhos. O lixão no bairro Fischer, em Teresópolis (RJ), é sua fonte de sobrevivência. Ele sabe ser um trabalho ilegal, mas, sem alternativa, prioriza as necessidades em relação às normas da Justiça – instituição que muito pouco faz para ajudá-lo. “Não sou bandido não, trabalho pegando resto dos outros”, explica, sem saber o que esperar do futuro.
O local de trabalho de Ygor é o aterro da cidade na região serrana fluminense, referência ambiental no tratamento de lixo (fazia o descarte adequado com pouco prejuízo socioambiental) até 2014. Após uma série de governos malsucedidos, tornou-se inapropriado por desobedecer às leis ambientais. Quase cinco anos se passaram com o lugar, nas franjas da BR-116, funcionando como lixão. Por ser atividade irregular, desde 2018 opera sob liminar da Justiça, mas a atual gestão da prefeitura promete mudanças para 2020.
Uma usina de lixo de última geração a ser implantada na cidade planeja processar 180 kg de lixo por hora, diminuindo não só a poluição, como também a renda dos catadores. Jonny Kurtz, presidente da BNPetro, de Santa Catarina, afirmou em vídeo institucional que o novo projeto de reciclagem conseguirá transformar os resíduos sólidos não recicláveis em combustível sintético, gás e carvão. Segundo o secretário do Meio Ambiente de Teresópolis, Flávio Castro, não haverá custos para a prefeitura na parceria, já que a empresa privada pretende testar sua tecnologia na cidade. A ideia é transformar o aterro em usina de energia, que utilizará os resíduos como matéria-prima.
Dessa forma, a coleta seletiva do lixo pelos catadores ficará limitada. Ygor e seus colegas de trabalho terão de se contentar com o que for separado pelos moradores e empresas no programa de reciclagem.
“Por mais que os catadores consigam dinheiro em aterros e lixões, atuar nas usinas dará a mesma remuneração (ou até mais), com maior segurança e em ambiente mais profissional”, Carlos Silva Filho, Presidente da ABRELPE
Segundo a Lei n° 12.305/2010, que instituiu a Política Nacional de Resíduos Sólidos, existe uma série de mudanças que os municípios precisam adotar para estarem de acordo com a Justiça. A última delas sugere a implantação de aterros sanitários, mas esses já não são a opção mais sustentável. Outra medida exige maior conscientização e assistência aos catadores de lixo. Na opinião de Carlos Silva Filho, presidente da Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (ABRELPE), as usinas que utilizam resíduos para geração de energia prometem ser a aposta para o futuro. “Existe um grande mito em relação às usinas. Na verdade, elas ajudam todo mundo”, defende. “Por mais que os catadores consigam boa quantidade de dinheiro trabalhando em aterros e lixões, atuar nas usinas dará a mesma remuneração (ou até mais), com a diferença de estarem em maior segurança e num ambiente mais profissional.”
Daiana da Silva Santana, 34 anos, está há 15 no aterro, de onde tira a renda para criar os três filhos. Apesar de gostar da função de catadora, sonha voltar para o emprego anterior. “Gostaria de trabalhar como vendedora em alguma loja, era o que fazia antes, mas aqui ganho mais”. Ela conta que não recebe ajuda da prefeitura, mas que já se inscreveu no cadastro para continuar como catadora, mesmo após as futuras mudanças. Apesar de ser, na teoria, sustentável, o projeto não deixa claro quais serão os prejuízos causados às pessoas que vivem da coleta do lixo – e que, muitas vezes, são tratadas como se fizessem parte dele.
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Veja o que já enviamosLuciano Basto, consultor técnico na Empresa de Pesquisa Energética (EPE), admite que, apesar de os catadores terem realizado notável campanha para terem a profissão regulamentada, eles ainda sofrem com baixos salários e péssimas condições de trabalho. “São pessoas resignadas, pois prestam serviço utilíssimo para a sociedade e, ainda assim, têm remuneração ruim”, explicou. Para ele, a nova proposta da prefeitura pode tanto beneficiar os catadores quanto prejudicá-los. “O direito dos catadores decorre da permissividade da sociedade em criar um ‘garimpo urbano’, mas que submete os catadores e a própria sociedade a riscos de saúde graves. É importante pensar com cuidado nas políticas que serão adotadas para integrar os catadores à usina”.
“Não sou bandido não, trabalho pegando resto dos outros”. Ygor Carvalho de Souza, catador
Luciano explica ainda que os catadores precisam ser assistidos mesmo dentro das cooperativas. “Devem ser capacitados para outras atividades na economia da logística reversa e economia circular, como na construção civil, trabalho em parques e jardins, mas isso custa dinheiro”. Como exemplo, o consultor sugere medida semelhante à utilizada pela Fundação Santa Cabrini, que busca gerir e promover o trabalho remunerado para os detentos intra e extramuros do sistema penitenciário do Estado do Rio. Oferece cursos e oficinas em diversas áreas e especializações em seus Centros de Qualificação Profissional e Produção, como costura industrial, gráfica, estética, construção civil e também setores agrícolas.
A paralisação do aterro requer que o lixo seja transferido para local licenciado. Assim, no caso de Teresópolis, os resíduos serão transportados até Nova Friburgo, também na Região Serrana, que receberá o material por dois anos. Cerca de 70 km separam as duas cidades, aproximadamente uma hora e dez minutos de percurso até que o lixo possa ser descartado de maneira adequada. A compra de um novo terreno para o projeto e o custo de sua operação por um ano ficarão em torno de R$ 15 milhões, o equivalente a estimativa de gastos anuais com alimentação escolar em Teresópolis. A remediação, tentativa de recuperar o local que hoje recebe os resíduos e rejeitos da cidade, será feita junto com a BNPetro e terá o objetivo de queimar 24 toneladas de lixo por dia, resultando em 5 mil litros diários de biocombustível.
A desativação do atual aterro, segundo o secretário, acontecerá em quatro etapas. Na primeira, os catadores migrarão para um galpão, onde ficarão responsáveis pela reciclagem. A segunda será o fechamento do aterro. A terceira, apelidada pela prefeitura como “Operação do Futuro”, vai ser a instalação da usina em terreno ainda a ser negociado. Depois, acontecerá a remediação – o uso de tecnologias para reduzir ou eliminar a quantidade de poluentes no solo contaminado pelo chorume.
Todo esse processo, ainda no papel, promete ser a solução dos problemas ambientais, mas pode não resolver a questão dos catadores que, como Ygor e Daiana, dependem completamente do lixão para sobreviver. Para eles, o projeto propõe resgatar a cooperativa de catadores da região, dividindo a renda conquistada com a coleta. “O lucro que tiverem na venda do lixo será compartilhado entre eles. Se conseguirem aumentar o volume de coleta, aumenta o recurso. A gente espera que eles trabalhem muito para aumentar a quantidade de lixo reciclado e também a quantidade de pessoas ganhando dinheiro com isso”, afirmou o secretário.
Tião Santos, ex-catador e representante da cooperativa de Jardim Gramacho, explica que os países em desenvolvimento ainda não têm a devida preocupação ambiental. “Nos países desenvolvidos a coleta seletiva surgiu do avanço da consciência. Aqui (no Brasil) nasceu da pobreza, da exclusão social”. Para ele, o termo “material reciclável” reforça a humanidade do lixo e dos catadores.
O Aterro Sanitário de Jardim Gramacho, em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, foi considerado o maior da América Latina até seu fechamento em 2012. À época, Tião atacou a falta de planejamento para atender aos catadores que ficaram sem seus empregos.
A Política Nacional de Resíduos Sólidos previa o fim de todos os lixões do país até 2014. Como isso não aconteceu, o prazo foi estendido para 2018 ou 2021, a critério dos municípios. Relatório da Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública concluiu que em 2018 existiam cerca de três mil lixões em funcionamento no Brasil. Não há consenso sobre o número de catadores trabalhando nesses locais, mas estima-se que seja próximo a 300 mil pessoas.
Matéria excelente, mostrando uma realidade muitas vezes ignorada mas que tem muita importância!
A construção com histórias mais pessoais e a parte mais formal da notícia ficou ótima.